sexta-feira, 3 de maio de 2019

Os Suburbanos (1)




Fotografia de Carlos Matos


A MESA VAZIA

Ana Porfírio

Levanta-se ás seis e picos, acorda com a ereção matinal, vai meio adormecido até à casa de banho, escuta o som do jato cantante, o cheiro, ainda de olhos meio fechados, lava os dentes por vezes já debaixo do duche, o corpo, a cabeça, tenta não pegar distraído no shampoo ou amaciador dos miúdos que chegam a cada quinze dias, cada vez mais distantes, uma adolescente com uma cara parecida à sua filha que o olhava encantando e um franganote que mistura traços do seu pai e da ex-mulher com uma pele a ficar cada vez mais oleosa e uma voz que balança entre o esganiçado e o másculo.

Parece que empurram o corpo, refilam pelo quarto partilhado a cada quinzena, já não ficam felizes com uma ida ao Cinema, ao Jardim Zoológico, á praia, invariavelmente querem boleia para casa de amigos ou Centros Comerciais.

Limpa-se á toalha, faz a barba, desodorizante, veste-se, come o mesmo de todos os dias, um iogurte com fruta ou cereais, um café longo, dois comprimidos, um branco e um rosado, tensão arterial e outra porcaria qualquer.

Coloca a gravata, veste o casaco, fuma um cigarro na varanda, sai, tranca a porta, carrega no botão do elevador, por vezes vem já com outras pessoas, é melhor quando não, ter de começar cedo a ver a felicidade doméstica do casal recém casado do quarto andar ou a vizinha do quinto frente que lhe faz perguntas indiscretas e ajeita o decote ou mesmo os miúdos a fazer birra, cheios de sono do andar do lado com a mãe a dizer para se portarem bem enquanto eles se atacam em beliscões é um despertar que não lhe apetece.

Sai na garagem liga o carro, carrega no comando a porta abre, sai, carrega no comando a porta fecha, escuta a mesma estação de rádio, espera que não haja fila na ponte, engarrafamento, congestionamento, fuma um ou dois cigarros, suspira a cada paragem, até chegar.

Chega ao edifício, imponentemente feio, monumentalmente impessoal, cumprimenta o segurança, os colegas, escuta as conversas replicadas à exaustão, liga o computador começa a abrir mensagens, toda a gente carrega no botão de “prioritário”, vê números, confere, arruma, para um café, dois dedos de conversa desinteressante, um cigarro, continua, para o almoço, regra geral no local de sempre, cumprimenta, come, paga, cumprimenta, fuma um cigarro, volta aos números, sente o telemóvel vibrar, é a filha que pede mais dinheiro no cartão das suas despesas, numa linguagem quase fonética com palavras abreviadas, outra vibração é a mulher com quem teve um breve encontro que terminou num sexo satisfatório mas não empolgante e que o persegue com rompantes de novela, termina o dia, volta ao engarrafamento, á fila, ao congestionamento, estaciona, tira a gravata, sobe, os miúdos tem a mesma birra da manhã mas com o sono da noite, a mascara de maquilhagem da vizinha do quinte frente debotou e mostra a pele baça, o casalinho vem amuado ele sussurra ternuras, ela faz um beicinho.

Tira o fato, vê que a casa está limpa, há um recado com letra infantil a pedir que compre lixivia e limpa vidros, a roupa está passada a ferro, veste um blusão, sai para jantar, um jantar solitário, dá uma volta a pé com o cheiro do rio, encontra umas caras conhecidas.

De repente vê, “ela” está ali, com aquele ar distraído de sempre, quando o vê sorri, abraça-o como se fosse ontem que tivessem dado o ultimo abraço, continua a cheirar a coisas frescas, apesar de usar outro perfume, o cheiro só dela sobrepõe-se, continua a ter aquele ar de animal furtivo e menina perdida, a ter a pele macia, a voz que o fazia sentir tudo de outra forma, há uma mesa vazia na esplanada e ela pergunta, se quer sentar-se, tomar algo, conversar um pouco ele escuta-se incrédulo:

“Amanhã é dia de trabalho às seis e picos tenho de estar a pé!”

Ela faz um sorriso trocista e diz “Está bem, gostei de te ver”

Afasta-se e ele fica parado a olhar para a mesa vazia onde podiam ter partilhado uma conversa, tocar-lhe nas mãos, quem sabe pegar no ponto dos abraços, a garganta doí-lhe por não lhe ter dito que o cheiro dela continua a ser de coisas frescas, a pele dela continua macia, a voz ainda o faz sentir de outra forma, que sim, que se quer sentar e deixar a mesa ocupada, com a conversa que entre eles sempre foi fácil, ser embalado naqueles sorrisos, nos gestos de mão, no andar de animal furtivo e o ar de menina perdida.

Olha para a mesa vazia, suspira e acende um cigarro, amanhã pelas seis e picos…


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