por José Pais de Carvalho
OLHARES
Quando me debruço sobre a interpretação do acto de criar ou tento transmitir algumas ideias, sinto que há algo para além de toda ou qualquer sensação, emoção, sentimento ou pensamento. Qualquer coisa que, sem fronteiras, está além do que me é possível conceptualizar e descrever, porém tão perto, tão dentro de mim, uno e imutável, que é a ideia perfeita, a linguagem perfeita, a obra perfeita, no entanto inacessível.
Assim, apreendo a existência de duas facetas no meu interior. Uma, pela sua dualidade, estabelece diferenças, e a outra, por sua interioridade e primordialidade, é o conhecimento e a origem de todas as coisas.
A primeira faceta, captada a partir de referências exteriores e do que se apreende do que é projectado, conceptualiza unicamente o que não pode ser correctamente compreendido. A segunda, pelo desconhecimento da nossa verdadeira identidade, permite-nos apenas o acesso a si própria, como é o exemplo da sensação particular no acto de criar, como referi acima.
Portanto, posso dizer da minha vontade de ir além desta percepção, pois a nossa existência não é mais do que uma constante transição, e nós, sequer como espectadores, conseguimo-nos dissociar para a presenciarmos, tal a solidez das nossas estratégias duais.
Como pessoa, compartilho com todas as outras um conjunto de percepções que me permitem dizer que sou um ser humano. Mas, individualmente, observo que temos diferentes maneiras de explicar, sentir e interpretar essa percepção comum, criando a impressão de que vivemos num mundo único ou separado dos demais.
Ao debruçarmo-nos um pouco mais sobre essa perspectiva, constatamos que ela descreve o que se pode entender como a realidade relativa; subentende-se, então, que este tipo de visão tem um carácter subjectivo, representa a interpretação ou a concepção individual, e também a que, colectivamente, podemos fazer sobre alguma coisa, material e imaterial.
Observe comigo o leitor que, se 1000 pessoas sonharem, haverá tantos sonhos como sonhadores. Haverá tantas culturas quantos grupos de pessoas diferentes que, sob uma mesma percepção, desenvolvem um mesmo sistema cultural, social e económico. Das até 60 000 línguas que se calculam haver no planeta, estas representam tantos idiomas possíveis de outros tantos povos, tribos, etnias ou países. Ou, num ângulo mais restrito, numa família, havendo 6 irmãos, nenhum deles é igual ao outro, cada um terá caracteres diferentes e será uma pessoa diferente.
É, pois, esta percepção de individualidade que compreendo como realidade relativa. E se entendermos haver também uma realidade absoluta, e como entre o absoluto e o relativo não existe uma oposição, mas, antes, uma continuidade, de alguma maneira poder-se-á dizer que o que está além do relativo será o absoluto.
A nossa vida está cheia de exemplos que nos permitem abordar o acesso (e repito: abordar o acesso) à percepção do que é absoluto, mas não ao absoluto. E isto é-nos revelado não só na Arte, mas nas coisas simples da vida, em alguns casos, chamamos-lhe experiência da vida, em outros, coincidências. Por exemplo, eu e o leitor não pegamos num ferro em brasa porque ambos sabemos que nos vamos queimar, ou, quando estamos a pensar em alguém, essa pessoa telefona-nos nesse preciso momento. Pelo desconhecimento desse todo que é a realidade absoluta, procuramos caminhos exteriores para a encontrar.
Assim acontece também com os modelos de pensamento. Ademais, penso que estes, mal-comparados, não são melhores ou piores do que qualquer interpretação individual devidamente fundamentada.
Deste modo, devemos não só apreciar o que determindado modelo nos traz de benéfico, mas também reflectir como o mesmo nos impede de enxergar, ainda que, para isso, necessitemos mudar o foco e afastarmo-nos desse mesmo modelo.
Para observarmos outras possibilidades, é necessário dissociarmo-nos daquele em que estamos inseridos. Porque, bem vistas as coisas, um modelo de pensamento, ainda que fortemente estruturado, não passa de uma provável interpretação entre muitas possíveis.
Quando nos interessamos por uma obra de arte, pensamos no porquê, quando e como, mas geralmente através dos olhos da causalidade mecânica. Olhando a obra, pensamos como é que o artista chegou àquele traço, àquele signo. Assim se estuda a mecânica do texto, do autor e do leitor nas suas mais variadas formas. Mas este é um movimento sobretudo externo.
Este tipo de pensamento de génese helénica, e posteriormente cartesiana e newtoniana, é dialéctico e mecânico no raciocínio e na argumentação. Por tanto, circular e infinito. Circular como sistema fechado e infinito pela probabilidade.
Criar um modelo na perspectiva de abarcar o todo no contexto da cultura ocidental é o mais puro engano, no mínimo, a mais pura ilusão. Intelectualmente, vã é a tentativa.
Este, entretanto, é o tipo de raciocínio dominante na nossa cultura. Porém, quando fazemos o movimento interior, intimista, antes de mais, pensamos no nosso aspecto emocional. Apercebemos que as nossas emoções vão e vêm ininterruptamente. Ainda que façam parte da nossa génese, somos muito mais do que de positivo ou de negativo elas podem representar nas nossas vidas.
Ao invés de imaginarmos que podemos ignorar as emoções, fazermos de conta que não existem ou, antes, pelo contrário, enaltecê-las, torná-las um ícone da sensibilidade humana, será necessário conseguirmos entender como elas influenciam os nossos comportamentos, levando-nos a uma visão subjectiva e restrita.
Ao penetrarmos na natureza das emoções, reconhecemos a sua instabilidade e efemeridade; então começamos a compreender-nos e compreender o que nos cerca com outros olhos. Assim, a partir do momento que o conseguimos fazer, o poder das nossas acções, pensamentos e emoções deixam de se reverter em consequências, tais como as vivenciamos e interpretamos comunmente; redimensionando-nos e, por consequência, redimensionando o mundo que conhecemos como real, aproximando-nos do todo.
Portanto novos olhares emergirão, conforme compreendermos, gradativamente, a importância do que é a realidade subjectiva e a realidade absoluta. Não obstante, o meu discurso é somente uma descrição a partir de um ponto de vista fora do modelo comum do pensamento, ou uma tendência artística. Um relato ou um caminho sob um olhar diferente. E nada mais pretende ser.
José Pais de Carvalho
Sintra, 2015