quinta-feira, 22 de junho de 2023

“Literatura: o pão nosso de cada dia” (XV)

 Luís Souta

MISCEGENAÇÃO DE GÉNEROS LITERÁRIOS

«A literatura serve para mostrar a infinita complexidade dos seres humanos»
(Javier Cercas, entrevista ao Ípsilon, 12/05/2023, p. 10)

    A categorização de obras por géneros literários dá azo a permanentes controvérsias. Parece ser um problema mais de críticos literários e editores do que de escritores. Para os críticos é uma questão de métier, para os editores é a rentabilização das vendas (o romance vende mais(1)), e para os escritores, um assunto, em regra, incómodo havendo muitos que “fogem” ou pelo menos contornam as polémicas em volta da classificação dos seus livros. Por exemplo, Cristóvão de Aguiar rodeia a categorização em géneros, através da ironia: “romance ou o que lhe queiram chamar”, “novela em espiral ou o romance de um ponto a que se vai sempre acrescentando mais um conto”, “narrativa militar aplicada”, “polifonia romanesca”, “diário ou nem tanto ou talvez muito mais” – são algumas das catalogações que utilizou nos seus livros depois da publicação de Raiz Comovida (1978), Prémio Ricardo Malheiros; forma de “fintar” os críticos que à época «dedicavam grande parte da crítica a interrogar-se sobre se a obra era ou não um romance», como nos confessou na entrevista que lhe fizemos em Abril de 2001.

   Vejamos exemplos de alguns autores cujas obras foram categorizadas de forma diferenciada em tempos diferentes. A 1ª edição de Onde a Noite se Acaba (saída no Brasil em 1946) de José Rodrigues Miguéis classifica as histórias como «contos», no entanto, o autor, na carta a Danton Coelho, datada de 1941, menciona-as como «novelas».

    Filha de Labão (1951) de Tomás da Fonseca intitulado pelo editor de «romance» ainda
que o autor a designe por «novela rústica», na página de dedicatória.

Tomás da Fonseca, desenho de Octávio Sérgio (1961)

    Orvalho do Oriente (1981) de Altino do Tojal, surge classificado como romance para, pouco tempo depois, em 1984 (quando se identificam as obras do autor numa outra publicação sua – Os Novíssimos Putos) aparecer catalogado como novela. Mais tarde, Tojal acaba por incluir todo esse livro (composto de três “capítulos”: O Grilo do Pi, Orvalhinho, O Ocidente Misterioso) no Histórias de Macau, um “romance”, como o classifica o crítico J. Pimenta de França (na contracapa do livro) e com a qual o autor não parece discordar como o revelou na entrevista que nos concedeu (Julho de 2001).Teríamos assim, um romance dentro de outro romance! Posteriormente, dois desses “capítulos” originais de Orvalho do Oriente seriam inclusos no livro de «contos» Os Putos, na sua edição de 2001. A versatilidade editorial não se preocupa com catalogações prévias de géneros (que de rígidas nada têm).

    João Gaspar Simões, na nota endereçada ao companheiro José Régio com que abre o romance Amigos Sinceros (1941), sente-se na necessidade de esclarecer o seu desacordo pela decisão da editora em o categorizar como tal: «Não é um romance: é uma novela. Tu sabes que isso para nós significa alguma coisa. Um romance é mais amplo(2) , mais pormenorizado, mais rico. A novela é linear e esquemática: tudo o que nela acontece pertence à economia do desfecho. Os editores, porém, são exigentes: navegam nos ventos do público, e o público, segundo eles, não gosta de novelas. Façamos a vontade ao editor.»

    Pedro Paixão, um escritor de short-stories, quando questionado numa entrevista(3) se não estaria na altura de fazer um romance, responde nestes termos: «mas se chamar simplesmente romance a uma história contada com muitas páginas (…) vou tentar escrever uma só história com muitas páginas.»

    Júlio Conrado, a propósito da 2ª edição do seu O Deserto Habitado, esclarece: «este trabalho, agora rotulado de romance, porque entretanto se foi alargando a classificação do género a obras de média extensão» (1984:10).

    Já José Luís Peixoto, numa recensão no DNA(4) , recorre à metáfora das corridas de atletismo para mostrar como a perspectiva tradicional distinguia os géneros: «O romance seria (…) uma corrida de fundo; a novela seria uma corrida de meio-fundo e o conto seria uma corrida de velocidade.» Acontece que as obras de fôlego ou de síntese não têm, necessariamente, a ver com um esforço diferenciado. Como dizia Heine (citado por Peixoto): «Não fui breve, porque não tive tempo».

Eduarda Dionísio, foto de Luís Souta (2002)

    Mas as fronteiras surgem, às vezes, onde parecia ser óbvia a separação das águas. É o caso da distinção entre prosa e poesia. Esta última, tem vindo a “perder” alguns dos seus traços identificadores, como a rima ou o grafismo. O que provoca equívocos, como nos relata Eduarda Dionísio, na entrevista que nos deu (Julho de 2002), a propósito do seu livro Tina M. provas de contacto (2001): «Já vi em algumas livrarias catalogado como poesia, mas é apenas porque as linhas não chegam até ao fim. É pela mancha gráfica!»

    Irene Lisboa, no seu livro Poesia, entrega-se aos critérios do leitor: «Ao que vos parecer verso chamarei verso, e ao resto chamarei prosa» (1991:238). O verso livre e a poética do quotidiano apontam para uma «linguagem que tende para a prosa mas que a recusa».

    Alguns escritores integram na ficção um tipo de pensamento que habitualmente se exprime pelo ensaio(5) ; e daí recuperarem alguns dos seus artigos, em geral publicados nos jornais, para as suas obras literárias, posteriormente editadas em livro: por exemplo, Aquilino Ribeiro usa extractos dos seus artigos em O Século (10/01 e 05/02/1927), sobre a (in)utilidade de construir escolas no mundo rural, no livro Aldeia. E o autor acaba por ter dificuldade em categorizar a sua própria obra: «se quisesse pôr um rótulo no meu livro, teria que declinar sucessivamente romance, ensaio, folclore, monografia, crítica, didáctica, etc., para me agarrar ao varia de todos os guisados literários» (1946:7). Em Vergílio Ferreira é difícil distinguir o romance e o ensaio; o romance filosófico ou «romance problema» (como ele o preferia designar) mostra como a separação “clássica” de géneros se tem vindo a esbater, ao associar dois tipos que pareciam estar nos antípodas (a criatividade ficcional vs a racionalidade ensaística). Por sua vez, o romancista José Saramago, põe a hipótese de o não ser quando afirma: «sou mais um ensaísta que, por não saber escrever ensaios, se limitou aos romances»(6).

    Os livros com misturas de géneros então são um quebra-cabeças para catalogadores, bibliotecários, arquivistas e livreiros! Este atenuar, ou melhor, esta crescente e intrincada osmose de géneros defende-o, claramente, Cristóvão de Aguiar, na citada entrevista que nos concedeu, designadamente em torno do seu diário: «tem de tudo um pouco: crónica, conto, acontecimentos históricos e acontecimentos baseados na realidade para se tornarem mais bem inventados…». Tal mescla também se encontra em Mário Cláudio (Astronomia, 2015, Os Naufrágios de Camões, 2017, Memórias Secretas, 2018…) onde historiografia, efabulação e biografia intercomunicam.

    Miguel Torga escreveu: «No meu Diário creio que há muita literatura, também» (1946:173), mas para ele as distinções e classificações de géneros não o preocupavam, como o confessa no Diário IX: «Porque sempre considerei os géneros literários camisas-de-força complacentes que cada possesso alarga à sua medida, nunca me senti apertado em nenhum deles» (1964:100).

    Em suma, as fronteiras de género têm-se vindo a tornar bastante fluídas, sendo, em particular na narrativa, cada vez mais difícil a sua categorização de acordo com modelos estanques. A miscegenação de géneros vai-se impondo…

Notas
1. Os inquéritos nacionais efectuados por Freitas et al. (1992 e 1997) mostram que o «romance» é não só o género de livro mais lido (33,5% contra 13,2% de «contos/novelas») como o mais comprado.
2. Apesar das 203 páginas do livro!
3. Entrevista de Pedro Paixão ao Notícias Magazine, nº 313, de 24/05/1998, p. 73.
4. “O mundo em miniatura”, DNA, nº 190, 22/07/2000, p. 47.
5. Face ao espanto de José Gomes Ferreira quando da atribuição do Prémio Ensaio da Casa da Imprensa ao seu livro A Memória das Palavras, em 1965, Augusto Abelaira esclarecia-o «ensaio é tudo o que não é poesia, nem ficção» (in Passos Efémeros de José Gomes Ferreira, 1990, p. 36).
6. Entrevista de José Saramago ao DNA, 12/12/1999, p. 19.

Referências
AGUIAR, Cristóvão de (1978) Raiz Comovida I - A Semente e a Seiva. Coimbra: Centelha.
CONRADO, Júlio (1974) O Deserto Habitado. Lisboa: Âncora Editora, 2ª edição, nova
versão, 1984.
DIONÍSIO, Eduarda (2001) Tina M. - Provas de Contacto. Lisboa: &etc.
FONSECA, Tomás da (1951) Filha de Labão. Publicações Europa-América/ livros de bolso,
nº 32, 1972.
FREITAS, Eduardo de e SANTOS, Mª de Lourdes Lima dos (1992) Hábitos de Leitura em
Portugal. Inquérito Sociológico
. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
FREITAS, Eduardo de; CASANOVA, José Luís e ALVES, Nuno de Almeida (1997) Hábitos
de Leitura em Portugal. Um Inquérito à População Portuguesa
. Lisboa: Publicações Dom
Quixote.
LISBOA, Irene (1991) Poesia: Um Dia e Outro Dia… Outono Havias de Vir. Lisboa:
Presença/ Obras de I.L., nº 1.
MIGUÉIS, José Rodrigues (1946) Onde a Noite se Acaba. Lisboa: Editorial Estampa/ Obras
completas J.R.M., 6ª edição, 1985.
SIMÕES, João Gaspar (1941) Amigos Sinceros. Lisboa: Guimarães Editores, 2ª edição
revista., 1962.
TORGA, Miguel (1964) Diário. Vol. IX, Coimbra.
TORGA, Miguel (1946) Diário. Vol. III, Coimbra, 2ª edição, 1954.
TOJAL, Altino do (1987) Histórias de Macau. Porto: Campo das Letras/ Campo da
Literarura, nº 20, 3ª edição, 1998.
TOJAL, Altino do (1984) Os Novíssimos Putos. Lisboa: Guimarães Editores.
TOJAL, Altino do (1964) Os Putos: Contos da Luz e das Sombras. [Lisboa]: IN-CM/
Biblioteca de Autores Portugueses, 28ª edição revista e aumentada, 2001.
TOJAL, Altino do (1981) Orvalho do Oriente. Lisboa: Sá da Costa Editores.

domingo, 18 de junho de 2023

GENEALOGIA

Luís Santos 

CINCO GERAÇÕES - lado da mãe

1) bisavó Conceição Miranda dos Santos (1878-1968), nasceu ainda antes de Fernando Pessoa, parteira, de Alhos Vedros, teve cerca de vinte irmãos, com fama de santa, porque dizia-se "nunca nenhum parturiente faleceu às suas mãos"... da sua mãe não tinha ideia, mas o meu primo Rodrigo diz que se chamava Iria Rosa dos Santos que faleceu em 1904, e eu acredito;
2) avó Aura Maria Rodrigues (1906-1994, se bem me lembro), corticeira e operária fabril, analfabeta, um percurso temporal semelhante ao de Agostinho da Silva, (quase) inteira travessia do século XX, atravessada pela 1ª República, peste espanhola, 2 grandes guerras, filho na guerra do ultramar, Aura para os amigos, simplesmente;
3) mãe e tia, Lena e Olímpia (nascidas entre a década de 30 e 40 do século passado, a primeira corticeira ainda na adolescência e vida de verdadeira dedicação a marido e filhos; a segunda, uma vida de serviço no Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, em vários países, várias línguas;
4) irmã, Célia Santos, à volta de 50 anos, olhos azuis, portuguesa, licenciada, professora, funcionária pública, casada, mãe, guardiã dos mares, continua a fazer por uma vida bem sucedida;
5) filha, Maria do lado da mãe, Luís do lado do pai, junho de 2023, carinhosa refilona, estudos na área da saúde, aqui na praça Gualdim Pais, em Tomar;
enfim, perdoem-me este lugar comum, género humano, genes que saem de genes, culturas que saem de culturas, nos meus mais de 150 anos de idade, lado da mãe, Ilha dos Amores.

CINCO GERAÇÕES - lado do pai
A MINHA AVÓ paterna, Palmira Ribeiro, nasceu no dia 7 de junho de 1903, em terras do Alto Alentejo, na freguesia do Espírito Santo, Nisa, distrito de Portalegre e faleceu em Alhos Vedros, mais ano menos ano, por volta de 1970. Sabe-se que os seus pais, António Maria Ribeiro e Maria Catarina, ou ancestrais, vieram do distrito de Castelo Branco, freguesia de Peral, lá para os lados onde viveu Viriato, chefe dos lusitanos, e donde vieram alguns cristãos-novos...
Por isso, António Maria Ribeiro, meu bisavô, terá vindo a descer Estrela abaixo e, atrás da cortiça, veio montar fabrico em Alhos Vedros que foi próspero, mas a má gestão de descendente familiar direto haveria de dar cabo do negócio.
O MEU AVÔ paterno, José António dos Santos (1887-1962), natural de Alhos Vedros, filho de Luiz António e de Mariana dos Santos. Foi ajudante de caldeireiro dos caminhos de ferro do sul e sueste. Tinha 1 metro e 55 centímetros de altura e "Milho" como alcunha. Viveu, pois, muito tempo ajudando a pôr carvão na caldeira do comboio, entre o Barreiro e Vendas Novas, lugar onde terá tido uma segunda mulher que deu à luz uma tia minha que nunca cheguei a conhecer.
De maneira que o MEU PAI, António Luís Ribeiro dos Santos, mais conhecido por Toninho da mercearia, justamente porque foi merceeiro por conta própria durante 60 anos, a que se podem juntar mais uma dúzia por conta de outrém, resultou de um encontro entre pessoal do Espírito Santo (Nisa) e pessoal da borda água (Alhos Vedros) que, em tempos idos, também terão andado a preparar as caravelas que haveriam de ir ao Brasil e à Índia, entre outros.
EU, nascido em Alhos Vedros, 1960, mesmo paredes meias com uma janela da taberna do Martinho, onde as carretas e as carroças vinham despejar uvas, logo pisadas e fermentadas a caminho do generoso vinhito com que se alegravam as almas, um simples escriba contador de memórias, muito dedicado ao longo dos anos às matérias da educação.
O MEU FILHO Tomás, também nascido em Alhos Vedros, em 1996, genes que vêm de genes no cruzamento de famílias, depois de trabalhar nos aviões, anda em engenheirices programando aplicações dando novas vidas às tele-comunicações.
Em suma, aqui borda de água, gente comum que para sobreviver se foi dedicando, ao longo deste século e meio, à indústria corticeira, aos caminhos de ferro, também à CUF (Companhia União Fabril), às vendas a retalho e, mais recentemente, entre os vivos da linhagem, à persistência em maiores estudos, outras especializações, que mais permitiu uma maior democratização e massificação do ensino.

domingo, 4 de junho de 2023

50ª Feira do Livro de Alhos Vedros

Exmos Senhores

Quando em 1972 a juventude da ACADEMIA MUSICAL E RECREATIVA 8 DE JANEIRO sonhou e fez a I FEIRA DO LIVRO DE ALHOS VEDROS, ainda se escreviam cartas à mão com canetas de tinta permanente ou em máquinas de escrever, peças que hoje constituem maravilhosas antiguidades.

Automóveis eram escassos, os telefones eram raros, poucos tinham televisão, muitos não sabiam ler nem escrever, os meninos e as meninas aprendiam em escolas separadas, muitos livros eram proibidos e no concelho da Moita não havia ensino secundário. Jovens morriam quase crianças na guerra colonial, havia presos políticos, não havia parques infantis, nem recintos desportivos, a mortalidade infantil era alta. As gentes de Alhos Vedros trabalhavam na cortiça, nas confeções e nas salinas, na Cuf e no Caminho de Ferro.

Neste contexto nasceu uma Feira do Livro em Alhos Vedros. Foi uma festa, primeiro sonhada e depois erguida. Um grande músico português Fernando Lopes Graça, depois de ter cá estado com o coro que dirigia, disse ao jornal Notícias da Amadora em 1973: Isto é Heróico!

Este ano vai acontecer a 50a FEIRA DO LIVRO. É a feira do livro associativa mais antiga do país e não se conhece outra no mundo. Só foi interrompida em dois anos de pandemia e durante 48 edições foi montada e desmontada diariamente. Já se realizou em meia dúzia de locais e este ano acontecerá no FAVO (Fábrica de Artes e Ofícios) junto ao Depósito da Água.

Terá livros principalmente de autores locais, pois promover e mostrar o que é nosso, é o lema que nos move. Haverá lançamento de livros, música, tertúlias, animação, exposições, amizade, encontros e cultura e moscatel para brindar.

Precisamos de alguma ajuda para continuarmos esta marcha que muito nos orgulha e que engrandece esta terra, a sua cultura e a sua história de que a Feira do Livro já faz parte com meio século de existência.

Se puder ajudar esta FEIRA DO LIVRO QUE É DE TODOS NÓS, aqui fica o IBAN da Academia. Qualquer quantia é uma boa quantia. Toda o apoio vale a pena.

PT50003504830001443383048

E fica desde já convidado a visitar a FEIRA do LIVRO de 29 de Junho a 2 de Julho no FAVO.

 

Antecipadamente gratos

VIVA A FEIRA DO LIVRO DE ALHOS VEDROS

A Direção da Academia Musical e Recreativa 8 de Janeiro de Alhos Vedros


Cartaz da autoria de Rafael Nascimento

quinta-feira, 25 de maio de 2023

EDUARDA DIONÍSIO


Faleceu esta segunda-feira, 22 de maio, a professora, escritora e dinamizadora cultural Eduarda Dionísio.

 Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professora do ensino secundário e escritora (recebeu o Prémio Literário Pen Club com o livro Histórias, Memórias, Imagens e Mitos duma Geração Curiosa, 1981).Se os dias do PREC «não abalaram o mundo» marcaram, pelo menos, e para sempre, as nossas vidas. Enquanto escritora, não deixa de nos recordar (entre a nostalgia e algum desalento, mas com uma clarividência penetrante e serena) esse turbulento viver colectivo, pleno de mutações, rupturas e clivagens. Foi a grande dinamizadora da Casa da Achada (dedicada ao seu pai, o prestigiado escritor Mário Dionísio), como anteriormente o havia sido com a Associação Cultural «Abril em Maio».

Deixamos aqui o endereço de um artigo de Eduarda Dionísio publicado pela Medi@ções, revista digital da Escola Superior de Educação de Setúbal, como diz Luís Souta "em homenagem mínima a uma importante escritora que se considerava sobretudo professora" que um dia a convidou para abertura de ano letivo do qual resultou o texto "Cinquenta e cinco anos ao toque da campainha".

Ler no seguinte endereço: https://doi.org/10.60546/mo.v1i2.41

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Encontro Interno

 Espiritualmente um encontro interno é aquele que quase todas as noites acontece connosco entre as 2 e as 3 horas da madrugada. Não um encontro da nossa personalidade, da nossa mente, mas das nossas Almas, com o Ser ou Seres de Luz que nos acompanham e guiam desde o primeiro momento em que encarnamos. São muito poucos aqueles em que lhes é permitido recordarem o que se passou nesse estado de sono profundo. Nesses encontros internos somos educados, sem julgamento, ou crítica, a corrigirmos possíveis erros que tenhamos feito, assim como a prepararem-nos para os acontecimentos do dia seguinte. Sucede que em muitas situações, principalmente quando receamos o que nos aguarda, somos levados em Alma, a visitar os locais para onde iremos com o fim de nos acalmarmos. É o que chamamos de "DÉJÁ VUE", o depois reconhecermos no estado de vigília, aquele local, onde temos a certeza de nunca lá termos estado anteriormente. Esse DÉJÁ VUE também acontece quando retornamos a locais onde já vivemos em reencarnações anteriores!

Bem Hajam!

António do Carmo Alfacinha 


segunda-feira, 15 de maio de 2023

“Literatura: o pão nosso de cada dia”(XIV)

 Luís Souta

CULTURA DOS ADULTOS E CULTURA DAS CRIANÇAS 

«Olham os poetas as crianças das vielas
mas não pedem cançonetas mas não pedem baladas
o que elas pedem é que gritemos por elas»
(“Os olhos das crianças”, Sidónio Muralha1, 1963: 93) 

A criança é um “outro”, no mundo dos adultos, um ser que durante muito tempo foi visto como inacabado, imperfeito, incompleto – “homúnculos”, seres sociais “em trânsito” – como os designa Sarmento (2000:148). Eram percepcionados como gente em défice, a quem faltavam atributos, e entre estes a “não-razão” era o mais marcante nessa negatividade. Gente que vive no imaginário, na fantasia, para além do real. E aí constrói um “mundo” à parte, o “faz-de-conta” do jogo e da brincadeira permanentes. Aqui se pode vislumbrar uma certa tendência valorizadora, criada em torno da ideia de uma “idade da inocência”. E em redor dela se foram construindo representações míticas, encantatórias, interpretações mais ou menos abusivas de comportamentos e atitudes infantis, que decorriam, no essencial, do desfocado olhar adultocêntrico. Mas esta imagem não tinha implicações sociais relevantes. A pequenada não deixava de ser invisível em termos de direitos e de estatuto. Remetida quantas vezes para as margens do viver colectivo, insegura, sem qualquer autonomia, dependente da vontade, do capricho e do autoritarismo do adulto. A sua condição “pré-social” facilitava a sua despudorada e precoce integração, quantas vezes desumanizada, no mundo laboral agrícola ou industrial.

Eduardo Lourenço

Só no último quartel do século XX se pode falar na infância como categoria social, a quem são reconhecidos direitos e um estatuto de dignidade plena. E a sua importância na contemporaneidade cresceu de tal modo que Eduardo Lourenço chega a falar na «adulação permanente e espectacular da criança-rei» (1978:134), o que não andaria muito distante da «criança bibelot» que Philippe Ariès tipificou. À criança nada se nega, tudo lhe é devido, tudo se faz (e compra)2 para a manter num estado etéreo de permanente felicidade. Toda uma indústria cultural e de animação para crianças, onde os media e a publicidade assumem uma importância vital, floresce e alimenta a aquisição desenfreada de produtos e serviços que não só levanta fortes suspeições quanto às suas potencialidades pedagógicas de desenvolvimento e formação das crianças, como as conduz para uma «adultização precoce». O cadinho social em que estes fenómenos se geram é propício: impera a tetralogia dos valores da pós-modernidade – consumismo, hedonismo, permissividade, relativismo. E por outro lado, o trabalho a tempo inteiro do pai e da mãe fora do lar, reduz de forma drástica o tempo dedicado ao convívio com as crianças (“despejadas” muito cedo nas creches e escolas básicas a quem se delegam responsabilidades quase exclusivas na sua educação). Mas, mais grave ainda, as rupturas familiares, pelo número inusitado de divórcios3, leva a separações e ausências de um dos progenitores (em regra, o pai). Quer uma quer outra situação, deixa os ascendentes com um sentimento de falta e de “culpabilização”, que procuram ressarcir através da oferta constante de presentes, quantas vezes antecipando-se aos desejos (nem sequer formulados) dos seus filhos: «compensar os filhos é comprar o seu perdão» (Emílio). Melhor não faz o “substituto”, que recompõe a estrutura familiar, pois querendo conquistar a criança, acaba também ele(a) por cair em práticas similares.

Praticamente o único dever que se exige à criança, nos nossos dias, é ir à escola e estudar. De facto, operou-se uma verdadeira inversão no lugar da criança e da escola nas sociedades modernas. Ambas, ganharam centralidade. Na escola passa-se mais tempo diariamente e nela se estuda durante mais anos, face a uma escolaridade aumentada pela antecipação da idade de entrada e prolongada na idade de saída.

Crianças e escolas vivem processos de autonomia e diferenciação. Por isso, faz hoje todo o sentido falar de “culturas infantis” e “culturas escolares”. Mas ao adulto (seja pai ou professor) continua a faltar-lhe o entendimento da epistemologia da criança, como Iturra a denomina, «o conjunto de conceitos com os quais orienta o seu agir»: as crianças dispõem de uma «mente cultural», fruto de uma genealogia marcada pelas interacções sociais e pelas vicissitudes da conjuntura histórica, que lhes permite apreender a realidade e dar-lhe sentido. A criança seria dotada de uma sensibilidade e de uma racionalidade próprias, distinta (ou alternativa) da do adulto. Esse aparato intelectual permite-lhe a construção de conhecimentos com que ela estrategiza o seu viver quotidiano, na rua, com os companheiros, com os vizinhos e com seus familiares.

Em que medida não é o desconhecimento desses mecanismos inerentes à criança a causadora de uma certa ineficácia educativa da instituição escola? Esta, com todo o seu corpo de saberes descontextualizados (onde prevalece o formal, o geral, o cognitivo, em detrimento do significativo, do contextual e do afectivo), a sua linguagem hermética, as suas mega-finalidades e o seu aparato organizacional uniformizador de comportamentos, acaba por conduzir àquilo a que Filipe Reis (1995) chama de «domesticação escolar do pensamento infantil». A «robotização dos alunos» acaba por ser o resultado dessa linha de montagem.

Agostinho da Silva

Tal como o anotava Agostinho da Silva «as nossas escolas apenas são formadoras de respostas»4. Não se valoriza a pergunta, mas a resposta, «quando é a pergunta que nos faz caminhar» (Cabral, 2001:897). Incentiva-se a convergência, não a divergência. A unicidade no pensamento e na acção. A criança sente-se, neste quadro, como uma espécie de “estrangeiro”, num espaço que não domina, com regras que não conhece, símbolos que não descodifica, objectivos que não partilha, valores que a ultrapassam, hábitos que não tem, condutas que não praticou, ritmos e horários que a condicionam… Ali o seu «capital cultural» de pouco ou nada vale. E este desajuste é mais evidente se ela pertence a uma geração que frequenta a escola pela primeira vez (comum entre comunidades ciganas e piscatórias), ou se, no seio familiar, dela há apenas uma memória de fracasso e abandono. Em ambas as situações, a criança fica entregue a si mesma, sem retaguarda que a ampare, a oriente e a incentive. Então, não lhes resta outra saída que não seja encetar um novo ciclo de aprendizagens sociais e culturais… mas aí nem todos demonstram vontade, energia e persistência.

Spindler & Spindler dão particular ênfase à cultura, entendida não como um simples factor, influência ou dimensão; para eles, cultura é «in process, in everything that we do, say, or think in or out of school» (1993:27). E a escola é vista como «a mandated cultural process» e o professor como um agente cultural. Ora sabendo que o processo educativo procura uma “intervenção calculada” na aprendizagem, há que ter em conta que os alunos não só aprendem uns com os outros como trazem para a escola imensas aprendizagens. Estas duas “fontes” do saber, por escaparem ao controlo do professor, podem vir a constituir factor de perturbação pois interferem nos processos de ensino. Tomar consciência dessa diversidade cultural e alterar o currículo tal como o preconiza Céu Roldão, ou seja, tendo em conta os contributos que a antropologia trouxe (e também a linguística) para o reconhecimento da «complexidade do desenvolvimento dos modos de pensamento» assim como da diferenciação entre o pensamento das crianças e dos adultos (1994:181) são condições essenciais para uma acção educativa apostada no sucesso, evitando-se os abandonos precoces.

«Por essa altura o Júlio começou a andar esquisito. Não ria, não falava, não se interessava pelos jogos, aparecia menos vezes lá em casa. Não sei se seria o mais inteligente, mas era o que sabia mais. Trazia sempre as lições na ponta da língua, não se enganava nas contas nem dava erros no ditado, papagueava a história e a geografia, os rios, as serras, as linhas férreas. Era o melhor aluno, mas o pai trabalhava numa fábrica de ferragens e não tinha meios para o mandar para o Liceu, nem sequer para Escola Comercial e Industrial. O Professor Lencastre ainda foi falar com ele. Mas nada a fazer, o Júlio estava condenado à oficina. Então perguntei aos meus pais porque é que uns podiam ir para o Liceu, mesmo que fossem burros e outros, como o Júlio, não, apesar de ser o melhor da classe? Responderam-me que a vida era assim. Eu achava que a vida estava mal. Era ainda mais injusto do que uns andarem de sapatos e outros não. Também o Professor Lencastre estava revoltado. Julgo até que ele começou a fazer de propósito para assustar mais uns tantos e obrigá-los a desistir do exame de admissão. Agarrava-os pelos pés, batia-lhes com a cabeça no chão e perguntava: Queres ser doutor, pequenino, queres ser doutor? Só se for da mula ruça.

Dizia que valia mais um dedo do Júlio do que as cabeças deles todas juntas. Mas eles não desistiram.» (Alma, Manuel Alegre, 1995:199-200)

Notas

1. Exposição “Sidónio Muralha: Caminhada insubmissa”, Museu do Neo-realismo, Vila Franca de Xira, de 15/04 a 22/10/2023.

2. Sintomático é o mote da campanha de vendas, promovida pela cadeia de supermercados “Pingo Doce”, em 2003: «Sua Excelência, o Bebé!».

3. Segundo o INE, os Censos de 2021 mostram que «nos últimos 10 anos, aumentou a importância relativa da população divorciada», representado já 8% dos residentes em Portugal (um aumento de 2 pontos percentuais em relação ao censo anterior). Em 2021, registaram-se 17.279 divórcios. Por cada 100 casamentos, 70 divórcios!

4. In DACOSTA, Fernando (2001) Nascido no Estado Novo. Lisboa: Editorial Notícias/ Obras de F.D, p. 362. 

Referências

ALEGRE, Manuel (1995) Alma. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

CABRAL, Ruben de Freitas (2001) “Os desafios à educação na Europa do séc. XXI”. Brotéria, vol. 153, nº 5, Novembro, pp. 877-900.

LOURENÇO, Eduardo (1978) O Labirinto da Saudade. Psicanálise Mítica do Destino Português. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 3ª edição, 1988.

REIS, Filipe (1995) “A domesticação escolar do pensamento infantil: perspectivas teóricas para análise das práticas escolares”. Educação, Sociedade & Culturas, nº 3, pp. 37-55.

SARMENTO, Manuel Jacinto (2000) “Sociologia da Infância: correntes, problemáticas e controvérsias”. Sociedade e Cultura 2, Cadernos do Noroeste, Série Sociologia, vol. 13, nº 2, pp. 145-164.

SPINDLER, George e SPINDLER, Louise (1993) “The Processes of Culture and Person: Cultural Therapy and Culturally Diverse Schools” in Patricia Phelan e Ann Locke Davidson (eds.) Renegotiating Cultural Diversity in American Schools. NY and London: Teachers College Press, pp. 27-51.

sábado, 6 de maio de 2023

Porto Seguro

 


Porto Seguro
2023

Kity Amaral

Lembra-nos o Monte Pascoal. Da aproximação à margem e dos olhares inseguros desnudados tupiniquins nas margens da praia dos belos penteados e dos penachos de aves na cabeça em forma de toucado. Depois havia foi espetada uma cruz e houve missa. Uns foram mata a dentro e haviam de retornar e de voltar outras vezes, muitas vezes. Havia uma índia e um lenço cossado e arrussado pelo tempo que lhe foi doado colocado amor ao pescoço. A pele morena arrepiante. E foi assim. (Luís Santos)

sábado, 22 de abril de 2023

“Literatura: o pão nosso de cada dia”(XIII)

 Luís Souta

ANTROPOLOGIA DA EDUCAÇÃO

«Antropologia e educação parecem constituir, hoje, um campo de confrontação, em que a
compartimentação do saber atribui
à antropologia a condição de ciência e à educação, a condição de prática.»
(Neusa Gusmão, Cadernos CEDES, nº 43, 1997:9) 

A Antropologia da Educação é um campo disciplinar relativamente jovem. Quer aposicionemos na área da Antropologia quer a vendo como a mais recente das Ciências da Educação. A Antropologia da Educação autonomiza-se em meados dos anos 50 nos Estados Unidos da América e consolida-se, no último quartel do séc. XX, com George Spindler, John Ogbu, K. Wilcox, F. Eric kson, entre outros. Os seus antecedentes são possíveis de detectar logo nos trabalhos fundadores da disciplina, quando os antropólogos se interessaram pelos processos de endoculturação e socialização das crianças nas sociedades ditas “tradicionais”. Franz Boas (1858-1942) e Nina Vandewalker, com trabalhos em 1898, são os primeiros antropólogos a escrever sobre educação e antropologia. O grande impulso metodológico, que lança as bases do trabalho de campo, vem de Bronislaw Malinowski (1884-1942). Por sua vez, Margaret Mead (1905-1978), ao analisar a educação nos EUA, defende que certos tipos de escola necessitam de professores específicos, e que serão tanto melhor professores quanto forem capazes de conhecer, pela observação e experiência, os contextos particulares de socialização dos seus alunos.

Margaret Mead

A Antropologia da Educação nasce numa zona charneira, de confluência disciplinar onde se cruzam antropólogos e educadores (muitas das vezes essa dupla filiação encontra-se reunida numa só pessoa); esse diálogo teórico-prático, alargou o enquadramento de análise no qual se encontravam por resolver alguns “nós górdios”, como o do insucesso escolar, por exemplo. No caso português, a obra de Iturra (1990) foi um marco para um outra abordagem a esse crónico problema do nosso sistema educativo (“Insucesso escolar: o sucesso do sistema”, como o exprimia Rui Grácio (1980). A Antropologia da Educação abriu fissuras no mainstream educativo onde a teoria meritocrática e a teoria dos dons continuavam a dominar.

Outra das temáticas para qual a Antropologia da Educação veio dar um forte contributo, prende-se com as questões da heterogeneidade racial e étnica, que estiveram na sua origem histórica, e o da pluralidade social e cultural das sociedades modernas. Ou seja, o problema da alteridade que se colocava de novo e que tem sido um dos objectos centrais da Antropologia ao longo do seu percurso disciplinar. Procurar entender e explicar uma cultura que não é a sua foi sempre a tarefa do antropólogo. Só que agora a diversidade de culturas, de formas de pensar, de agir e de ser, se faziam sentir no terreno do próprio investigador, não no exótico longínquo de outros continentes a colonizar. Analisar de forma compreensiva e não etnocêntrica estas situações de descontinuidade cultural, que geram fortes desigualdades dentro do próprio sistema educativo, foi uma importante achega dos antropólogos da educação. Nos contextos multiculturais, a Antropologia desbrava novos trilhos no conhecimento da complexidade das culturas periféricas, invisíveis e do silêncio e da compreensão dos fenómenos de hibridação cultural e das novas identidades (re)construídas.

Os antropólogos alertaram para a necessidade de os professores descentrarem os “problemas” dos alunos para um contexto mais vasto, extra-escola, na qual a articulação com os grupos domésticos e as comunidades locais poderia ser uma das chaves para esse atravessar  de fronteiras culturais que possibilitaria um novo tipo de relacionamento pessoal e pedagógico. Nesse sentido, é imperioso sair do pequeno mundo fechado (e artificial) da sala de aula, saltar os muros da escola, conhecer as comunidades reais pois «é preciso entender o que o lar ensina», como nos determina Raúl Iturra (1997:37). E reconhecer isso, é abandonar a ideia (quantas vezes geradora de uma acção improdutiva) de o aluno como “tábua rasa”, qual “esponja” disponível para absorver todo o saber escolar1, formatado num «pensamento positivista e racionalista» de que já Aquilino Ribeiro nos dava conta em A Via Sinuosa:

«o ensino oficial, francisante, tão falho de sentido como pretensioso em considerar a vida como um debate em que só jogam elementos racionais» (1918:345).

Aquilino Ribeiro, 1952

Alguns resultados são já visíveis, quando se passaram a considerar como tarefa do acto educativo, o promover a identidade cultural dos alunos, o fomentar a herança cultural pela manutenção dos laços com a sua língua, tradições e costumes de origem, o reconhecer a sua experiência social e cultural como válida e significativa, o respeitar os ritmos e estilos de aprendizagem e de desenvolvimento de cada um (Cardoso, 1998, 2001, 2001a). Ir além do consignado nas orientações curriculares e nos perfis de desempenho profissional, e pôr em prática «pedagogias da divergência e não apenas de convergência», como o propõe Ricardo Vieira (1999a:152), é um dos desafios que se coloca à generalidade dos professores e não apenas àqueles que enveredaram pelos complexos e atribulados caminhos da educação multicultural.

O terceiro grande contributo da Antropologia como ciência para a pedagogia como prática, veio da sua especificidade metodológica. O método etnográfico tem ganho adeptos no seio da comunidade escolar. Investigadores educacionais, ligados aos métodos qualitativos (desenvolvimento de projectos de investigação-acção, estudos de caso, histórias de vida) e Professores apostados num posicionamento construtivo, reflexivo e investigativo perante um currículo em acção, têm encontrado no instrumental antropológico as ferramentas operativas para esse trabalho de campo, situado e contextualizado. Numa investigação cada vez mais centrada na escola, nas práticas concretas de professores e alunos, e nos territórios educativos, os saberes metodológicos desenvolvidos pela Antropologia revelam-se de uma enorme utilidade e eficácia (cf. Caria, 1997). A observação participante tem-se, por isso mesmo, vulgarizado a tal ponto que a antropóloga brasileira Neusa Gusmão, que realizou trabalho de campo em várias escolas de Portugal, alerta para o risco que se corre, quando os professores aplicam a técnica, despem a teoria e num processo de reducionismo da antropologia fazem «participação observante em vez de uma observação participante»2. Uma prática até certo ponto compreensiva, quando no profissional da educação há, em primeira instância, a preocupação natural com a “acção” quotidiana, imediata, quantas vezes urgente, no cumprimento de deveres funcionais com os seus alunos, junto dos colegas e da administração. Daí o relegar-se para um outro plano a “investigação”, que implica uma outra atitude, até de um certo distanciamento face aos problemas concretos que urge resolver (e numa instituição viva como a escola, povoada de tantos actores e com tantas carências, os problemas são o trivial naquele viver colectivo). Esta inversão metodológica de que nos alertava Neusa Gusmão, é um “mal” transitório, assim o esperamos, pois a formação dos professores tem vindo a pautar-se por padrões de qualidade e exigência acrescidos (o mestrado é hoje a habilitação mínima indispensável) e a tornar-se uma prática permanente (quer nas modalidades de formação contínua, complementar ou especializada). Sendo assim, a aquisição de competências metodológicas neste domínio e o contacto com o conhecimento acumulado na área da Antropologia da Educação parecem-nos inevitáveis, senão a curto, pelo menos a médio prazo.

Numa fase inicial, a Antropologia da Educação colocou-se a montante do processo educativo formal. Centrou-se naturalmente nesse mundo “para além da escola”, nos contextos familiares e comunitários onde a criança aprende a integrar-se no grupo, a fazer sua a cultura desse mesmo grupo. Preocupou-se com as aprendizagens informais inerentes aos processos de endoculturação dos grupos sociais. Privilegiou os saberes locais. A aprendizagem e a transmissão da cultura inicia-se muito antes da entrada formal na escola e mantém-se mesmo enquanto esta decorre. Ora esta realidade educativa e cultural, exterior ao universo escolar,tendia a ser  ignorada, subestimada ou mesmo desvalorizada pelos agentes responsáveis das instituições escolares que «terão hierarquizado o que apenas é diferente» (Vieira, 1999:80). Incompreensões, mal entendidos, desajustes, choques, conflitos, eram o resultado desses «dois mundos à parte». O olhar etnocêntrico ou discriminatório da escola, muitas das vezes sem disso ter consciência, sobre práticas culturais dos seus alunos, dos seus grupos domésticos e comunidades de origem (Carlos Cardoso, em relação às famílias e comunidades das minorias, fala mesmo num «olhar socialmente patológico», 2001:22) conduzia a becos sem saída: a rentabilidade académica era afectada, o relacionamento era tenso, o insucesso emergia, o abandono fechava o ciclo. E tudo por desconhecimento da forma como essas crianças operavam em termos culturais, de como elas dão sentido à realidade. A Antropologia da Educação, combinando a análise emic e etic, deu visibilidade a esses mecanismos e desocultou os processos de subalternização ou marginalização. Habilitou os professores com novos saberes, que lhes permitiram deixar de ver no aluno a “causa” exclusiva do fracasso escolar. Repensar os processos de ensino, e a organização interna das próprias escolas passou a ser um objectivo estratégico. Um modo de equacionar práticas ancestrais num espaço pouco dado à mudança e à auto-crítica.

Mais recentemente, a Antropologia da Educação passou também a interessar-se pela escola, enquanto instituição autónoma, com vida própria. Consequência lógica da centralidade que a escola tem vindo a ganhar na generalidade das sociedades contemporâneas. Uma das instituições a que mais anos se está ligado e umas das mais importantes para dar o sentido de coesão e continuidade sociais a um qualquer país. Durante bastante tempo, a escola foi um campo de trabalho relativamente descurado pelos antropólogos (as sociedades sem escrita não a conheciam). No entanto, a escola reúne condições similares às que a tradição da pesquisa antropológica encontrou noutros objectos de estudo. A saber: comunidade pequena em termos numéricos, bem delimitada em termos espaciais, relações personalizadas entre actores sociais, certa unidade e coerência interna que lhe advêm de objectivos mais ou menos comuns, e um certo conservadorismo nos seus propósitos de acção. Tudo isto permite que dela se tenha uma visão de conjunto, sendo possível abarcá-la como um todo. Esta preocupação em conhecer o seu funcionamento, por dentro, decorre, nomeadamente, da crescente heterogeneidade cultural das populações estudantis, que introduziu ainda mais complexidade à tessitura escolar. Hoje, nela interagem diversificados actores sociais, portadores de identidades, lógicas e estratégias, de poder e de resistência, diferenciadas e, não raras vezes, contraditórias e até conflituais. Saber como a escola se organiza e gere, segundo princípios de inclusividade vs. exclusividade, as pluralidades de apropriação dos espaços da escola e dos seus saberes, é um dos objectivos de estudo da Antropologia da Educação. A análise das dinâmicas endógenas à escola pressupõe um trabalho etnográfico desse ritualizado quotidiano educativo. Conhecer e entender a “cultura escolar”, nas suas reconfigurações temporais, é possibilitar, ao conjunto da chamada «comunidade educativa», a reflexividade institucional que (re)orienta as racionalidades que procuram dar sentido à acção educativa formal.

Em suma, e socorrendo-nos de Henry Trueba, podemos definir Antropologia da Educação como uma disciplina que «attempts to identify the schooling experience of children and the role of the family in children’s education from the perspective of the home culture, and to examine school problems in their cultural context» (1993:196).

Notas

1. Cf. Paulo Freire e a sua crítica à concepção “bancária” da educação.

2. Intervenção de Neusa Gusmão no seminário de doutoramento, ISCTE, 25/10/2001.

Referências

CARDOSO, Carlos (coord.) (1998) Gestão Intercultural do Currículo – 1º Ciclo. Lisboa: ME-Secretariado Coordenador dos Programas de Educação Multicultural/ Educação Intercultural, nº 10.

CARDOSO, Carlos (coord.) (2001) Gestão Intercultural do Currículo – 2º Ciclo. Lisboa: ME-Secretariado Entreculturas/ Educação Intercultural, nº 11.

CARDOSO, Carlos (coord.) (2001a) Gestão Intercultural do Currículo – 3º Ciclo. Lisboa: ME-Secretariado Entreculturas/ Educação Intercultural, nº 12.

CARIA, Telmo H. (1997) “Leitura sociológica de uma experiência de investigação etnográfica”. Sociologia -Problemas e Práticas, nº 25, pp. 125-138.

GRÁCIO, Sérgio (1980) “Insucesso escolar: o sucesso do sistema”. Escola, nº 25, Maio-Junho 1982, pp. 22-4.

ITURRA, Raúl (1990) Fugirás à Escola para trabalhar a terra: ensaios de Antropologia Social sobre o insucesso escolar. Lisboa: Escher/ A aprendizagem para além da escola, nº 1.

RIBEIRO, Aquilino (1918) A Via Sinuosa. Amadora: Livraria Bertrand/ Obras Completas de A.R., 1983.

TRUEBA, Henry T. (1993) “Culture Diversity and Conflict: The Role of Educational Anthropology in Healing Multicultural America” in Patricia Phelan e Ann Locke Davidson (eds.) Renegotiating Cultural Diversity in American Schools. NY and London: Teachers College Press, pp. 195-215.

VIEIRA, Ricardo (1999) Histórias de Vida e Identidades: Professores e Interculturalidade. Porto: Edições Afrontamento/ Biblioteca das Ciências do Homem, nº 31.

VIEIRA, Ricardo (1999a) “Da Multiculturalidade à Educação Intercultural: a Antropologia da Educação na Formação de Professores”. Educação, Sociedade & Culturas, nº 12, pp. 123-162.

segunda-feira, 17 de abril de 2023

UMA SALADA DAS NOSSAS

 Luís Santos

Salina da Fonte em Alhos Vedros

Aqui nesta região, distrito de setúbal, margem sul do Tejo, a exploração do sal é atividade que se perde em tempos atrás dos tempos, idade da pedra. Os processos de produção foram-se alterando, mas o sal foi (e ainda é) um elemento fundamental na alimentação e na preservação dos alimentos, mas não só. O seu uso mais que terapêutico está bem explícito numa das boas aventuranças cristãs: “sois o sal da terra”.

Por exemplo, nos vedros onde se cristalizaram marinhas, ou nos vestígios de antigas cetárias, relembram-se sinais da ocupação romana do lugar que nos trazem à memória Equabona, ou Aquabona, nome romano de Coina antiga, posteriormente moura, lugar de elogiadas medicinais, ou no lugar que costumamos designar por “Alius Vetus” (nem que o topónimo tenha sido inventado em tempo posterior), entre outros lugares do distrito, a produção de sal e a salga do “garum”, pasta de peixe que se produzia e circulava por todos os cantos do vasto império que circundava o “mare nostrum”, era coisa sagrada.

Sal que por aqui tinha elevada qualidade, branquíssimo, puríssimo, que valia o seu peso em ouro, facilitador de fortunas imensas que não para os marnotos. De resto, sal donde provém a palavra salário... um tipo de moeda corrente a um tempo com que se "pagavam os salários", mas também absolutamente precioso, para preservar peixe e carne, com que se enchia a barriguinha e dava força extra aos infindáveis exércitos e aos divinais bacanais dos democratas cidadãos de Atenas ... até que chegaram os frigoríficos.

Além da importância do sal e das boas águas de prata que brotavam das fontes, em nascentes que por debaixo da terra vão descendo desde a Arrábida e se estendem pelo vale do Tejo, existe uma famosa planta de folhas verdes, alimento de utilizações várias que vão desde os embalsamamentos e mumificações, até ao uso na cura de várias doenças. A salicórnia, de seu nome científico, mas também conhecida popularmente por espargos do mar, ou cristo marino, ou alhos verdes… Diz no portal “Horta dos Peixinhos”, uma das empresas que promove a sua cultura, um alimento extremamente versátil que cresce ao longo das salinas costeiras do mediterrâneo, podendo ser consumida crua ou cozinhada, numa grande diversidade de pratos, planta diurética e medicinal, rica em vitaminas e sais minerais que possui características imuno-estimulantes, antioxidantes, anti-inflamatórias, anti-tumorais e antidiabéticas, contribuindo para a prevenção de problemas de hipertensão artéria. E, certamente, um dos ingredientes da poção mágica dos gauleses, Astérix e Obélix, acrescentamos nós.

Eis o resumo perfeito para um texto que se quer curto: os alhos verdes, mais os seus sais e o sal, e as águas de prata, pretensa salada do rejuvenescimento, elixir da longa vida e da imortalidade, qual pedra filosofal. 

E, agora, que nos ajudem os fitoterapeutas.


sexta-feira, 17 de março de 2023

Cavalos de Pedra

Paulo Landeck



Fogem do peito,

Infindáveis cavalos de potência!

Sim, incomensuráveis,

na transmudação de íntimas memórias.

Garranos à solta.

Negras são as rochas,

dizem os fangueiros;

Pois eu digo:

Galopam no escuro em reflexos de azul!

(Sacudidas as grávidas nuvens,

por cósmica poeira

Verdejante.)

Como mar revolto

espreito costa.

Visceral cavalo emerge das profundezas, 

para sulcar vagas.

Não serei náufrago,

de variações pronominais

- por valor Indicativo de relações existentes -.

Aparelho minhas forças ao indomável Oceano.

Debaixo de nobilíssima coudelaria

abundam estratos de outras dimensões,

vidas de barro.

De Alter

Ego,

ao perfeito ocaso,

fulgurante espelho líquido

da vitalidade.

Alma

e lezíria.

Sabe que a pureza do sangue 

não vem da raça,

quem cavalga universos e destinos, 

em liberdade! -

Não obstante, 

petrificados cavalos acorreram ao 

mar,

cumpridos desafios. -

Indomáveis

vagas.

A vida é sempre repto

para os mustangs

em campo aberto.

Assim também no campo-santo

do Atlântico,

onde correm livremente cavalos selvagens.  - Sonho ser Ilha de Sable.

-

Omnipotente, 

apenas o céu,

rasgado por Deus,

como se

Domador

de silêncios.

Domar a dor,

como quem aplaina e cerca ímpetos selvagens

onde terra e céu se confundem,

sem jamais se tocar.

Para que do galope reste ilusão,

nuvem de partículas, 

por assentar.


sexta-feira, 10 de março de 2023

Literatura: o pão nosso de cada dia (XII)

Luís Souta

MEMÓRIAS E TESTEMUNHOS

infância e adolescência na literatura


«Alguém viu a literatura como infância recuperada. 
Por isso escrevo, sim»
(Mortal e Rosa, Francisco Umbral, 2003)
  

O escritor dá testemunhos valiosos, nas suas obras, da infância, da adolescência e, naturalmente, dos tempos de escola: «A escola não esquece nunca mais!» (Novos Contos do Gin, Mário-Henrique Leiria, 1973:106).

As recordações desse “éden” etário, esse universo mágico (em particular o da infância1, que muitos escritores perseguem e que à distância é visto como o “paraíso perdido”), giram, frequentemente, em torno da escola; tal denota uma certa ausência de vida própria, muito circunscrita à vida escolar que os adultos impõem às crianças e aos jovens. As memórias, naturalmente, diversificam-se no período universitário, fruto de uma vida crescentemente autónoma e já não exclusivamente centrada na escola (e na família).

Fentress e Wickham (1992) definem a memória como fonte da história e o contista duriense João de Araújo Correia (1951) como «lareira íntima varrida, mas não extinta». Já para Teixeira de Pascoaes «a memória é um museu, uma variedade imensa de estátuas e quadros; uns animados pela dor, outros pela alegria» (1927:94). E para Vergílio Ferreira «memória é onde está tudo o que sou» (1983:75). Ora é muito pela memória pessoal (afectiva e documental), de tempos e lugares, que o escritor reconstitui cenários, atmosferas, diálogos… Podemos então falar numa atracção pelo passado, uma vontade de procurar e preservar esse tempo, percepcionado como uma fonte sempre presente e inesgotável de material literário, como o admite Urbano Tavares Rodrigues: «todo o romance, todo o poema estão sempre relacionados com a memória (…) O meu reservatório mais rico de memórias é a infância e a adolescência»2.

Urbano Tavares Rodrigues

Outros mostram-se convictos que é desse período que emanam as traves-mestras que nos moldam o carácter para os dias vindouros. É o caso de Manuel Alegre, que no livro Alma (1995), conta histórias de Águeda (a verdadeira Alma) através do olhar de um rapazinho de 8-9 anos (ele próprio3): «Dessa infância, donde vêm as imagens e as emoções que norteiam a vida. Toda a vida: não há flecha que não tenha o arco da infância»4.

Em qualquer dos casos, estamos perante um exercício intelectual, que impõe um retrocesso cronológico significativo, pois é de uma «infância passada no presente pensada» (nas palavras usadas no poema “A margem da alegria” de Ruy Belo, 2000:437) que se trata. Um retorno que pode trazer ganhos inesperados como o assegura o escritor António Mega Ferreira: «a passagem do tempo projecta sobre a memória uma luz que nos arranca coisas que nunca imaginámos lá estarem»5. No entanto, nessa “viagem” os riscos e os abalos também são enormes, como o reconhecem Fernanda Botelho, em Lourenço é nome de jogral «É estranho: quando a máquina da memória nos restitui ao passado, muitas são as surpresas que nos deparam» (1971:107) e Fernando Namora, no prefácio da novela Casa da Malta: «A memória da infância, nebulosa e romântica» (1945:23). Para este amenizar do passado infanto-juvenil que o tempo introduz nos alerta Raúl Iturra (1998) «em adulto, passa a ser uma lembrança simpática e divertida, enquanto que em criança, um pesadelo regado em lágrimas.»

Mas não é só o rigor e a precisão dessa “recolha” que são questionados, quando as brumas do tempo se instalam de permeio, desfocam e adulteram; também esse olhar do adulto marca, necessariamente, a forma como se viveu e sentiu o passado longínquo. Disso nos dá conta Miguel Torga no seu Diário: «O autor que descreve a adolescência, fá-lo com as suas manhas de adulto. Ora um diário que tenha um mínimo de honradez, e é o caso presente, apanha a vida no salto do berço, nua e desprevenida» (1956:10). Mas num volume anterior, o IV, mostra a impossibilidade objectiva dessa tentativa de recuperação de um passado, que trazido para o presente é já, em si, uma outra coisa: «A infância não se repete, nem na lembrança, nem na imaginação. Quando muito, dá-se outra infância. As cenas ingénuas, porque eram ingénuas, não tinham consciência; e as humilhações, de tão pungentes, não há memória que consinta na sua perfeita expressão» (1949:15-6). Estaríamos assim perto de uma memória imaginária? Pelo menos, é o que se pode depreender do poema de Fernanda de Castro (1989:288): «Agora, a tantos anos de distância,/ já não sei se inventei a minha infância».

O saudosismo, como corrente estética e doutrinária, e em particular o seu chefe-de-fila Teixeira de Pascoaes, dá ênfase muito especial à infância, vista como um período mitológico, «a idade de oiro». Amam-se as coisas quando delas estamos separados6 ou quando as perdemos. Como nos indica Ruy Belo numa das suas poesias – “Como quem escreve com sentimentos”– «A infância é uma insignificância eu sei/ e apenas por a ter perdido a amamos tanto» (2000:494). Na impossibilidade do retorno, resta-nos a sua recuperação (reabilitação?) pela memória. E é isso que Pascoaes pretende. Para ele «a vida é memória» (1928:78) uma vez que «as lembranças não morrem; adormecem e acordam ao menor ruído» (ibid.:86). Ao escritor, mantendo uma atenta atitude face ao mundo que o rodeia (pois o presente e o porvir não deixam de o interessar), cabe-lhe essa permanente acuidade em relação ao pretérito, seja ele fabuloso ou desolador. Contudo, o interesse pela infância parece aumentar à medida que mais se afastam dela, como o observa Vergílio Ferreira: «Mas o que me lembra é o tempo da infância, como é próprio da senectude, que avança para o futuro de costas» (1983:179).

Há quem mostre algum cepticismo, ou pelo menos levante dúvidas, a estes recuos no tempo, em processos de vaivém (mesmo quando eles próprios o cultivam). Desse passado podem nos vir imagens distorcidas, menos fiéis, de contornos esbatidos e arestas limadas, já que essa realidade passou, agora, por um duplo crivo – o temporal e o pessoal. Urbano Tavares Rodrigues resume essa problemática nestes termos: «Suponho que a contradição reside no facto de o passado representado, ou tornado presente, na confabulação e na ressurreição verbal do texto, ser afinal o eldorado íntimo, mesmo quando andrajoso ou atroz» (1977:9). Mas Júlio Conrado (1984:168) procura centrar a questão mais na idade que na realidade: «Esses tempos é que eram tempos, não por que fossem bons, mas por que tenros eram os anos…». Por sua vez, Mega Ferreira, na entrevista citada, coloca o problema como intrínseco ao próprio processo literário: «todas as recordações em literatura são uma decantação e uma transfiguração daquilo que nos aconteceu».

Em conclusão, o escritor é «uma voz que preserva e testemunha» (Torga, 1976:65). E como tal, as suas obras não podem deixar de ser, para nós, um referencial obrigatório7, pois funcionam como memórias sociais8 sobre a vida e a escola. Ainda que tendo presente os obstáculos, reais e subjectivos, que o campo da literatura sempre coloca a esse desejo (mais positivista que pós-moderno) da «objectivação científica». Em todo o caso, qualquer obra literária se impõe quanto mais nela reconhecermos veracidade ou, pelo menos, verosimilhança9, o que torna credível e convincente aquilo que é narrado. Isto significa que sem essa base de “factualidade” (tempo, lugares, acontecimentos, pessoas, sociedades, etc.) a obra ficcional tem dificuldade em ser compreendida e aceite. Nesse labor, o escritor é um «coherence builder», como o designou Valdés (1992).

Notas

1. «Há na memória um rio onde navegam/ Os barcos da infância» (versos do poema “Retrato do poeta quando jovem” de José Saramago, Os Poemas Possíveis, 1966, p. 59).

2. Entrevista de Urbano Tavares Rodrigues ao Ensino Magazine, nº 10, Dezembro 1998, p. 2.

3. Por isso, Torcato Sepúlveda, numa recensão no Público, considera Alma como «um equívoco», pois não se trata de um romance, como Manuel Alegre (ou a editora?) o subintitulou, mas de uma autobiografia, um livro de memórias (o livro termina com a datação e a assinatura completa do autor).

4. In contracapa do livro.

5. Entrevista de António Mega Ferreira ao DN, 27/11/2002, p. 44.

6. Tal como o poeta António Nobre o anotava: «comecei amar Portugal depois que o deixei».

7. “Literatura e testemunho” foi um dos temas do III Congresso da Associação Portuguesa de Literatura Comparada que se realizou na FCG, 9-11 de Março 1998.

8. Raúl Iturra define memória social «como o conjunto de lembranças pessoais que ficam no grupo depois da sua transmissão por muitos indivíduos que convivem a partir de épocas e conjunturas diferentes» (1997:34-5).

9. «[V]erosímil: semelhante à verdade, verdade: um verosímil que obteve consenso» (José Fernandes Fafe, 2003:26). Por sua vez, Vergílio Ferreira define verosimilhança «como a coordenação lógica do que se diz, a coerência interna de uma obra de ficção» (1980:72).

 

Referências

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BELO, Ruy (2000) Todos os Poemas. Lisboa: Assírio & Alvim.

BOTELHO, Fernanda (1971) Lourenço é nome de jogral. Lisboa: Contexto, 2ª edição, 1991.

CASTRO, Fernanda de (1989) “A Índia foi verdade?” in 70 Anos de Poesia. Porto: Fundação Engº António de Almeida.

CONRADO, Júlio (1984) As Pessoas de Minha Casa. Lisboa: Vega/ O Chão da Palavra, 2ª edição, 1986.

CORREIA, João de Araújo (1951) Cinza do Lar. Régua: Imprensa do Douro, 2ª edição, 1970, página de abertura do livro.

FAFE, José Fernandes (2003) Annie – uma portuguesa na revolução cubana. Lisboa: Dom Quixote.

FENTRESS, James & WICKHAM, Chris (1992) Memória Social. Ed. Teorema.

FERREIRA, Vergílio (1983) Para Sempre. Venda Nova: Bertrand Editora/ Obras de V. F., 10ª edição, 1996.

ITURRA, Raúl (1997) O imaginário das crianças: os silêncios da cultura oral. Lisboa: Fim de Século/ margens.

ITURRA, Raúl (1998) Como Era Quando Não Era o Que Sou: O Crescimento das Crianças. Porto: Profedições.

LEIRIA, Mário-Henrique (1973) “Saudades da Infância” in Novos Contos do Gin. Lisboa: Editorial Estampa/ Ficções, nº 13, 3ª edição, 1978.

NAMORA, Fernando (1945) Casa da Malta. Publicações Europa-América/ livros de bolso E.A., nº 500, 13ª edição, 1988.

PASCOAES, Teixeira de (1927) Livro de Memórias. Amadora: Livr. Bertrand /Obras Completas T.P., VII vol. (Prosa I), s/d.

RODRIGUES, Urbano Tavares (1977) Estórias Alentejanas. Lisboa: Editorial Caminho/ Letras, nº 18.

TORGA, Miguel (1949) Diário. Volume IV, Coimbra.

TORGA, Miguel (1956) Diário. Volume VII, Coimbra.

TORGA, Miguel (1976) Fogo Preso. Coimbra, 2ª edição, 1989.

VALDÉS, Mário J. (1992) “Crossing the boundary between fact and fiction in History and Literature”. Dedalus – Revista Portuguesa de Literatura Comparada, nº 2, Dezembro, pp. 23-9.