segunda-feira, 21 de julho de 2014

REAL... IRREAL... SURREAL... (89)

Espectadoras, Nuno San-Payo, 1998
Óleo s/ Lona e Platex, 60x90cm
As duas irmãs

Eu nunca soube se o seriam mesmo, nem tampouco se ele, o suposto irmão, seria doutor – olhavam e inclinavam a cabeça. O empregado servia um café à rapariga e elas pagavam. 

As duas mulheres, distintas e caladas, uma um pouco mais atrás do que a outra, pareciam dizer tudo com gestos. À Filomena reservavam um pesado desaprumo e, no caso do Arturzinho, uma inimizade muito aberta colocava-lhes no olhar um claro desprezo acompanhado de um agitar nervoso da mão. Como que a indicar desejarem-no longe...
Depois, havia ainda a Salomé a deixar sempre dois sorrisos incompletos, não fosse o irmão perceber ser aquela a vida que sonhavam. 
Ao António, cujos versos cada uma delas sentia serem-lhe dedicados, concediam um meneio discreto e um olhar cheio de promessas, captado de forma tranquila pela sua mulher, Clara. 
Depois, contavam-se ainda os miúdos da criada, o homem do talho, a mulher do coveiro, o filho da viúva da praça e a rapariga do aparelho nos dentes – que estranha moda, aquela. 
Andavam sempre juntas as irmãs do doutor. O pai, homem distinto, julgara sempre que os outros eram pouco, pelo menos para as suas meninas… e o irmão seguira-lhe as vontades e depois também elas, as mais novas. Aprenderam piano com uma professora russa a quem dispensaram um pouco mais de afeto e com a qual devem ter tido os momentos mais perfeitos da sua vida a sério. A que tinha o costume de andar mais atrás foi a primeira a aprender os acordes e foi também a primeira a morrer, ontem. 

A maluca do café chama-se Filomena. Está sempre no café, ao domingo, e as duas irmãs nunca, até ali, tinham dispensado o momento em que ela, com alguma displicência própria dos tolos, lhes dizia de forma casual, quase sem esperar resposta:
- Olha, podes pagar-me uma bica?

Desta vez, Filomena ficou calada a olhar a rosa, ainda vermelha, sobre o piano do café.


Maria Teresa Bondoso

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