sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

"Aspecto Interior do Sacrifício" (excerto)


Agostinho da Silva (1906-1994)

[...] “O desprender-se da segurança e da comodidade, o mergulhar na incerteza e na dura restrição só para continuar fiel às bases em que assentou o pensamento e se quis fundamentar toda a vida é já a certeza, para aquele que verdadeiramente serve o espírito, de que segue o bom caminho, de que a sua posição adversa à grande massa é ainda aristocrática, isolada, como é preciso que seja. O cumprimento do dever, quando se não chama dever a uma imposição feita de fora, mas a uma aspiração sempre mais larga à posse de todo o mundo racional, jamais poderá ser olhado como um sacrifício que exige recompensa; antes me parece que uma tal oportunidade de ter experimentado as suas forças e vencido mais um grau na imensa e bela subida para o Ser apenas deveria provocar, nas relações com os outros, uma gratidão sincera e sólida por todo o conjunto de circunstâncias que permitiu o provar e ascender. [...]


   Há, no entanto, um outro aspecto que sobreleva em significação universal esta fidelidade de indivíduo a si próprio; o domínio do impulso dos sentimentos pelo calmo giro da razão é um esforço que leva o mundo para Deus, como as pancadas dos remos fazem deslizar o barco sobre as águas; no bom remador nenhum movimento é inútil para que o porto se alcance; de igual modo, no que bem pensa, nenhum acto da vida se perde para a salvação da Humanidade; e mais do que todos, dão marcha vigorosa ao barco em que vogamos, os que ousaram  as mais largas remadas, os que não temeram estoirar os músculos ao serviço do bem comum. No que mais vê objecto que sujeito anda espalhado o fim último dos homens: inteligência que em si compreende amor, beleza e justiça; consagrar-lhe a vida inteira, num momento ou em anos, é repartir-se por toda a Humanidade, arder nas várias chamas que de todos os peitos se elevam para o céu, congregá-las no fogo do trabalho que transformará o universo. A esta grande missão só uma linguagem desvairada poderá chamar sacrifício, só os cegos de espírito poderão dar por companheiras a resignação e a tristeza. Os que vêem mais alto e mais claro ardentemente desejam que sobre eles recaia a escolha do Senhor; porque sabem como as almas se dilatam, como as invade, as ilumina a alegria contínua e doce, quando sentem palpitar dentro de si, correr, expandir-se o grande mar de sonhos, de visões, de caridade e aspiração de justiça, que vai rolando poderoso e magnífico no mundo.”


Agostinho da Silva, Considerações, in Textos e Ensaios Filosóficos, vol I. Lisboa, 1999, Âncora Editora, pp.97,98 (Considerações - texto publicado pelo autor, 1ªedição, Famalicão, 1944)

(Nota do editor: Texto extraído do Boletim "Folhas à Solta", nº68, da Associação Agostinho da Silva)

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