Luís Souta
Fotos de Luís Souta, 2017
Alto da Castelhana, Cascais
Fotos de Luís Souta, 2019
Alto da Castelhana, Cascais
À
memória do Professor DON DAVIES (1926-2019),
Boston University.
Boston University.
«a casa
abriga e obriga»
(Irene ou o
Contrato Social, Maria Velho da Costa, 2000: 148)
A irracionalidade humana do Homo Demens tem manifestações
múltiplas. O ‘homem não aprendente’ repete os mesmos erros ad nauseam. Não
aprende nem com a sua experiência nem com a História. Na paisagem urbana, em
Portugal, proliferam exemplos como este que as duas fotos nos dão testemunho.
Um prédio de seis pisos, quase pronto, ostenta a sua infuncionalidade por
motivos que só o proprietário, o credor e o autarca saberão (e cada um
argumentando com a sua ‘racionalidade’ – económica, financeira, jurídica ou
outra).
Os tijolos fecham o que devia ficar aberto (portas, janelas,
varandas). «Ah, pois, mas se não fosse assim… os toxicodependentes, os
sem-abrigo, os marginais davam cabo de tudo.» Sem razões morais, éticas,
humanas. Nem utilidade social mínima! Ali fica mais um mamarracho
arquitectónico, inacabado, sem préstimo algum, uma mancha a conspurcar as já de
si inestéticas urbanizações ‘modernas’ que cresceram na «fúria desenvolvimentalista»
(expressão contundente do antropólogo Ruy Duarte de Carvalho). Um país que
continua a dar-se ao luxo de emparedar edifícios quando há jovens a precisar de
habitação, idosos a viver ao relento, gente a residir em barracas (sim, ainda não
foi nomeada a comissão liquidatária do PER - Programa Especial de Realojamento,
criado pelo Decreto-Lei nº 163/93 de 7 de Maio). Em suma, é O Sistema
Irracional que Paul A. Baran & Paul M. Sweezy (Porto: Textos Marginais, nº
1, 1972) desmontaram.
Da recém-criada Secretaria de Estado da Habitação (desde 2005
que tal não existia na orgânica governamental) espera-se acção, impedindo os
construtores civis de deixarem obra por acabar. Quem inicia um projecto tem que
dar garantias financeiras para o levar a bom porto. Essa deve ser uma das
condições obrigatórias para aprovação e licenciamento pela autarquia. Como se
lê na epígrafe deste texto «a casa [também] obriga», em primeiro lugar, a quem
a constrói. O governo deveria também elaborar um cadastro nacional dos prédios
inacabados, que se encontrem em situação semelhante ao que aqui damos nota. No
concelho de Cascais são às dezenas. Aterrador, o número, a nível nacional!
E a propósito deste tema, vem-me à memória um dos poucos
livros que, ainda no decorrer do ‘bacharelato’, li e sublinhei de fio a pavio,
por ocasião do meu primeiro trabalho de campo, no bairro clandestino das
Bragadas, na Póvoa de Santa Iria – A Questão do Alojamento de Friedrich Engels;
publicado em 1872, no formato de 3 artigos (polémica com os defensores do
pensamento de Proudhon) e mais tarde reunidos em brochura. A edição portuguesa
(Porto: Cadernos para o Diálogo, nº 3, 1971) incluía também um longo prefácio
do autor, datado de 1887, para uma nova edição pois o «Governo Alemão, que
proibindo-a, como sempre favoreceu grandemente a venda». Aí explica a sua
intervenção nesta questão:
«Em consequência da divisão do trabalho entre Marx e mim,
tomou-me defender os nosso pontos de vista na imprensa periódica,
particularmente lutando contra as opiniões adversas, a fim de que Marx
guardasse tempo para a elaboração da sua grande obra.» (p. 13)
Engels é, por esta altura, um escritor maduro, já não aquele
companheiro d’ O jovem Karl Marx, filme de Raoul Peck (2016), que vimos aquando
da abertura da 5ª edição da Judaica – mostra de cinema e cultura, a 6 de Abril,
n’ o Cinema da Villa, em Cascais.
«Como resolver então a questão do alojamento?
(…) estabelecendo gradualmente um equilíbrio económico entre
a oferta e a procura; esta solução não resolve definitivamente o problema (…)
Quanto à maneira como uma revolução social resolveria a questão isso depende
não somente das circunstâncias nas quais ela se produziria, mas também de
problemas muito mais extensos, em que um dos mais essenciais é a supressão da
oposição entre a cidade e o campo.» (pp. 59-60)
Para F. Engels «seria mais do que ocioso deter[-se] nesse
ponto» [a supressão da oposição cidade-campo] por a considerar uma ‘utopia’.
Decorridos todos estes anos, ela parece afinal bem mais próxima de todos nós: a
urbanização imparável que a todos atrai, em especial os do mundo rural que,
entretanto, se vai estiolando.
«a verdadeira ‘crise do alojamento’ (…) não pode fazer-se
naturalmente senão pela expropriação dos proprietários actuais, pela ocupação
dos seus imóveis por trabalhadores sem abrigo ou incomodamente amontoados nos
seus alojamentos» (p. 60)
Por cá, em pleno PREC, houve uns arremedos do género, coisa
soft e pontual… A «revolução social», de 1974-75, «lembra-me um sonho lindo,
quase acabado / lembra-me um céu aberto, outro fechado» (Fausto, 1982).
Post Scriptum:
Aqui está um bom exemplo de reversão urbanística. O meu texto
original foi editado pelo Estudo Geral em 02/08/17; dois anos depois, a
transformação é radical (como o atestam as duas fotos que agora se anexam). O
que estava emparedado está actualmente ocupado na plenitude. Uma habitação de
qualidade – com painéis solares, locais próprios para estacionamento, espaços
verdes – veio melhorar a paisagem urbana nesta zona na fronteira entre Cascais
e Alcabideche.
Entretanto, desde o início de Julho, o país está, finalmente,
dotado de uma Lei de Bases da Habitação. A sua aprovação na AR, mostrou que
(ainda) há temas fracturantes entre Esquerda e Direita, e o da habitação
continua a ser um deles (a Lei teve o voto favorável das Esquerdas e o voto
contra do PSD e CDS). A deputada (independente) Helena Roseta, a quem coube
esta iniciativa legislativa, está de parabéns; nas suas palavras «esta lei de
bases é um caderno de encargos para o futuro».
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