A "Ilha dos Amores" e o “Quinto Império”: entre Luís de Camões, Padre António Vieira, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva
Luís Carlos dos Santos
O Padre António Vieira, o Imperador da Língua
Portuguesa, como Pessoa o designa no seu livro “Mensagem”, exemplo vivo do
homem total e do universalismo português, uma das personalidades mais distintas
e originais da nossa cultura, é herdeiro da teoria joaquimita das “Três Idades”
que são constituídas, como já se disse, pelas eras do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, que têm correspondência na Terra a três grandes períodos
históricos, o primeiro, desde a Criação anunciada no Evangelho até à conversão
de Constantino, imperador Romano, ao cristianismo; o segundo, até à expansão da
mensagem cristã ao mundo com os Descobrimentos Portugueses; o terceiro, com a
consumação até ao final dos tempos do V Império, ou seja, da consolidação do
Reino de Deus na Terra, com a descida do Paráclito, na unificação de todas as
nações do mundo numa comunidade eclesial conforme a profecia bíblica.
Mas Vieira há-de demarcar-se de Joaquim de Flora, pois
que para si são Cristo e a Igreja, e não o Espírito Santo, os consumadores do
Reino Divino na Terra. Como nos diz Paulo Borges, “…uma igreja composta de
santos e abrangente de toda a humanidade.”[1]
Depois da queda a libertação será em Cristo. A progressiva apropriação de todos
os homens em Cristo, pela universalização da Igreja e da santidade. Ou seja, do
“fim dos tempos” em que Deus será tudo naqueles que nele transfigurados, já não
serão muitos mas Um só, suponha o necessário esforço humano de uma remoção dos
impedimentos à manifestação de tal Unidade.[2]
Seguindo Paulo Borges, “Mais do que uma realidade
histórica, determinada por contraste com tudo quanto a antecede, a real
Jerusalém Celeste é o “estado” de uma plenitude não compartimentada, em todos
transparecente e toda de todos para todos fluente, na integral comunhão
amorosa: “…porque todos perpetuamente se vêem a si mesmos, todos vêem a todos,
e todos vêem tudo. Nada se esconde ali, porque lá não há vício; nada se
encobre, porque tudo é para ver; nada se recata, ou dificulta, porque tudo
agrada; e porque tudo é amor, tudo se comunica.”[3]
Em Vieira, a ideia de Santo Agostinho sobre a existência
das “duas cidades”, “cidade dos homens” e “cidade de Deus”, correspondem à
existência de Quatro Impérios já historicamente verificados, assírio, persa,
grego e romano, e ao “Quinto Império” que estaria por vir, por construir, e que
seria português.
Vieira vai relacionar a missão de Portugal na
construção do “Quinto Império” com o que ele “encontra prefigurado no sonho de
Nabucodonosor, interpretado pelo profeta Daniel: a pedra que, sem intervenção
de mão alguma, embate violentamente nos pés de ferro e argila da terrível
estátua antropomórfica, com cabeça de ouro, peito e braços de prata, ventre e
coxas de bronze, pulverizando-a e convertendo-se numa “grande montanha” que
enche a terra inteira (Daniel, 2, 31-45). Abatendo o gigantesco ídolo de pés de
barro – símbolo dos quatro impérios e dos poderes mundanos (…) e da própria
história enquanto exílio do Paraíso original -, a pedra, figura do Messias, do
Cristo, ou da consciência desperta e livre, converte-se na montanha cósmica,
símbolo da totalidade e do eixo que une céu e terra, espírito e matéria,
transcendência e imanência.”[4]
É a missão da consolidação do Reino de Deus na Terra
em que Vieira vê Portugal como o seu mais elevado representante, desde a
aparição e profecia de Cristo a D. Afonso Henriques, antes da Batalha de
Ourique quando lhe diz: “Vai e funda o meu Reino.” Cristo faz de Portugal a
vanguarda do seu crescimento terreno, compreendendo-se que na consumação do
império português a própria “potência” divina resulte “sublimada.”[5]
A Missão de Portugal é, pois, a de fundação de um
Reino de Deus na Terra, fundado não para fins políticos como acontece com
outras nações, mas com um fim apostólico que lhe é particular. É esse também o
objetivo primordial dos Descobrimentos Portugueses.[6]
Como refere Agostinho da Silva, “O Vieira falava do
mundo redimido, do mundo restituído plenamente ao Cristo (…) Afinal o povo
português tinha o ideal de cumprir Cristo! (…) e que esse mundo perfeito tinha
que ser fabricado por portugueses e por espanhóis.”[7]
Para o nosso autor, a profecia de Vieira está
concretizada até à parte em que Portugal se autonomizou das colónias que
administrava, acabando assim também por se libertar a si próprio, “O nosso
ideal é que cada homem seja um universo nele próprio. O nosso ideal é que cada
comunidade seja um universo nela própria. (…) Portugal está autónomo. Os outros
bocados do que era Portugal autónomos estão. Mas isso não impede que haja entre
eles relações de franqueza, não de política, e de atenção ao que neles há de
comum para que se ressuscite um conjunto de comunidades capazes de partirem
para um projecto que todos aceitem.”[8]
A obrigação hoje de cada português é a de pensar o
mundo inteiro em paz com plena liberdade de pensamento em cada um. Claro que a
paz e a liberdade devem ser construídos por todos, e não será obra exclusiva de
portugueses. Mas, diz Agostinho, “o que acontece é que eu nasci em Portugal! O
que acontece é que eu me fiz num país, o Brasil, que fala português, que tenho
conhecimento de outras terras que falam português, pelo menos oficialmente, e
que a minha primeira atenção vai para esses. A minha primeira atenção vai para
os que estão mais perto de mim.”[9] E,
por outro lado, cada vez que Portugal seguiu mais outros países que não o seu
próprio íntimo, Portugal falhou. “ Então eu realmente quero pensar o problema,
desejo pensar o problema quanto possível no âmbito possível dos povos que falam
português ou espanhol. Depois veremos os outros. Por enquanto, eu não quero
implicar os outros nesta história, porque de cada vez que eles entraram na vida
portuguesa e na vida espanhola atrapalharam muito a outra que estava correndo
bastante bem. É o problema que se põe agora com a CEE.”[10]
Voltando ao nosso Padre, Vieira tal como Camões ambos
sustentaram que no tal mundo divinizado corpo e espírito ambos se conservam em
liberdade. Em Camões isso aparece de forma muito mais ampla que em Vieira,
eventualmente, pela influência que poderá ter recebido da filosofia oriental.
Não se sabe. De qualquer forma, “um homem superior acaba por ser ao mesmo tempo
do Ocidente e do Oriente. (…) E é a isso que devemos rumar.”[11]
Pessoa tem uma ideia diferente de Vieira sobre Quinto
Império. Em Vieira o princípio dinâmico é mais político, em Pessoa mais
unipessoal. “É que ao passo que o caso de Vieira é um caso político, o caso do
Quinto Império do Pessoa é um império em que cada homem e cada mulher se
soltem, um império que eles próprios exercem sobre si mesmos. Que cada homem e
cada mulher possa atingir um ponto em que tenha a absoluta liberdade.”[12]
Mas Vieira também não seria contra essa conquista de
liberdade, simplesmente, o caminho para lá chegar é diferente, o que é normal
porque Vieira e Pessoa são personalidades históricas muito diferenciadas… “O
próprio Camões o tinha pensado assim na Ilha dos Amores. Ali não há nenhum
aspecto de limite à liberdade, está-se fora do tempo e fora do espaço, até
disso se soltaram os homens. (…) Ao passo que o Vieira é, digamos, o político
do colectivo, o Fernando Pessoa aparece como político do individual.”[13]
Seguindo as palavras de Agostinho, “O Vieira tem por
último ideal, porque não podia ter outro, que o império que ele deseja
construído por portugueses seja um império sem imperador, um império que os
homens vivam numa fraternidade humana e numa compreensão divina, sem que nenhum
homem mande em outros homens, sem que nenhuma nação mande em outra nação.
Quando ele diz que o Quinto Império é instaurado por Portugal, não quer dizer
que Portugal continue como imperador.”[14] O
Vieira “era um homem de Brasil e Portugal, ele pensava fundamentalmente como é
que vamos unir essas duas coisas, problema que ainda hoje anda por aí. Para já
não falar das outras colónias ou províncias ultramarinas mais recentes. O
Fernando Pessoa talvez tivesse achado que o grande caminho para isso não era a
política que fez o Vieira e que ele perdeu… O Pessoa, já que ele não se sentia
com capacidade de acção junto dos outros, talvez ele tivesse achado que o
importante dele era aprofundar-se e soltar-se a si mesmo antes de soltar os
outros. E quem sabe se não é esse realmente o caminho mais certo?”[15]
Mas Agostinho não deixando de reconhecer a importância
dos dois pensadores portugueses e que, no fundo, embora as diferenças sejam
substanciais, como diferentes são as épocas em que ambos viveram, não deixa de
relevar o objetivo comum que os une, o que o leva a afirmar que “talvez o
melhor seja juntar os dois e chamar-lhes Fernando Vieira…”[16]
Fernando Pessoa decidiu pôr-se à disposição de tudo o
que aparecesse, do imprevisível, e aqui coloca-se a questão do Espírito Santo
como a entidade do imprevisível de tão grande importância para o nosso
Professor. “ E quando o São João diz no Evangelho, pondo as palavras na boca de
Cristo, que será o Espírito santo o verdadeiro consolador dos homens, ele está
a tirar a ideia de que pode haver um consolador muito mais válido, muito mais
amplo do que o próprio Cristo. Um consolador que não venha curar as feridas e
consolar o desastre, mas um consolador que venha de dentro pondo o espírito
criador em perfeita liberdade. A verdadeira libertação dos homens, a verdadeira
revolução seria pôr em perfeita liberdade o criador, o poeta que provavelmente
todos os homens são. Não é o político, o poeta!”[17]
Então se pensarmos num império universal, que sirva um
e outro lado, tanto o Vieira como o Camões têm limitações, porque defendem o
Deus ocidental, ou seja o Todo. Já em Pessoa encontramos pela primeira vez a
ideia de um Deus que é tudo, mas tem ao mesmo tempo a ideia de um deus que é
uma disponibilidade.
Então, para Fernando Pessoa, “um império instaurado
por gente do tipo português, essa unidade do mundo, em lugar de império podemos
chamar-lhe uma unidade do mundo, essa unidade do mundo teria como filosofia e
como teologia uma que declarasse verdadeiros todos os seus aspectos: o aspecto
de tudo e o aspecto do nada. E podia unir isso não como alguma coisa
contraditória à maneira do zen, como alguma coisa que tivesse dois aspectos
contrários na sua unidade, mas por exemplo como alguma coisa que nós pudéssemos
representar pela palavra disponibilidade.”[18]
Portanto, Agostinho da Silva vê uma perfeita linha de
continuidade entre Camões, Vieira e Pessoa, embora pesem os diferentes tempos
em que viveram e a inevitabilidade de serem influenciados pelas ideias de seu
tempo. No fundo, Camões, Vieira e Pessoa são heterónimos do desejo de que haja
no Mundo alguma coisa que seja a realização plena do homem. Ou, concluindo com
palavras suas, “entendendo que o homem não é apenas esta coisa que vive aí uns
anos e morre, mas que é alguma coisa de eterno, como uma centelha de fogo. É a
centelha que se apaga, mas é também o fogo que sempre existe no mundo, qualquer
aspecto que tomemos! Então o Camões, Vieira, Pessoa são aspectos de várias
épocas, de várias tonalidades, de vários temperamentos, com o mesmo ideal de
que haja no mundo alguma coisa que seja a realização plena do homem. A ideia de
que essa realização plena não existirá se nós escolhermos, se fizermos tal
coisa e abdicarmos de tal outra! Mas que essa realização plena é a
disponibilidade para tudo. Uma disponibilidade que é ao mesmo tempo quieta,
sentada, passiva, e uma disponibilidade que tem um ideal. É a disponibilidade
para o tudo, nos vários aspectos com que o tudo nos aparece.”[19]
Quando Camões fez, no regresso da viagem de Vasco da
Gama à Índia, os nautas aportarem na Ilha dos Amores abriu um “rasgão” no tempo
e no espaço. De facto, essa ilha não existe. Não há rota, ninguém sabe que
caminho os navegantes percorreram. “Os fenómenos desaparecem. Isto é, o Camões
declara afinal, de outra maneira, que, para chegar àquela verdade absoluta que
é a divinização do homem sem perder o humano, tem que se ultrapassar todo o
mundo dos fenómenos. Estamos ultrapassando? Estamos desde o Descartes.”[20]
“Então, agora trata-se de inventar uma política
adequada ao regresso para tornar a partir. E tornar a partir não é
evidentemente para ir a qualquer espécie de fenómeno, é para tornar a ir outra
vez meter-se no rasgão do espaço e ir para além da ilha dos Amores (…) Dizer
Ilha dos Amores ou Quinto Império, vamos a isso, é mais completo até! Então o
que se trata de fazer agora de mais importante é uma arrumação interna de
Portugal que está bastante desarrumado.”[21]
(SANTOS, Luís Carlos dos (2016) Agostinho da Silva: Filosofia e Espiritualidade, Educação e Pedagogia. Vila Nova de Gaia: Euedito, pp.134-140)
[1] Paulo Borges, A
Pedra, a Estátua e a Montanha, o V Império no Padre António Vieira, Lisboa,
Portugália, 2008, p.65
[2] Cf., idem: 73
[3] Idem: 95, cf., Padre António Vieira, Sermoens, 2, pp.189-192.
[4] Idem: 21e 22
[5] Idem:129, cit. Padre António Vieira, Clavis Prophetarum, liv. 2º, cap. 13, XI, p.523
[6] Cf., idem: 130
[8] Idem: 110
[9] Idem: 110
[10] Idem: 110
[11] Idem: 108
[12] Idem: 115
[13] Idem: 115-116
[14] Idem: 115
[15] Idem: 116
[16] Idem: 116
[17] Idem: 117
[18] Idem: 120
[19] Idem: 123
[20] Idem: 126
[21] Idem: 127
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