sexta-feira, 19 de abril de 2024

“Graffitar a Literatura” (VIII)

 Luís Souta
(Texto e foto)

AMADA MORRISON 

«este é o tempo das mulheres na literatura»
(Fernanda Melchor, Ípsilon, 15/03/2024, p. 25) 

Cascais, Outeiro da Vela, Av. Engº António de Azevedo Coutinho] 

«Eu sou Amada e ela é minha. Sethe é aquela que apanhou as flores, flores amarelas, antes de ficarmos agachados. Colheu-as das plantas verdes. Elas estão na colcha onde dormimos. Ela ia sorrir para mim quando os homens sem pele vieram e nos levaram com os mortos para o sol e empurraram-nos para o mar. (…) Sethe é o rosto que encontrei e perdi na água debaixo da ponte. Quando entrei, vi o seu rosto vindo para mim, e era o meu rosto também. Quis juntar-me a ela. Tentei, mas ela subiu em pedaços de luz para o alto da água. Perdi-a de novo, mas encontrei a casa em que ela sussurrava para mim. E lá estava ela, sorrindo, finalmente. É bom, mas não posso perdê-la de novo. Tudo o que quero saber é porque é que ela entrou na água naquele lugar onde ficámos agachados. Porque é que fez isso mesmo na hora em que ia sorrir para mim? Quis juntar-me a ela no mar, mas não podia mexer-me; quis ajudá-la quando apanhava flores, mas as nuvens de pólvora cegaram-me e eu perdi-a. Três vezes e perdi-a (…) Agora encontrei-a nesta casa. Ela sorri para mim e é o meu próprio rosto sorrindo. Não a perderei de novo. Ela é minha.» (pp. 274-5)

Amada (Beloved) é o primeiro romance de uma trilogia que inclui Jazz (1992) e Paraíso (1997). O livro de Toni Morrison recebeu o Prémio Pulitzer (1988) tendo sido mais tarde adaptado, ao cinema, por Jonathan Demme (USA, 1998), com interpretações de Oprah Winfrey (Sethe), Danny Glover (Paul D.), Thandiwe Newton (Beloved)… Toni Morrison baseou-se na história real da ex-escrava Margaret Garner e da relação com filha que nasce durante a sua fuga de uma plantação do Kentucky.

A ilustração da capa, de uma das edições portuguesas, de Amada (Difusão Cultural, 1989) é da brasileira Glair Alonso Arruda. Vislumbro nela similitudes visuais com esta mulher do trabalho plástico de oats.ink na sua intervenção de street art em Cascais[1], que veio dar outro colorido e animação estética a duas paredes contíguas de um incaracterístico e anódino equipamento urbano da EDP. Uma mulher jovem, negra, de cabelo preto, curto, sobrancelhas grossas, lábios espessos, olhos cerrados. A outra (a da capa do livro) de olhos abertos. Podia ser a mesma pessoa, em dois momentos sequenciais. Mas em ambas, não se vislumbra qualquer alegria nos seus estados de alma. Mulheres sofridas? Muito provavelmente… A mulher que oats.ink desenhou e pintou podia muito bem ilustrar a capa de Amada. 

Ilustração da capa de Amada, Difusão Cultural, 1989]

A autora, a norte-americana Toni Morrison (de seu nome Chloe Anthony Wofford, 1931-2019), natural de Lorain estado de Ohio, e formada em Estudos Ingleses pelas Universidades de Howard, Washington e Cornell, NY (1949-1955). Foi editora (Random House[2]) e professora universitária em diversas universidades, acabando na Princeton (1989-2006); desde 1981 membro da Academia Americana das Artes. Foi a primeira escritora negra a receber o Prémio Nobel da Literatura (1993); a Academia sueca sublinhou então a sua «força visionária e relevância poética». A defesa intransigente da liberdade, da dignidade humana e da igualdade, num persistente combate ao racismo, colocaram-na como uma voz de referência na sociedade americana, muito em especial, entre a comunidade negra, emparceirando com James Baldwin (1924-1987), essa figura central do Movimento dos Direitos Civis que, com clarividência, assegurava: «A glorificação de uma raça em detrimento de outra – ou outras – tem sido e será sempre uma receita para o morticínio.»

A sua obra, muito baseada na experiência das mulheres afro-americanas, contribui de forma poderosa para a construção positiva dessa identidade negra. O então presidente Barack Obama condecorou-a, em 2012, com a Presidential Medal of Freedom (a mais alta condecoração civil dos EUA concedida pelo Presidente), considerando-a «um tesouro nacional».

Morrison publicou onze romances, entre os quais, O Olho mais Azul (1970), Sula (1973), Song of Solomon (1977), A Dádiva (2008), Voltar para Casa (2012), Deus Ajude a Criança (2015), seis livros de literatura infantil (com seu filho Slade Morrison), teatro e até o libreto de uma ópera – Margaret Garner (2015). Publicou diversos ensaios, num deles – A Origem dos Outros: seis ensaios sobre racismo e literatura (Companhia das Letras, 2019), as Palestras Norton da Universidade de Harvard, 2016 – desenvolve o conceito de «literature of belonging».

 «Eu não olho para a política ou para a ciência. Eu olho para a literatura em busca de orientação, e isso é o que vou fazer.» (Ípsilon, 18/03/2016, p. 16)

Amada é a magnum opus de Toni Morrison, romance que exige um leitor atento, activo, disponível para entender o encantamento desse imbricar da realidade com a magia.

«Na quinta, Lady Jones surpreendeu-a a espionar.

– Entra pela porta da frente, querida Denver. Aqui não é um parque de diversões.

Assim, Denver passara quase um ano inteiro na companhia dos seus pares e juntamente com eles aprendera a ler e a contar. Estava com sete anos e aquelas duas horas ao fim da tarde eram preciosas para ela. Mais ainda porque fora até lá sozinha e vira o prazer e a surpresa no rosto da mãe e dos irmãos ao contar-lhes a proeza. Por um níquel por mês, Lady Jones fazia aquilo que os brancos achavam desnecessário, senão ilegal: enchia a pequena sala de visitas com crianças negras que tinham tempo e interesse em aprender a ler. O níquel, que Denver levava atado num lenço e preso ao cinto para entregá-lo à professora, fazia-a sentir-se importante. Empolgava-se com o esforço em manusear correctamente o giz e evitar o guincho que ele poderia fazer na lousa. Adorava o W maiúsculo, o i pequenino, a beleza das letras no seu próprio nome, as frases da Bíblia cheias de lamento que Lady Jones usava como cartilha.» (pp. 132-3) 

Notas

1. Uma iniciativa da Wallmob, associação que procura «dinamizar a Arte Urbana do Concelho de Cascais.

2. Desafiou Angela Davis a escrever Uma Autobiografia (Antígona, 2023), quando esta tinha apenas 28 anos; editou-o em 1974 e sobre ela escreveu: «Angela é a mulher mais feroz que alguma vez conheci e eu venho de uma longa linhagem de mulheres ferozes.»

Em breve será publicado o livro A TRÍADE DISJUNTIVA: Literatura, Antropologia e Educação que reúne, na sua II parte, os 30 textos desta rubrica que aqui fui editando desde 07/09/2014.

sábado, 13 de abril de 2024

1976, A Evolução dos Cravos

Risoleta Pinto Pedro 

Caros amigos e amigas venho divulgar, para o caso de não terem conhecimento, a estreia da ópera "1976, A Evolução dos Cravos", com libreto de minha autoria e música de Vítor Rua, sobre a Revolução de 74 e a Constituição de 76, celebrando os 50 anos do 25 de Abril. No Forum Municipal de Setúbal estreia dia 12 e continua dia 13, sábado, às 21h, e dia 14, domingo, às 17h. Mais tarde a 19 de abril, na Casa da Música Jorge Peixinho, no Montijo, e no dia 18 de maio no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães (...).

FICHA TÉCNICA:
Mariana Chaves interpretará Eulália. Gonçalo Martins interpretará Vicente.
Bilhetes disponíveis na bilheteira, ou em: 

Celebrando os 50 anos do 25 de Abril, esta ópera apresenta uma visão psicadélica sobre acontecimentos históricos e sobre a natureza e resposta diversa do ser humano, perante os desafios de ambientes sociais e políticos complexos.
Música: Vítor Rua
Libreto: Risoleta Conceição Pinto Pedro
Encenação e Coreografia: Iolanda Rodrigues
Figurinos: Sara Rodrigues
Vídeo cenográfico: Simão Rodrigues
Comunicação e Imagem: Maria Madalena
Direção Artística e Musical: Jorge Salgueiro, composer
CANTORES
Eulália: Mariana Chaves
Vicente: Gonçalo Martins
Latifundiário (pai de Eulália): Mário Redondo
Mulher dos cravos: Ana Filipa Leitão
Salazar: Inês Constantino
Oráculo Ouruborus: Helena de Castro
Consulente (Filósofo): David Martins
Estudante: Mafalda Louro
República: Sara Batista
Personagens coletivas: CORO SETÚBAL VOZ e ACADEMIA DE DANÇA CONTEMPORÂNEA DE SETÚBAL

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Paulo Landeck







A CÉU ABERTO

 

Se indulgência ou ocaso no cerrar cortinas, o homem arrasta formalidades há muito implantadas; por vezes, procura genuína bondade para desculpar o importunamente censurável, condenando significância em troca da agradável natureza das coisas.

Creio, ser tremendamente poderosa a tarde despida das terríveis nuvens vigilantes! Ainda que persistam ocultos, laboriosos enredos, cerzidos por desmesura e remissão.

Creio que o Ser deve prosternar-se diante da Força sem medo nem humilhação, elevado a outro patamar.

Talvez acto de amor, Supremo; olhar nos olhos Imensidão, consciente arbítrio, muito para além do abraço temerário.

- Nem todo o beijo é um beijo. -

Retomemos esse acto.

Dois mundos, expansão ou subducção; - elixir e pedra, espagíria espiritual, - como água do mar nas fissuras da crosta oceânica quando reemerge tocada pelo magma.

Rendem-se corpos, cancela-se a carne putrefacta, pela natureza do espírito ciente da morte como panaceia universal.
Dois mundos, uma só alma, - parte e dispersa, como ademais a plateia, ao cair do pano.

Vida a céu aberto, matéria transformada.

quinta-feira, 28 de março de 2024

Crónicas de Viagem

 Vila Velha de Ródão

23-25 de março/2024



Meio da manhã rumo ao Arts Rupestre Hotel, Vila Velha de Ródão. A rota traçada foi a linha do Tejo. Pelo meio, um cantinho bem verdinho a envolvê-lo em Benavente, um almoço para esquecer em Salvaterra de Magos, onde as enguias fritas anunciavam a típica gastronomia regional e a lembrança de Constância, terra de Luís de Camões, onde o Zêzere, bonito de ver, se despeja no rio maior.

O Hotel, simpático, em sítio arejado, tem como paisagem justamente o nosso rio, até às portas de Ródão, ex-libris natural, monumental, duas enormes massas rochosas por onde o rio se estreita e logo em seguida se avoluma para seguir o seu curso. Acima das portas, acentuada altitude, em hora muito ventosa, o castelo do rei Vamba com miradouro de vista privilegiada para todo aquele impressionante conjunto.

Vila Velha de Ródão, sede de concelho, encosta-se à margem norte do Tejo, província da Beira Baixa, com ponte para a margem sul, Alto Alentejo, a caminho de Niza, distrito de Portalegre. Niza terra de ancestrais na linha paterna, com alguns curiosos pormenores que assinalam a sua antiguidade, portal medieval onde se penetra no centro histórico, D. Dinis, freguesia do Espírito Santo que, agora, depois de recente reforma administrativa do território, se junta com as freguesias da Nossa Senhora da Graça e São Simão. Rua de Santa Maria, onde as típicas flores de bordados e cerâmicas, estão incrustadas no chão, calçada de extraordinária beleza.

Almoçámos bem na “Tasca das Cachopas” e até considerámos que aquele ar medieval que se respira em Niza merecia um restaurante assim, significativo património local, onde a gastronomia tradicional, bem confecionada, ganha relevo.

De volta a VV de Ródão, à beira do rio, deu para se comprovar das pinturas rupestres que dão nome ao sítio de alojamento, em presença humana com testemunhos do Paleolítico Médio, 30 mil anos atrás. Ainda deu para sentir o espírito dos elefantes que outrora viveram por aqui, entre abundante fauna, enquanto um barquinho sai do seu cais fluvial em passeio turístico e a encosta da serra mostra uma linha de comboio de localização absolutamente fantástica, em que se adivinha idílica viagem, mas que não fizemos porque a escapadinha não deu para mais. Aqui, onde começa o Parque Natural do Tejo Internacioinal, como muitos outros recantos por descobrir.

VV de Ródao, uma vila interior do país, que sobe desde o vale do rio serra acima, em terreno acidentado, poucos habitantes, com estrada principal em péssimo estado e obras demoradas a decorrer, onde uma mudança dos ventos trouxe o cheiro agressivo de fábrica de pasta de papel. Enfim, entre belas paisagens, alguns aspetos de menor atratividade que, todavia, não lhe retiram bons motivos para uma visita de um fim de semana prolongado.

 

Luís Carlos dos Santos

Alhos Vedros, 28 de março/2024

sexta-feira, 22 de março de 2024

“Literatura: o pão nosso de cada dia” (XXIV, e último)

 Luís Souta

A ANTROPOLOGIA NO ENSINO

«Habituado como estou a considerar a literatura como procura do conhecimento, para me mover no terreno existencial tenho necessidade de considerá-lo extensível à antropologia, à etnologia, à mitologia.»
(Italo Calvino Seis Propostas para o Próximo Milénio, 1990:42)

   O desenvolvimento da Antropologia, em Portugal, tem sido lento e algo errático. No campo do ensino, é tardia a sua institucionalização e praticamente circunscrita ao ensino superior.

   A Antropologia tem ganho espaço crescente no campo universitário, desde que em 1968 foi criado o primeiro curso em Portugal, no então ISCSPU - Universidade Técnica de Lisboa, o «Curso Complementar de Ciências Antropológicas» que concedia o grau de licenciatura (no 1º ano de funcionamento estavam matriculados 24 estudantes). Logo no ano seguinte o curso passou a designar-se «Curso de Ciências Antropológicas e Etnológicas» (com uma matrícula de 41 alunos em 1973-74 e de 116 em 1975-76)[1].

   Só uma década depois é criado um novo «Curso de Antropologia», na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa (1978), com a duração de quatro anos (acessível aos alunos que concluíssem o 12º). Poucos anos depois, o de «Antropologia Social» no ISCTE (1982)[2] e, posteriormente, um outro na FCT da Universidade de Coimbra (1992). Em 1997, aparece na UTAD, pólo de Miranda do Douro, um novo curso de licenciatura: «Antropologia Aplicada ao Desenvolvimento». Também ao nível do ensino privado abriram cursos de Antropologia (designação que se foi, mais ou menos, uniformizando em todas as escolas): em 1990 na Universidade Fernando Pessoa, no Porto, e o mais recente na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, em Lisboa. A Universidade do Minho criou uma secção de Antropologia, em 1999, mas ainda não desenvolveu qualquer curso autónomo nesta área.

   Outros estabelecimentos do ensino superior introduziram a Antropologia nos seus currículos, tal como nos cursos de História, Psicologia e Geografia (UL, “Antropologia Cultural”), Sociologia (ISCTE), Serviço Social (ISSS), ISPA, Artes Plásticas (ESBAL, “Antropologia da Arte”), Educação Física (ISEF, “Antropologia do Jogo”), licenciaturas em ensino de História e Ciências Sociais e em Relações Internacionais (UM) e ainda na Universidade de Aveiro.

   Entretanto, nos últimos tempos, iniciaram-se cursos de mestrado em Antropologia, em diversas instituições universitárias, entre as quais o ISCSP, o ISCTE-IUL (Património e Identidades; Colonialismo e Pós-Colonialismo), a U. Nova de Lisboa (Antropologia do Espaço; especializações em Culturas Visuais, Temas Contemporâneos, Primatologia e Ambiente) a FCT - U. de Coimbra (Antropologia, Globalização e Alterações Climáticas, Antropologia Médica e Saúde Global) e UTAD-ISCTE-IUL (com dupla titulação, a funcionar em Vila Real e Lisboa).

   Mas só em Janeiro de 2002, surgiu a apresentação de uma proposta curricular de mestrado em «Antropologia da Educação»; o curso viria a funcionar no ISCTE, entre 2003- 05[3]. A especialidade de Doutoramento em Antropologia da Educação foi entretanto aprovada no CC do ISCTE, em 13/05/2003.

   Já no campo da formação de professores a Antropologia tem um outro tipo de intervenção – apenas ao nível de disciplina incluída nos planos de estudo. A sua génese remonta a 1978, quando nas Escolas do Magistério Primário (EMP) surge a disciplina de «Antropologia Cultural» (1º ano, 2h/semanais). No ano imediato, introduz-se nas Escolas Normais de Educadores de Infância (ENEI) a disciplina de «Antropologia Cultural e Sociologia» (1º e 2º anos, 65h/ano). Tratava-se de currículos nacionais, portanto aplicados a todas essas escolas incluídas, na altura, no chamado «ensino médio». O mesmo se passava com os respectivos programas, também eles elaborados a nível central do ME, e iguais para todos os estabelecimentos. Com a criação do ensino superior politécnico, e a entrada em funcionamento das Escolas Superiores de Educação e dos seus diversos cursos de formação inicial, em 1986, veio alterar-se o modus operandi de inclusão da Antropologia nos currículos. Uma vez que estas escolas passaram a gozar de autonomia científica e pedagógica (o que não acontecia com as EMP e as ENEI), a definição curricular era feita no seu interior, e o aparecimento ou não de disciplinas de Antropologia estava muito condicionada à presença de antropólogos na equipa docente das escolas e à sua capacidade de “negociação curricular”. Assim, surgem, nessa fase inicial, nas ESE de Castelo Branco, Guarda, Leiria e Setúbal, por exemplo, disciplinas como Antropologia das Actividades Corporais, Antropologia do Jogo, SocioAntropologia, Etnografia Musical e Antropologia da Educação, em cursos como educadores de infância, professores do 1º ciclo, e variantes de educação física e educação musical. Ao longo destes anos, foram-se registando múltiplas mudanças na estrutura organizacional dos cursos (pré e pós-Bolonha), com alterações curriculares diversas; no entanto, a ESE de Setúbal e a ESECS de Leiria foram, talvez, as únicas onde se manteve, de« forma explícita, a disciplina de «Antropologia da Educação»[4]. Depois, foi o descalabro, com o Processo de Bolonha a reduzir as licenciaturas para 3 anos (com o fim dos cursos de “banda larga”) e o afunilar dos currículos, expurgando-os de tudo o que ia além das componentes de formação nas “área da docência”, “educacional geral” e “didácticas específicas”. Como os cursos se querem, agora, profissionalizantes stricto sensu, há, portanto, que ‘cortar’ na formação cultural e social[5].

   Fechou-se uma porta (a da formação de educadores de infância e de professores do 1º e 2º ciclos, agora com o mestrado como habilitação mínima), abriu-se outra com a oferta em outros cursos. E assim, surge a UC de «Antropologia Cultural», na ESE-IPS em 2008-09, nas licenciaturas em “Animação e Intervenção Sociocultural”, “Comunicação Social”, “Promoção Artística e Património”, “Tradução e Interpretação de LGP” e na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria com as UC de «Antropologia Social» e «Antropologia Social e Cultural» em diferentes licenciaturas (“Serviço Social, “Relações Humanas e Comunicação Organizacional”, “Educação Social”…), «Antropologia, Cultura e Arte» (no curso de “Programação e Produção Cultural”), «Antropologia da Comunicação» (“Comunicação Social e Educação Multimedia”), «Etnologia Portuguesa» (“Turismo”), «Etnologia e Etnografia» (CTeSP em “Ambiente, Património e Turismo Sustentável”).

   O lugar relativamente discreto da Antropologia nos currículos dos politécnicos e das universidades, tem muito a ver com a ausência de uma disciplina de Antropologia na estrutura curricular dos ensinos básico e secundário. Tal só se verificou no ano lectivo de 1979-80 com a introdução da disciplina de «Antropologia Cultural» (com 2 horas semanais) no l0º ano do curso Complementar do Ensino Secundário, mais concretamente na área D – Estudos Humanísticos, e que era obrigatória para os alunos que optavam, no âmbito da Formação Vocacional, pela área de Jornalismo e Turismo (os professores eram contratados na área de “Técnicos Especiais”). Experiência curta no tempo, que a reforma resultante da LBSE (1986) veio a eliminar. Todos os múltiplos esforços da Associação Portuguesa de Antropologia, das universidades que ministram cursos de licenciatura em Antropologia e dos docentes com formação nesta área se têm revelado infrutíferos. Os argumentos científicos e pedagógicos demonstrativos da utilidade social desta ciência social, na formação integral dos alunos, têm esbarrado na insensibilidade das várias equipas responsáveis do ME.

   Ligeira mudança se operou com o “Documento Orientador da Revisão Curricular do Ensino Secundário”, de Abril de 2003, com implementação no ano lectivo de 2004-05: a Antropologia voltou a ganhar (ténue) visibilidade ao aparecer no elenco das opções anuais da componente específica no Curso de Ciências Sociais e Humanas, ficando, todavia, a «oferta dependente do projecto educativo de escola» (o que implica um acordo celebrado entre o ME e cada escola; então, podem os alunos que a queiram frequentar ser provenientes de qualquer um dos outros 4 cursos científico-humanísticos existentes). Seria leccionada no 12º ano e teria uma carga horária de 3 blocos semanais de 90 minutos[6].

   Presentemente, com o Decreto-Lei nº 139/2012, de 5 de Julho[7], a oferta formativa do ensino Secundário, inclui a «Antropologia» mas apenas como disciplina de opção: no curso de Língua e Humanidades (uma de 7), no curso de Ciências Socioeconómicas (uma de 9), e nos cursos de Ciências e Tecnologias e de Artes Visuais (uma de 11).

   Muito pouco… No ensino secundário, a Antropologia ‘avança’ mas a passo de caracol.O sistema persiste no conservadorismo curricular!

Notas

1. Para o conhecimento dessa primeira década cf. Luís Souta “Tempos de Extremos”, Etnográfica, nº comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril, 2004 (no prelo).
2. DL nº 121/82 de 29 de Outubro.
3. Deliberação do Senado nº 807/2003, DR nº 134 de 11/06.
4. Na ESE-IPS funcionou até 2007-08 e na ESECS-IPL a UC de Antropologia da Educação manteve-se no curso de Educação Básica (mais recentemente com a designação «Sociologia e Antropologia da Educação».
5. Decreto-Lei nº 112/2023 de 29 de Novembro (altera o regime jurídico da habilitação profissional para a docência na educação pré-escolar e nos ensinos básico e secundário, ou seja, o anterior Decreto-Lei nº 79/2014 de 14 de Maio).
6. O programa de Antropologia do 12º ano (com 59 p.!) foi homologado em Abril de 2006, e elaborado por José Manuel Sobral (coord.), Carlos Nuno, Margarida Fernandes.
7. Decreto-Lei nº 139/2012, de 5 de Julho, alterado pelo Decreto-Lei nº 91/2013, de 10 de Julho e pelo Decreto-Lei nº 176/2014, de 12 de Dezembro.

Muito em breve será publicado o livro A TRÍADE DISJUNTIVA: Literatura, Antropologia e Educação que reúne, na sua I parte, os 24 textos desta rubrica que aqui fui editando desde 13/11/2021.

terça-feira, 19 de março de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra

                                                           

Estar Dividido

Estou muito dividido, diário amigo. A Lídia Jorge com o seu livro Misericórdia, fez-me pensar na eterna luta entre funcionários e utentes de um lar, como te tinha dito antes. Parece que a lógica do utente não condiz com a realidade quer na sua vida pessoal, quer com o momento da história da vida social; a lógica dos funcionários é totalmente ligada a esta história, é uma lógica formal e estruturada pelo acontecer quotidiano. Eis porque estas duas lógicas esbarram e há gritos dos funcionários e falta de entendimento dos utentes que sofrem porque não são percebidos no que procuram e no que querem. 

No entanto, eu próprio fico impaciente quando quero interagir com um colega do lar e não sou entendido, quando tenho da sua parte como resposta um imaginário idealizado. Como essa colega residente do lar a quem solicitei sentar-se no sofá ao pé de mim para eu lhe explicar o que acontecia na televisão e ela, nem curta nem preguiçosa, disse-me que não podia porque o seu boneco, esse brinquedo que ela apaparica não quer sentar-se aí. Perante esta situação impacientei-me e gritei: “sente-se onde quiser, eu não lhe explico nada!”. Após minutos de discussão, ela feliz, eu farto e de mau humor, digo-lhe “é apenas um urso de pelúcia que a senhora tem!”. É evidente que a senhora não entendeu porque esse boneco para ela é uma criança que chora, que tem frio, que ela embala no seu colo: uma realidade da lógica ideal que ela usa para a sua compreensão dos factos.

 O que para mim não tem valor nenhum para ela é a base do seu quotidiano, do seu viver, da importância que o urso de pelúcia tem na sua vida. Observo que os funcionários nestas situações gritam e zangam-se. Eu também gritei e zanguei-me com a senhora sendo no entanto apenas uma ocorrência entre mim e ela. Os funcionários têm centenas de ocorrências deste tipo durante o dia, cansam-se, zangam-se, gritam, empurram, desistem. 

Quando eu me zango com um colega utente entendo os funcionários que não conseguem aceitar e entender as aldrabices da lógica mágica do utente por falta de preparação ou de condições de trabalho.

Tenho observado que os funcionários  conseguem adaptar-se à racionalidade do utente quando estão de bom humor. O funcionário trabalha com intuição e emotividade, base da sua perdição. Quantas vezes, no outro extremo,  quando um funcionário comporta-se com impaciência com um utente, eu corro para defender o utente. É esta conduta de funcionários e utentes  que me tem partido em dois. Ora admiro o trabalho do funcionário, ora critico esse trabalho. Eu próprio ora resgato o utente do magma em que o funcionário o colocou, ora também o coloco nesse magma. Normalmente acarinho com palavras e carícias o utente que sofre e não é entendido nessa lógica mágica. O que eu tento é conseguir um equilíbrio entre as duas lógicas do lar. Se eu faço bem ou faço mal já não sei, não estou treinado. Como não estão treinados os funcionários do lar e ainda muito menos treinado está o residente que a senilidade em qualquer idade o levou a falhar na racionalidade social.

 A Lídia Jorge no seu romance “Misericórdia” remete o leitor para estas lógicas em confronto mas como escritora não residente num lar acaba por romancear o que presenciou nas suas visitas. A mãe, que ela denominou Dona Alberti, transmite-lhe através do seu diário de vida os elementos que me permite pensar na lógica do lar. O livro serve como um panegírico para reformular essas vidas, diário amigo. Obrigada Lídia Jorge que me tem ajudado a perceber a minha vida como utente de um lar. 


O livro de que falo é “Misericórdia”, Lídia Jorge, Dom Quixote, 2022

Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith Antropóloga

Barra Mansa, Março de 2024 


domingo, 17 de março de 2024

Paulo Borges, curso online

 


E se tudo fosse uma Presença luminosa, sem princípio nem fim, aquilo a que uns chamam Buda, outros "Deus", outros "Tao", ouyros "Brahman" e outros o que não tem nome?

E se a tua essência, tal como a de tudo quanto existe, nada fosse senão esta mesma Presença infinita, consciente e amorosa, livre de nascimento e morte?

E se o que chamas “eu” não fosse senão a máscara desta Presença, que num sentido a manifesta e noutro a encobre?

E se toda a tua vida, bem como a vida do universo e de todos os seres, nada fosse senão a manifestação contínua desta Presença?

E se tudo o que experiencias, gratificante ou doloroso, não fossem senão oportunidades para reconheceres quem verdadeiramente és?

E se tudo o que mais procuras – liberdade, felicidade, conhecimento, amor, beleza, poder, riqueza, realização – não fossem senão qualidades desta Presença que é a verdade mais funda de ti e de tudo?

E se o sentido último e supremo da tua vida e do cosmos fosse descobrires e realizares isto, para assim ajudares os outros a cumprirem-se plenamente?

E se tudo isto fosse o Tesouro que és e ignoras, enquanto estiveres a dormir e sonhar que não és desde sempre a plenitude que procuras?

E se desde tempos imemoriais até hoje muitos seres humanos, mulheres e homens como tu, houvessem despertado e, movidos por amor e compaixão, tivessem deixado mensagens e instruções claras sobre como podes também despertar do sono e do esquecimento para a fruição da Preciosa Jóia em ti escondida?

sexta-feira, 15 de março de 2024

JOSÉ GIL

 "O homem, professor e amigo, mais apaixonado pelo Teatro que nós conhecemos"

encenador dramaturgista ator teatro artes do palco e de rua
de 1973-2024 teatro mundial

novos dias novas fotos teatro trabalho regular sempre, lutamos por estrear em Setúbal 24-maio-2024 pode escrever joseamilcarcapinhagil@hotmail.com
Professor Adjunto de Teatro na empresa Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal durante muitos anos, agora jubilado, mas não por vontade própria.

quarta-feira, 6 de março de 2024

Textos Soltos

 Luís Santos

"De que árvore florida chega? Não sei. Mas é seu perfume."
(Matsuo Basho)



O ESTUDO GERAL, um pasquim digital que temos vindo a realizar, fez 14 anos. Ao longo destes anos muita e boa gente tem passeado por aqui. A tónica dominante tem sido a Língua Portuguesa, mas não exclusivamente. A última publicação foi do chileno Professor Catedrático Emérito Raul Angel Iturra, com quem temos tido gosto em aprender, já lá vão 40 anos. Um texto próprio de um sábio.
Muito mais se pode ver neste ESTUDO... Já este ano participaram autores como Firmino Pascoal (Projeto Musical Lindu Mona), Luís Souta (Literatura, o pão nosso de cada dia), Agostinho da Silva (a propósito dos 500 anos do nascimento de Luís de Camões), Luís Santos (editorial e fotografia) e, por último, Raul Iturra (Leitura em Voz Alta).
Fica também um apreciável, adorável, "photopoema de Kity Amaral, pintora brasileira, mineira, que muito estimamos.

Vou até lá, mas volto já. Um miradouro, uma paisagemm uma paz: que beleza de natureza, aquela que gosta de regressar. E, depois, um rio que dá num rio, num doce balançar que trás à memória proncesinha do mar. Um antigo estaleiro naval e a água escura que molha a areia branca. Abaeté. A chuva molhava-me o rosto. Bacalhau de molho. Fevereiro, Carnaval e Março. Alô, Alô, Ernestina aquele abraço. Mas náo é José que o Egito resplandece em plemo umbigo e o sinal que vejo é este, onde o cujo faz a curva, o cu do mundo esse nosso sítio. E para você que me esqueceu, aquele abraço. Aquela bahia já me deu régua e compasso, quando Jorge assentou praça na cavalaria e eu fiquei feliz, porque eu também sou da sua companhia. De Iaparica à cidade da Praia, uma cidade com dois nomes. Logo mais, mornas e coladeras.



HOJE ao pequeno-almoço estivemos muito bem acompanhados. Uma roda de amigos, foi o Pomar que se lembrou, vieram o Ricardo, o Álvaro, o Alberto e a Hoffélia, como se vê na foto. Mais do que uma teoria, uma mónada de verdade, uma congregação de espíritos simples que encontramos amiúde, e que já vêm desde o início, inacessíveis e incorruptíveis a tudo quanto existe, pois que existe por inteiro e é ela própria sem partes. Uma evolução e desenvolvimento até chegar ao intelecto. União perfeita de espírito e matéria. Um frequenta o mesmo hipermercado e é engenheiro, outro vive na mesma rua ajudante de telecomunicações, também um guardador de rebanhos, ela professora, o promotor do encontro é pintor. Um deles disse que "o Homem é do tamanho do seu sonho", ao que se aproveita a ocasião para perguntar, afinal quantos somos cada um, ó Fernando Pessoa?

Sentimos saudades daquele pequeno promontório do nosso familiar ROSÁRIO. Já não nos permitíamos aquela boa contemplação, fazia demasiado tempo. Um dia destes António Lobo Antunes há-de descrevê-lo por magistrais palavras. À beira do sítio onde mora, uma pequenina igreja que está perto de comemorar quinhentos anos. Portal manuelino, arco triunfal de volta perfeita do mesmo estilo e paínéis de azulejos azuis e brancos com cenas da Senhora com o Menino. Senhora que certamente lhe dá nome, tantas as voltas que foram dadas a desfiar as contas maiores e as contas menores... o Rosário.
Mas, desta vez, o que nos levou lá foi aquela boca da ponta da passadeira por onde, depois de kilómetros a fio, nos entras o Tejo. Por detrás, ponte 25 de Abril e Cristo-Rei, Almada e Lisboa, foz do rio feito um estuário que se despeja no Atlântico. Oceano que nos trás a água do rio misturada com o salgado vai-vém do mar. Movimentos de maré. E até o Coina que vem descendo da Arrábida e se enfia neste seu braço do Tejo, ali na crescente beleza do nosso Barreiro, ajuda à festa da dança prateada das águas que nos assistem. O resultado é esta baía de águas calmas, mar da palha, onde tantas vezes nos enfiámos da cabeça aos pés e nos vai ajudando a desfiar esta maravilhosa coisa rara e preciosa, do estar aqui.

Bem hajam.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

DO DIÁRIO DE VIDA DE RAUL ITURRA


Sobre o livro “Misericórdia” de Lídia Jorge


Em Janeiro passado fiz 83 anos, meu querido diário de vida. A minha filha mais nova veio visitar-me desde a nossa linda cidade de Cambridge, Inglaterra, e me ofereceu um William Boyle; três das minhas amigas almoçaram conosco e encheram-me de Ken Follets; a minha mulher, de forma mais concreta, ofereceu-me um Lídia Jorge, era o seu mais recente romance “Misericórdia” que me impactou profundamente. Ela contraria a lenda sobre os lares de idosos ao falar da vida da sua recente falecida mãe num lar da Misericórdia. Construiu uma teia de relações sociais entre a dona Alberti e as suas amigas do lar o que a ajudam a manter a sua mente activa. 

A sua personagem central, essa Dona Alberti, escreve tudo o que vê e faz no seu diário de vida e em notas de papel que guarda e esconde e que a romancista recolhe, lê e elabora. Há um mistérioso facto de uma morte de um velho que namora com outra idosa do lar e que falece no meio da noite no quarto desta mesma senhora. Eles namoravam, contrariando as histórias que existem da falta de sentimentos amorosos entre anciões. A romancista desmonta a ideia de que os adultos maiores não teriam libido, engano de muita  gente. As pessoas mesmo atacadas de senilidade como nos mostra Lídia Jorge, são capazes de estabelecer amizades, simpatias, empatias e amores secretos. Ela salienta o que a sua mãe diz no seu diário, a existência de uma luta incrível entre utentes do lar que vivem segundo a sua lógica senil bem primária que devia ser respeitada, ser tratada com dignidade e os funcionários que aí trabalham que a querem ignorar. Os anciões tem a sua vontade de viver e sua vontade de ser. O desejo de ser pessoa digna existe profundamente nos velhos como salienta Lídia Jorge ao longo do seu livro e como reparo no lar onde moro. Ela também desfaz o mito da alegria que é a vida numa casa de repouso em que tudo estaria feito à medida de proporcionar esta alegria entre os utentes aí residentes. 

Na realidade os funcionários agem como se os anciões fossem parasitas inadequados para vida em sociedade, pensem que de nada se lembram, pensam que não sentem frio, pensam que são entes sem objetivos de vida. Este livro parece ter sido feito à minha medida. 

Identifico-me em tudo o que Lídia Jorge diz fruto da minha experiência de oito longos anos da minha permanência numa chamada casa de repouso, cheia dos gritos dos trabalhadores e dos utentes, das raivas entre eles e do mau entendimento das suas lógicas. 

Também é possível observar como trabalham mais estrangeiros do que nacionais entre as paredes quer da Misericórdia do livro quer na casa de repouso onde eu moro. Estes imigrantes procuram seu primeiro emprego em Portugal mas quando conseguem uma alternativa, fogem do cansaço de mudar fraldas, vestir roupas limpas todos os dias, de lavar as mãos usadas para comer. Essa falta de urbanidade não desejada pelo anciões mas que deve ser tolerada por ser a lógica que reina na vida senil. Lógica estudada mas nunca estruturada para ser ensinada aos trabalhadores sobre o entendimento que devem ter os funcionários acerca do pensamento dos velhos nem para melhorar as suas condições de trabalho. Este livro é o emblema do que deve ser reformulado na atenção das pessoas idosas e das condições de trabalho dos funcionários e de vida dos utentes. Meu querido diário, mais tarde vou referir outros assuntos. O livro de que falo é “Misericórdia”, Lídia Jorge, Dom Quixote, 2022.


Professor Doutor Raúl Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto editado por Claire Smith, antropóloga.

Barra Mansa, 20 de Fevereiro de 2024.


domingo, 18 de fevereiro de 2024

"Literatura: o pão nosso de cada dia" (XXIII)

Luís Souta

 LITERATURA NO ENSINO

     «A ingente tarefa de ensinar literatura é a de dar a conhecer por meio da leitura 
o conteúdo e o sentido daquilo que chamamos existência humana» 
(Salvato Telles Menezes, Literatura, 1993:42)

No território escolar, a crise parece também instalar-se. “Acabar de vez com a literatura”[1] e “A literatura morre na escola?”[2] são títulos sugestivos de artigos que prenunciam um certo mal estar, ou pelo menos, o reconhecimento de um domínio que está longe da consensualidade. Tal foi evidente nos dois processos de revisão curricular do ensino secundário, entre 2001 e 2003. Em causa estava o fim da obrigatoriedade d’Os Lusíadas (no10º e 11º anos)[3] sendo a leitura (de excertos!) passada para o 12º, a substituição da disciplina de «Português» pela de «Língua Portuguesa» nos cursos gerais, e o entrincheirar da «Literatura Portuguesa» ao Curso Geral de Línguas e Literaturas[4]. Estas opções tinham como base três pressupostos, ainda que não explicitados: (i) a generalidade dos alunos termina o ensino básico sem o domínio da língua materna; (ii) uma certa desvalorização da literaturacomo propiciadora, por excelência, da formação linguística dos alunos; (iii) restringir a utilidade da literatura apenas àqueles que prosseguem estudos superiores nessa área; (iv) «o ensino se deve aproximar cada vez mais da preparação do estudante para o mundo do trabalho (o chamado mundo das realidades), libertando-o das disciplinas que representam o queaparentemente é inútil (as disciplinas de humanidades)»[5], ou «disciplinas simplesmente toleradas», como as classificava Rui Grácio (1959:122).

Muitos escritores contestaram esta revisão curricular[6] em que a literatura (que já era pouco importante) passava a marginal.

Manuel Gusmão

Manuel Gusmão (2003) alertava para o facto de o «ensino da língua materna, expurgada da sua literatura, reduz a língua a uma função veicular, empobrece-a e pode aproximar-se perigosamente das técnicas específicas do ensino de uma língua estrangeira.» Carlos Ceia chegava a considerar estas decisões curriculares com uma «sentença de morte que é passada ao património literário português» (2001:8), onde o ensino da língua e o ensino da literatura deviam em caso algum ser separados. Nesta mesma linha se posicionava a escritora e jornalista, Alexandra Lucas Coelho (2001) que, em artigo de opinião, considerava que «a rasura da literatura dos programas de língua portuguesa só fará menos pela leitura e pelo amor aos livros.»

Alexandra Lucas Coelho

Por sua vez, António Guerreiro (2003) sintetizava: «A separação entre língua e literatura prevista na proposta leva às últimas consequências uma concepção do estudo da língua materna que a reduz a uma dimensão meramente instrumental, e para a qual a literatura não passa de um empecilho.» Já uma outra voz, muito respeitada nos meios académicos, Vítor Aguiar e Silva (2001), ainda que defendendo, no essencial, as opções curriculares anunciadas pelo ME, sempre ia dizendo: «Sou dos que pensam que a componente literária dos programas devia ser mais densa e mais rica, porque é nos textos literários que as línguas históricas manifestam toda a sua riqueza, toda a sua criatividade, toda a sua beleza, e porque os textos literários, exactamente por serem construídos na língua e com a língua, proporcionam uma modelização e um conhecimento insubstituíveis do homem, da vida e do mundo». A literatura seria, deste modo, o veículo por excelência para a aquisição da «cidadania culta».

Claro que o debate assumiu muitas outras vertentes, onde se esgrimiram argumentos do mais variado teor: desde o tradicional corporativismo por quem toma as deliberações (linguistas vs culturalistas), às opções programáticas (abandono da orientação historicista do programa de literatura e “exclusão” dos clássicos[7]), às abordagens pedagógicas (muito centradas, ainda, em manuais escolares), às potencialidades de leituras complementares ao cânone das obras e autores obrigatórios e que as actividades extra-curriculares (agora designadas de «enriquecimento») podem possibilitar, à inevitável questão da formação dos professores e do perfil específico daqueles a quem cabe, o dever primeiro, de ensinar a língua e a literatura[8], até à falência da eficácia do ensino básico (incapaz de cumprir uma das suas finalidades centrais numa disciplina com um lugar charneira no currículo).

Esta última merece algum desenvolvimento: o Português, a par com a Matemática, tem vindo a ganhar um lugar de destaque no currículo, sendo agora evidente a hierarquização disciplinar. O que até aqui não passava de um currículo oculto – em que as práticas concretas nos estabelecimentos de ensino revelavam a existência de disciplinas de 1ª e de 2ª – é agora, de forma inequívoca, assumido como currículo oficial. Essas duas mega-disciplinas têm presença em todos os anos de escolaridade, com uma alta carga horária, e foram até há pouco as únicas a serem testadas a nível nacional, quer através das «provas de aferição» (no 4º e 6º anos) quer dos exames reintroduzidos (no 9ª ano). Acresce ainda que desde a Lei de Bases do Sistema Educativo (1986)[9] e que agora se reforçou com as «formaçõestransdisciplinares»[10], se passou a responsabilizar todos os professores, e todas ascomponentes curriculares, pela valorização da língua portuguesa. Os resultados, no entanto, são, até agora, no mínimo, insatisfatórios.

Mas este subestimar da literatura, é também uma preocupação sentida ao nível pós- secundário. Carlos Azevedo, ao analisar o lugar da literatura nas sociedades modernas, onde o critério custo/benefício, numa lógica neoliberal de rentabilização e eficácia económica dos “produtos”, coloca a literatura e, muito em especial a poesia, no domínio do “inútil”; consequentemente, «o professor de literatura ou de humanidades corre o risco de ser olhado como o sem-abrigo das universidades, ou até da própria sociedade» (1999:14). O viver quotidiano e pragmático nas nossas sociedades complexas e globalizadas, é muito marcado quer pelo utilitarismo (imediato de preferência) quer pelo totalitarismo científico-tecnológico que tem, pretensamente, as soluções para os mais variados problemas dos indivíduos, dos grupos e das comunidades, numa sociedade que pensa que «se faz a si mesma através da ciência» (Cabral, 2002:1211). E se a isto, acrescentarmos o “reino todo poderoso” do audiovisual, o primado da imagem, e da internet, em simultâneo com uma frequência crescentemente massificada do ensino superior (procurado mais como rampa de lançamento para um emprego e uma carreira do que para se adquirir saber), temos um quadro padronizado, no qual à literatura dificilmente se reconhece algum valor de uso social e muito menos de acesso ao mercado de trabalho.

A versão definitiva – “Documento Orientador da Revisão Curricular do Ensino Secundário” – datada de 10/04/2003, acabou por acolher algumas das críticas então formuladas pelo campo literário: vingou a designação «Português» para a disciplina obrigatória da formação geral; surgiu a disciplina de opção anual «Clássicos da Literatura» nos cursos de “Ciências e Tecnologia” e “Artes Visuais” (mas curiosamente o “Curso de Ciências Sociais e Humanas” não ficou com nenhuma disciplina ligada à Literatura!); e a oferta da disciplina «Literaturas de Língua Portuguesa» (embora só fazendo parte do curso de “Línguas e Literaturas”) deixou de estar dependente do projecto educativo das escolas.

Entretanto, as reformas sucedem-se… E presentemente[11], qual a situação? Temos a disciplina de “Literatura Portuguesa”, na formação específica (10º e 11º anos) do Curso de Línguas e Humanidades [e já não “Literaturas”], e uma disciplina de opção “Clássicos da Literatura” (numa lista de 11 disciplinas e «dependente do projecto educativo de escola») nos restantes três Cursos Científico-Humanísticos. Nada sobre literaturas lusófonas e/ou internacionais! Fechamento completo sobre a realidade literária nacional.

Maria Adresen S. Tavares

Já Maria Adresen Sousa Tavares, em 1986, defendia (para o ensino nas ESE) o oposto: «creio que no âmbito de um corpus literário para a infância não devem caber apenas, nem exclusivamente, obras de autores nacionais – as grandes obras e os grandes autores para crianças são, como se sabe, universais, o mesmo se podendo dizer de certos motivos e temas – nem exclusivamente as obras escritas expressamente para crianças.» Salvato Telles Menezes (1993:119-120), ex-docente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, situa-se nessa mesma linha: «Embora a literatura não seja uma disciplina específica no ensino primário, a verdade é que constitui (ou deveria constituir) o espírito da aprendizagem da leitura. Todos aqueles que frequentaram o ensino primário e secundário deveriam possuir uma boa orientação literária. Boa orientação: nada mais, nada menos.» É nesse sentido que se aponta em Espanha (Junta da Andalucía), onde a minha neta frequenta o 1º ano da Educação Primária, ano lectivo 2023-24 (Mijas Costa - Málaga): na sua ficha de avaliação de 1º período, uma das sete áreas de aprendizagem designa-se “Lengua Castellana y Literatura”. Por cá, esse 2 em 1, nem no Secundário![12]

Um dos grandes problemas do sistema educativo nacional, sempre residiu num certo autismo dos responsáveis do respectivo Ministério. E não é de agora. Recordemos Os Maias (1888):
«– Ó Ega, quem é aquele homem, aquele Sousa Neto, que quis saber se em Inglaterra havia também literatura?
Ega olhou-o com espanto:
– Pois não adivinhaste? Não deduziste logo? Não viste imediatamente quem neste país é capaz de fazer essa pergunta?
– Não sei… Há tanta gente capaz…
E o Ega radiante:
– Oficial superior de uma grande repartição do Estado!
– De qual?
– Ora de qual! De qual há-de ser?… Da Instrução Pública!» (p. 402)

Já Rui Grácio, num texto de Abril de 1959 em que criticava o lugar da literatura portuguesa contemporânea no ensino secundário, constatava «o carácter ainda sumptuário das letras e das artes [e] a feição estreitamente pragmatista do ensino» onde domina(va) «a inflação da análise gramatical e a dominância de critérios historicistas na articulação dos programas de Português e de Literatura Portuguesa».

Notas

1. Carlos Ceia “Reforma curricular no ensino secundário: acabar de vez com a Literatura”, JL/Educação,16/05/2001, pp. 8-9.
2. Leonel Cosme “A literatura morre na escola?”, a Página da Educação, Julho 2001, p. 30.
3. Esta proposta parece assentar nas conclusões do estudo realizado pelo Observatório das Actividades Culturais: «ao prescrever obras de leitura obrigatória», fecha-se aos jovens estudantes «todo um universo a descobrir».
4. O documento “Linhas orientadoras da revisão curricular”, apresentado pelo ministro David Justino, em 21/11/2002 e que esteve em discussão pública até Janeiro de 2003, (i) manteve a «Língua Portuguesa» como disciplina da componente de formação geral obrigatória em todos os cursos do secundário, e (ii) acentuou ainda mais o “apagamento” da Literatura: a disciplina (bienal) de «Literatura Portuguesa» passou a opcional, na componente de formação específica, mesmo no curso de “Línguas e Literaturas” e a leccionação da disciplina «Literaturas de Língua Portuguesa», para além de ser também uma opção (em 4 cursos do 12º ano), fica dependente da disponibilidade das escolas. Cf. JL/Educação, 05/09/2001, pp. 1-6 “A revisão curricular do Secundário”.
5. Nelson de Matos “A literatura e o ensino da língua”, DNA, nº 344, 05/07/2003, p. 41.
6. Público, 25/01/2003, p. 30 “Escritores Contestam Revisão do Secundário”.
7. O debate centrou-se, naturalmente, sobre o ícone literário nacional – Camões e o ensino/aprendizagem d’Os Lusíadas. Rui Grácio falava-nos do «rancor juvenil pelos clássicos».
8. Cf. de Carlos Ceia: “O ensino do Português: o papel dos professores”, JL/Educação, 26/12/2001, p. 8 e “A má fortuna da língua e da literatura portuguesas”, Público, 09/11/2003, p. 34.
9. Artº 47º nº 7 da Lei nº 46/86 de 14 de Outubro. D.R. nº 237, I Série.
10. Artº 6º dos Decretos-Lei nº 6/2001 e nº 7/2001 de 18 Janeiro, D.R. nº 15, I Série-A. Reorganização curricular do ensino básico e do ensino secundário.
11. Decreto-Lei nº 139/2012, de 5 de Julho, alterado pelo Decreto-Lei nº 91/2013, de 10 de Julho e pelo Decreto-Lei nº 176/2014, de 12 de Dezembro.
12. No programa de Português do 5º ano do ensino básico, na «operacionalização das aprendizagens essenciais», domínio da Educação Literária, prescreve-se «Ler integralmente textos literários de natureza narrativa, lírica e dramática (no mínimo, um livro infanto-juvenil, quatro poemas, duas lendas, três contos de autor e um texto dramático – seleccionados da literatura para a infância, de adaptações de clássicos e da tradição popular)» [sublinhados nossos].


Referências

AZEVEDO, Carlos (1999) “O Lugar da Literatura”. Línguas e Literaturas, revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, II Série, vol. XVI, pp. 9-22.
CABRAL, João Pina (2002) “Novas articulações universitárias – pós-graduação, investigação e massificação do ensino superior”. Análise Social, vol. XXXVI, nº 161, pp. 1209-1217.
GRÁCIO, Rui (1959) “A literatura portuguesa contemporânea e o ensino secundário” in Educação e Educadores. Lisboa: Livros Horizonte/ Biblioteca do Educador Profissional, nº 4, pp. 121-7.
GUERREIRO, António (2003) “A literatura exclusa”, Actual-Expresso, nº 1583, 01/03/03, p. 46-7.
GUSMÃO, Manuel (2003) “A literatura atrapalha o ensino da língua?”, Actual-Expresso, nº 1583, 01/03/03, p. 48.
COELHO, Alexandra Lucas (2001) “Além da esquerda e da direita”, Público, 27/08/2001, p. 10.
MENEZES, Salvato Telles (1993) Literatura. Lisboa: Difusão Cultural/ O que é, nº 4.
QUEIROZ, Eça de (1888) Os Maias. Lisboa: Livros do Brasil/ Obras de E.Q., nº 5, s/d.
SILVA, Vítor Aguiar e (2001) “O ‘naufrágio’ de Os Lusíadas no ensino secundário”, Público, 01/09/2001, p. 7.
TAVARES, Maria Andresen de Sousa (1986) “Porquê o ensino da literatura nas Escolas Superiores de Educação?”, comunicação apresentada ao Encontro sobre o ensino e a aprendizagem da literatura portuguesa, Braga 30-31/10/1986.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Agostinho da Silva 118 anos

Em dia de aniversário do Professor Agostinho da Silva, um pensamento vivo, deixamos aqui imagens de um "powerpoint" que fizemos para sessão na Fnac do Chiado, em Lisboa, no ido 19 de setembro de 2013.

Luís Santos