Ontem à noite, durante o sono, faleceu a minha tia Mirandolina, a minha varinha de condão, como eu dizia bem pequenino, a propósito daquela que também me criou e em boa parte contribuiu para eu ser aquilo que hoje sou. É a minha infância que se esvai, pela natural passagem do tempo e o ciclo da renovação das gerações.
Mirandolina Rosa de Almeida Gomes (1920/2004), irmã de minha mãe e mulher do tio Jofre, irmão de meu pai, teve vida atribulada em que a tragédia teve lugar no fim de décadas de prosperidade e bem-aventurança, em que tudo parecia decorrer para desenlaces de contentamento.
Mas não foi assim. Nem sempre as pessoas sabem preparar o caminho que é esta nossa passagem pela superfície da Terra e foi isso que aconteceu com estes meus tios de quem tanto gostei e que tantas boas memórias me deixam que a saudade, sabemos, é a nostalgia irreparável das ausências que transportaremos no peito até que os dias se apaguem. Se bem que tenham sabido interpretar um plano de labor e sacrifícios para acumularem a fortuna da segurança e do quotidiano confortável e farto que haveriam de legar à minha prima irmã Adelina, não curaram dos laços e dos afectos e das transmissões de sabedoria que dão o cimento a um núcleo familiar e em vez da tranquilidade na velhice que seria de esperar, viram-se nas mãos da vilania que lhes engoliu os negócios e propriedades e os deixou com as finanças a zero, acabando por desbaratar o que restou numa sobrevivência confinada à casa onde residiam e que foi das poucas que resistiram à erosão. Isto para quem teve apartamento à beira-mar e viajou por esse mundo e sempre teve à disposição o que a tecnologia e a ciência do século vinte inventaram para o lar.
Morreu de velhice e mal tratada das maleitas várias, esta minha tia que me contava histórias do sobrenatural serrano onde decorrera a sua infância em casa do meu bisavô Hugo, morreu no sossego do sono talvez cheia de tristeza por não transmitir aos netos as possibilidades da existência cheia de mordomias que em tempos foi a sua.
Deus te guarde a alma em Sua Infinita Glória, minha varinha de condão.
Não mais se apagarão as memórias da minha infância encantada que se repartiu pelos quintais e terraços e as salas e os quartos das residências geminadas que eram a deles e a dos meus pais.
O funeral decorrerá amanhã de manhã.
Alhos Vedros
13/07/2004
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