Com um abraço aos amigos
Algo para relaxar....
Muitas são as histórias de médicos contadas nestas paragens do interior de Minas Gerais. No inicio de século passado, quando o sertão ainda era pouco habitado e as corrutelas de difícil acesso, os médicos viajavam léguas e léguas em estradas de terra batida para atender chamadas em áreas rurais de pacientes ou enfermos impossibilitados de se locomover. O médico era requisitado, a qualquer hora do dia ou da noite, no consultório ou até mesmo em casa. A história que vou relatar é conhecida pelos profissionais mais antigos como sendo verdadeira.
Numa noite de temporal, beirando a meia-noite, batem à porta da casa de um doutor da região. Sonolento, resmungando o inconveniente da hora, sai da cama e, em pijama, abre a porta da entrada da casa. Era um homem grande e forte que, no alpendre, pede para lhe falar. O vento forte fez com que o médico o convidasse para entrar, o que ele prontamente atendeu trazendo lama das botas e água acumulada nas abas do chapéu para o tapete do hall.
Direto, sem rodeios, o peão perguntou-lhe quanto o médico lhe cobraria para ir até o Ribeirão da Onça.
É muito longe? Pergunta o médico.
Bem, uma poucas léguas... Responde o peão.
Vamos no meu carro?A estrada está boa? Pergunta o profissional.
O peão "meio" sem convicção diz:
Quando saí de lá a estrada "tava" boa ...mas o preço o Sr. é quem faz...
O médico pensou, para vir me chamar a estas horas da noite o problema deve ser sério, e depois um profissional não deve recusar um chamado, pode ser um caso grave! Fez os cálculos e cobrou um preço justo para ambos, considerando a situação e o horário. Vestiu o sobretudo e a roupa e sobre o pijama, colocou os sapatos, pegou a maleta, avisou a mulher, e foi para a estrada com o caboclo, depois de muito custo para o velho carro pegar.
A tempestade tropical não dava trégua. A chuva caía violenta diminuindo a visibilidade, apesar do trabalho incessante do vai-e-vem do pára-brisa do calhambeque. Os raios rasgavam o negrume do céu, como faíscas brilhantes anunciadas pelos trovões retumbantes que faziam tremer a terra. O caminho que levava a Ribeirão virara um lamaçal onde o carro derrapava em zig-zag com frequência. Os buracos cheios de água e lama, pouco visíveis naquela turbulência, eram uma cilada constante a cada palmo rodado. De repente, apesar de todo o cuidado, o carro resvalou e caiu num atoleiro. O susto e a contrariedade fazem o médico soltar um palavrão, coisa pouco elegante a pessoa educada como o ele. Já estava arrependido de ter saído para atender sem tomar conhecimento do caso com mais detalhes. No banco ao lado, o peão, prestativo, logo se ofereceu para ajudar naquela situação difícil:
"O dotô pisa fundo e eu empurro o bicho para frente". O médico pensou, reconfortado, olhando a musculatura hipertrofiada do peão, bem visível, debaixo da roupa molhada; quem sabe esse fortão não consegue nos tirar desta enrascada.... E assim depois de várias tentativas, muita fumaça, esforço e gritaria, o carro saiu do atoleiro. Mas, para temor e desconfiança do motorista o grandalhão, todo enlameado, sentou-se no banco traseiro, deixando o médico com a pulga atrás da orelha. Este sentiu um arrepio correr-lhe a espinha, ao lembrar-se de uma situação semelhante que se passara com um colega que fora assaltado e roubado na estrada da mesma maneira...Armados com facas, os bandidos o renderam. Quiseram até cortar os dedos do profissional para tirar-lhe a aliança e o anel de formatura, pois com a idade ele engordara... A sorte foi que o médico tinha vaselina na pasta, e , para gozação dos malandros, usou-a para soltar os anéis.
Preocupado, disfarçadamente, com uma das mãos procurou a maleta, abriu-a e buscou no fundo dela, debaixo dos apetrechos de médico, o revolver. Naquelas bandas, antigamente, as armas de fogo eram indispensáveis e inseparáveis companheiras de aventureiras jornadas...
A cada lufada de vento crescia o medo e o arrependimento, até que, finalmente, chegaram à casa do caboclo, que sorrindo disse:
Pode largar a garrucha “seu dotô” chegamo... . E meio sem-graça, entrou na casa chamando a esposa, aos berros...
Joana, ó Joana...ocê tá melhor?
Do quarto sai a mulher de camisola, espreguiçando-se, espantada com toda aquela barulheira... Ora, home, eu não tô doente...e como é que ocê conseguiu chegar, com esse temporá...eu só ia te esperá amanhã....
Sem entender nada o médico olhava estupeficado aquela cena doméstica, até que o espertalhão do caboclo, sem saída, explicou :
Pois é ...eu perdi o ônibus, sem lugar pra ficá, e sem taxista que quisesse me trazer até aqui por dinheiro nenhum do mundo, a solução foi procurar o doutor ...
Dizem também que o médico não fez por menos. Consultou os dois, pediu exames preventivos, cobrou honorários com acréscimos de atendimento noturno e fora de logradouro, gastos de gasolina, limpeza do carro, risco de vida, ...E ainda ganhou do sabido caboclo frango em pé, ovos, picuás de verduras e frutas, e a promessa de uma leitoa pro final do ano!
Coisas de caboclo folgado, coisas de mineiro sabido...
Maria Eduarda Fagundes
Uberaba, 12/04/12
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