Fotografia de Carlos Matos
A MESA VAZIA
Ana Porfírio
Levanta-se ás seis e picos, acorda com a ereção matinal, vai
meio adormecido até à casa de banho, escuta o som do jato cantante, o cheiro,
ainda de olhos meio fechados, lava os dentes por vezes já debaixo do duche, o
corpo, a cabeça, tenta não pegar distraído no shampoo ou amaciador dos miúdos
que chegam a cada quinze dias, cada vez mais distantes, uma adolescente com uma
cara parecida à sua filha que o olhava encantando e um franganote que mistura
traços do seu pai e da ex-mulher com uma pele a ficar cada vez mais oleosa e
uma voz que balança entre o esganiçado e o másculo.
Parece que empurram o corpo, refilam pelo quarto partilhado a
cada quinzena, já não ficam felizes com uma ida ao Cinema, ao Jardim Zoológico,
á praia, invariavelmente querem boleia para casa de amigos ou Centros
Comerciais.
Limpa-se á toalha, faz a barba, desodorizante, veste-se, come
o mesmo de todos os dias, um iogurte com fruta ou cereais, um café longo, dois
comprimidos, um branco e um rosado, tensão arterial e outra porcaria qualquer.
Coloca a gravata, veste o casaco, fuma um cigarro na varanda,
sai, tranca a porta, carrega no botão do elevador, por vezes vem já com outras
pessoas, é melhor quando não, ter de começar cedo a ver a felicidade doméstica
do casal recém casado do quarto andar ou a vizinha do quinto frente que lhe faz
perguntas indiscretas e ajeita o decote ou mesmo os miúdos a fazer birra,
cheios de sono do andar do lado com a mãe a dizer para se portarem bem enquanto
eles se atacam em beliscões é um despertar que não lhe apetece.
Sai na garagem liga o carro, carrega no comando a porta abre,
sai, carrega no comando a porta fecha, escuta a mesma estação de rádio, espera
que não haja fila na ponte, engarrafamento, congestionamento, fuma um ou dois
cigarros, suspira a cada paragem, até chegar.
Chega ao edifício, imponentemente feio, monumentalmente
impessoal, cumprimenta o segurança, os colegas, escuta as conversas replicadas
à exaustão, liga o computador começa a abrir mensagens, toda a gente carrega no
botão de “prioritário”, vê números, confere, arruma, para um café, dois dedos
de conversa desinteressante, um cigarro, continua, para o almoço, regra geral
no local de sempre, cumprimenta, come, paga, cumprimenta, fuma um cigarro,
volta aos números, sente o telemóvel vibrar, é a filha que pede mais dinheiro
no cartão das suas despesas, numa linguagem quase fonética com palavras
abreviadas, outra vibração é a mulher com quem teve um breve encontro que
terminou num sexo satisfatório mas não empolgante e que o persegue com rompantes
de novela, termina o dia, volta ao engarrafamento, á fila, ao congestionamento,
estaciona, tira a gravata, sobe, os miúdos tem a mesma birra da manhã mas com o
sono da noite, a mascara de maquilhagem da vizinha do quinte frente debotou e
mostra a pele baça, o casalinho vem amuado ele sussurra ternuras, ela faz um
beicinho.
Tira o fato, vê que a casa está limpa, há um recado com letra
infantil a pedir que compre lixivia e limpa vidros, a roupa está passada a
ferro, veste um blusão, sai para jantar, um jantar solitário, dá uma volta a pé
com o cheiro do rio, encontra umas caras conhecidas.
De repente vê, “ela” está ali, com aquele ar distraído de
sempre, quando o vê sorri, abraça-o como se fosse ontem que tivessem dado o
ultimo abraço, continua a cheirar a coisas frescas, apesar de usar outro
perfume, o cheiro só dela sobrepõe-se, continua a ter aquele ar de animal
furtivo e menina perdida, a ter a pele macia, a voz que o fazia sentir tudo de
outra forma, há uma mesa vazia na esplanada e ela pergunta, se quer sentar-se,
tomar algo, conversar um pouco ele escuta-se incrédulo:
“Amanhã é dia de trabalho às seis e picos tenho de estar a
pé!”
Ela faz um sorriso trocista e diz “Está bem, gostei de te
ver”
Afasta-se e ele fica parado a olhar para a mesa vazia onde
podiam ter partilhado uma conversa, tocar-lhe nas mãos, quem sabe pegar no
ponto dos abraços, a garganta doí-lhe por não lhe ter dito que o cheiro dela
continua a ser de coisas frescas, a pele dela continua macia, a voz ainda o faz
sentir de outra forma, que sim, que se quer sentar e deixar a mesa ocupada, com
a conversa que entre eles sempre foi fácil, ser embalado naqueles sorrisos, nos
gestos de mão, no andar de animal furtivo e o ar de menina perdida.
Olha para a mesa vazia, suspira e acende um cigarro, amanhã
pelas seis e picos…