segunda-feira, 14 de julho de 2014

REAL... IRREAL... SURREAL... (88)


Woman on a Blue Divan, Ludwig Kirchner, 1907
Óleo sobre Tela, 81x91cm

SOMBRAS QUE DANÇAM

Tinha uma cara tão curta que, mesmo sendo magra, era redonda. O cabelo distribuía-se pela testa e pela nuca de forma muito certa, como se nele nada pudesse ser casual. 
Imagino que mais por necessidade do que por método, contasse pela manhã todos os seus cabelos para que o risco ficasse precisamente a meio. Era uma mania muito pouco racional, mas ele, homem determinado, certamente prezaria a coerência. Um dia, tendo-lhe ficado os cabelos por contar, pendeu para um lado e todos comentaram a bebedeira desusada de um homem habitualmente tão aprumado.
Tinha um irmão mais velho cuja mão terminava numa bengala de prata e que, de forma também incomum, repetia sempre por três vezes cada uma das suas falas. Era necessário que o fizesse já que a sua voz começava baixa, quase impercetível, e apenas na terceira repetição se assegurava ser ouvida. Era-lhe penoso saber que a maior parte das pessoas conseguiam fazer-se ouvir à primeira. Ele próprio tentara um dia falar logo de princípio num tom mais audível, mas as palavras saíram-lhe tão depressa que ninguém as conseguiu compreender. Habituara-se, por isso, a ser mais paciente do que revoltado e com o tempo foi-se reconciliando com tal caraterística, deixando a pouco e pouco de lhe chamar defeito. Até porque, curiosamente, se não fosse tal insólito facto, seria apenas o irmão mais velho do “Direitinho” ou o homem da “Luísa Sempescoço”.

Luísa nascera há precisamente quatro décadas. E, com ela, um segredo que penso ter descoberto num incerto dia. 
Aqui e ali, solta por uma impossível moderação, foi-se desenhando uma estranha verdade… a bebé tinha nascido dividida em dois pedaços diferentes, um no sábado e o outro apenas na segunda. De tantas as horas entre cada pedaço, ficara-lhe o pescoço pelo caminho e, anos passados, tal caraterística foi-lhe roubando o nome e a Luisinha da Filomena passou a chamar-se Luísa Sempescoço. Esta era umas daquelas coisas que, num mundo onde apenas entram os crescidos, se dizem muito baixinho e que os miúdos, curiosos, reinventam em histórias mais ou menos sinistras, mas que servem às crianças e justificam plenamente a distância guardada na missa, ao domingo.

Hoje não sei imaginar um homem de cabelos contados. Hoje, a Luísa descobriu em mim um domingo. Hoje um homem encontrou o ritmo certo para as suas palavras e nunca mais as há-de recomeçar. 

Agora sou crescida. Nada pode voltar a ser casual e apenas as sombras arriscam e dançam, soltas e sem medo.

Maria Teresa Bondoso

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