quarta-feira, 27 de setembro de 2017

ETNOGRAFAR a ARTE de RUA (XXV) Graffitar a Literatura





Graffitis fotografados por Luís Souta, 2017.
Alcácer do Sal, Rua Comandante João Bico (antiga EN5)


«Empiricamente, o povo português é um povo trabalhador e foi durante séculos um povo literalmente morto de trabalho. Mas a classe historicamente privilegiada é herdeira de uma tradição guerreira de não trabalho e parasitária dessa atroz e maciça ‘morte de trabalho’ dos outros.»
(Eduardo Lourenço, O labirinto da saudade, 1988: 130)


A arte de rua, enquanto processo de requalificação urbana, chegou também à zona rural do distrito de Setúbal. Aqui damos conta de dois ‘quadros’ de um extenso mural pintado em Julho, em Alcácer do Sal (antiga EN5), pelo prestigiado Sérgio Odeith (natural da Damaia, 1976).
Este tema – as mondinas do arroz – remeteu-nos, de imediato, para Gaibéus, o primeiro romance de Alves Redol, publicado em 1939 (edição de autor, com capa do seu amigo Antero Ferreira e distribuído pela Livraria Portugália). Desta obra, que «viria a ser também o primeiro romance neo-realista português» (como o constata o escritor), o jornal Público, em Abril de 2014, fez uma edição fac-simile, integrada na sua colecção ‘Livros Proibidos’ (abre com o relatório do censor; cf. texto de Carina Infante do Carmo “Gaibéus: o censor gostou…”, Público, 09/04/14, p. 47). No artigo, a autora releva a «linha porosa entre a ficção e o documental» enquanto marca distintiva da obra. Afinal, traço identitário do processo de escrita de Alves Redol (1911-1969), realçado pelo próprio na longa ‘nota de abertura’, datada de Maio de 1965, aquando da reescrita do livro (desafio o leitor a uma análise comparativa destas duas versões literárias). Aí nos dá conta de duas histórias, a sua e a do livro Gaibéus. Redol refere uma das várias conversas que teve, na administração do jornal O Diabo, com um crítico literário da América do Sul, de seu nome Carlos: «Na sua voz quente e repousada, achou que sim, que a etnografia era importante [viria a publicar Glória. Uma aldeia do Ribatejo, em 1938], mas que eu deveria começar a escrever um romance.» Foi este o ‘empurrão’ que abalançou o escritor de Vila Franca de Xira à realização do seu primeiro romance; mas antes, fizera o obrigatório ‘trabalho de campo’: «eu aproveitara as férias de Setembro para viver com os ranchos [Do Alto Ribatejo e da Beira Baixa, eles descem às lezírias pelas mondas e ceifas. Gaibéus lhes chamam] do lavrador Henrique Honorato, nas suas lavras de arroz na casa Branca, junto ao Tejo, em Azambuja.»
Das comemorações do centenário do seu nascimento, destacamos o Colóquio Internacional que decorreu entre 7 e 10 de Novembro de 2012 – “Alves Redol e as Ciências Sociais. A literatura e o real, os processos e os agentes”. A Academia não só resgatava Redol de um certo esquecimento literário como lhe atribuía agora o papel de ‘fonte’ imprescindível de conhecimento para as diversas ciências sociais.
Alguns extractos do segundo capítulo «Arroz à foice» [uso aqui a edição de 1971, a dos Livros de Bolso Europa-América, nº 11, 177 p.]:
«Há mulheres que põem canos nas pernas para que o frio da água não lhes fira a carne.
O olhar dos homens ferra-se nelas, a inventar intimidades ou à espreita de algum descuido que lhes mostre as coxas.
Na boca das mulheres brincam sorrisos de troça; algumas fingem-se distraídas e dão-lhes o jeito.
Há gente que vem ainda a sair da poisada, a bocejar, em movimentos lentos de mândria. (pp. 27-8)
(…) À porta do aposento, a puxar à frente as pontas da jaqueta e a mirar o rancho, o patrão aparece com a empáfia de quem manobra tutela.
Logo os capatazes deitam mãos aos relógios e dão ordem para se ir à faina.
– Eh, gente!… São horas, vá de andar!
– Eh, cachopos!
E todos se erguem, de foices na mão, marchando em grupos pelo carril que leva ao arrozal. (p. 28)
(…) Os capatazes vêm à frente, de marmeleiros na mão, como guias do rebanho que levanta uma gaze de poeira no caminho. Deitam rabos de olhos para trás, se as gargalhadas estalam, “não vão aqueles dianhos fazer alguma coisa a despreceito que amofine o patrão”. (p. 29)
(…) A faina começa.
Partidos pelos rins, quebram-se em ângulo de cabeças pendidas como as panículas do arroz que se ouvem no marulhar brando da aragem da manhã.
Com a mão canha, os ceifeiros jungem as canas dos pés e lançam a foice com a direita, cortando-as à força, de pulso, sem pancada, não vão os bagos saltar.
Voltam-se para trás e depõem as espigas em gavelas, com movimentos bruscos, como se andassem de empreitada.
O terreno está fofo, empapado das águas, onde os pés descalços se atascam na lama e esfriam.
A cada corte, as nuvens de mosquitos elevam-se e envolvem os ceifeiros; pousam-lhes no rosto e nas mãos, penetram-lhes na boca aberta pelo arfar ou nas ventas.» (p. 30) 
Excerto do antepenúltimo capítulo «Malária» (doença que Redol conhecia bem os seus efeitos, também ele uma vítima, nos quatro anos em que trabalhara por terras de Angola):
«Nunca, como naquela colheita, as sezões derrubaram tantos alugados. Nenhum escapara ao seu frio, que tolhia os corpos, roubando-lhes alentos. Caíam uns pela manhã e outros depois do almoço. E mal podiam erguer-se, logo tomavam rumo à seara para ganhar algum quartel. Emagreciam, mas as pernas e os braços pesavam mais, como se cadeias de ferro os tolhessem.
Os capatazes falavam em quinino – cada roda custava um quartel de trabalho – e eles tinham vindo para guardar alguma coisa de comer para o Inverno.
Nessa altura, as receitas não faltavam: rabo de bacalhau em aguardente, aguardente com canela, chá de jaribão…
Melhoravam quase sempre.» (p. 134)
A total mecanização do processo produtivo do arroz varreu, por completo, os ranchos deste quadro social que Redol nos deu testemunho etno-literário em Gaibéus. Hoje, nos extensos e verdes arrozais do Ribatejo e de Alcácer só se vêm máquinas… e cegonhas. 

Luís Souta

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