sexta-feira, 25 de agosto de 2017

'Reflexões - Encontros com o Eu'


Foto de Lucas Rosa

Por vezes é preciso um tempo e um espaço para nos recolhermos dentro de nós mesmos, em algum momento que nos possamos permitir a tal introspecção. 
Precisamos de nos libertar das vestes em que nos tornámos viciados, limpar a casa, a nossa casa interior, o nosso templo, varrer o velho, e deixar aquele vazio chegar... Não um vazio mau, mas aquele que abre um espaço e pode acolher o novo e a esperança em algo melhor.
A vida por vezes, apanha - nos na correria, nos afazeres, ou então, na apatia, no descanso, momentos vários, que, de uma forma, ou de outra, não permitem o diálogo entre os nossos vários 'eus', de nós connosco mesmos.
Esse diálogo é no entanto urgente e necessário.
E tal ocorre em várias fases da vida, esta necessidade.
Reciclagens que devemos ir fazendo...
Sentir, pensar, expressar afetos sem medo, de cada um para consigo próprio, os muitos 'eus' que temos, num ameno diálogo em que passado, presente e futuro se confrontam e cruzam, diálogos vários, pensamentos soltos em forte catarse...
É aqui também que tomamos contacto com o nosso inconsciente, exposto sem reservas, confrontado em si mesmo, pelo consciente que o desafia.
Nesta altura, por vezes, se o encontro é pleno, também se chora em silêncio ... Por vezes dá - se conta da responsabilidade imensa das nossas escolhas, da culpabilidade a ser gerida e compreendida por decisões de vida que arrastam outras vidas com elas, sem misericórdia...
Inevitáveis decisões, porém.
Inevitável escolher e decidir sair tantas vezes do convencional, do requerido, do esperado, e dar um salto no mundo desconhecido do vazio que nos aguarda, vazio que se ri do medo de quem o ousa confrontar...
Mas é todavia inevitável escolher.
Se muitos vivem na ilusória aparência do que reluz, outros ambicionam o verdadeiro encontro com eles mesmos, a autenticidade, a verdade.
Estes, os que não se iludem no quotidiano que cuida do seu narcisismo, impedindo-o de chegar ao eu e deitá - lo por terra nas suas insuficiências, estes, dizia, terão que romper com o confortável conhecido, onde nada cresce, nada evolui, apenas vive na ilusão de que o faz.
Muitíssimo mais arriscado esse confronto, esse salto no vazio, que desanima, se oco e pleno de nada, e se anima da mais harmoniosa esperança se abre espaço à nossa entrega total ao que virá.
Alguns de nós simplesmente não querem ser felizes, nem deixar de o ser... Entendem pois que o caminho faz - se do bom e do menos bom, não buscam um paraíso perdido, mas tão só pensar e caminhar, sentindo a cada momento único de felicidade aquilo que traz consigo, e concedendo o saudável espaço de encontro com o seu lado sombra, integrando - o finalmente, indo ao encontro do Self.
Não devemos pois temer nada.
Nem a nossa personalidade, nem a nossa sombra... Não devemos sobretudo viver na ilusão.
A ilusão do espelho, e a ilusão do mundo que olhamos.
Devemos nada temer.
Não temer também as escolhas que fazemos ao longo desta caminhada, que mais não é que uma breve passagem, onde bem e mal caminham lado a lado, inevitavelmente. É que um não existe sem o outro.
Toda a escolha, cada uma das nossas escolhas, pode trazer dor e incerteza.
A verdadeira escolha traz dúvidas, questões, inseguranças várias, finalmente assumidas quando decidimos escolher.
Há quem lhe tenha correctamente chamado angústia existencial.
E de facto, em cada passo, o simples e fugaz optar por atravessar ou não uma estrada num dado momento, e repare - se que aqui falo de uma hipotética passagem pelo quotidiano, em que escolhemos atravessar, de facto, uma estrada para chegar ao outro lado do passeio, e esta escolha não muito pensada pode de facto traduzir - se na vida ou na morte... Nunca sabemos se somos atropelados nesta travessia... E no entanto, mesmo prudentemente, ou não, teremos de escolher quando e onde atravessar.
Escolhas. Angústias. Vida. Morte.
Nunca sabemos.
Temos que viver com o facto de termos que fazer inevitavelmente escolhas, sem sabermos na verdade as consequências das mesmas... Sabendo apenas que mesmo o não escolher se traduz em si mesmo, numa escolha...
A vida é por isso cheia de caminhos, escolhas, trilhos e encruzilhadas, várias...
Algumas significam momentos de dor e pesar, outras momentos mágicos, outros pura alegria...
Umas são quase uma eternidade, vivenciada com a Alma, num momento único atemporal ...
Outras são apenas isso mesmo, momentos...
Momentos que, ainda assim, devem ser antecedidos por maior ou menor reflexão, e que têm que acontecer para evoluirmos no caminho que vamos traçando.. Alguns evitam caminhar... Outros caminham como que sem olhar a nada que os possa levar para um lugar que desconhecem...
Preferem as rotinas, o quotidiano, as horas programadas...
Outros preferem arriscar e caiem...
Outros, porém, fazem do seu caminho uma verdadeira caminhada. Uma caminhada rumo ao Sol que desponta e que os ilumina não porque sejam selecionados, pois os Raios de Sol não selecionam apenas iluminam, mas porque se expõem a esta dádiva de Luz...
Precisam no entanto de fazer esta escolha. E esta escolha não é compatível com o senso comum.
Iludem - se sim, muitos, tentando até ser vulgares, com a sensação de que assim encaixam no esquema da sociedade alienada, têm a estranha e agradável sensação de serem normais...
Mas a vida e mesmo a resposta à nossa volta dos que a olham com o senso comum, vai fazer rapidamente com que os que não o são se apercebam de que não o podem ser.
Vão sentir por vezes até a discriminação, o preconceito, o dogma social do padrão onde esses outros encaixam, e entender de uma vez, que não pertencem a esse lugar. Viajam nele. Mas não lhe pertencem.
Nem todos ousam fazer algumas escolhas...
Deitar fora o certo pelo incerto...
Tantas vezes o passo fundamental para quem ousa ser livre no pensar, no agir, e na vida...
Livre não por um qualquer ato de egoísmo, mas antes por um ato de lucidez plena do quão pequena se torna uma vida pregada ao materialismo e ao comum, se reduzida a isso mesmo.
Pensar, ser simplesmente pensante, é na nossa sociedade um ato puro de rebelião.
Ato permitido apenas aos que ousam sair do sistema, este desenhado cuidadosamente para nos manter alienados por entre o entretenimento e as horas de trabalho, ou a falta dele e a falta de recursos básicos... Alienação total, formatação de cada indivíduo, para que encaixe no molde, no convencional, sendo mais uma peça do sistema.
Por isso não tenhamos medo do confronto connosco e com o Ser no Mundo...
De ser pensantes, ainda que reduzidos ao Nada.
De ousar finalmente deixar de querer encaixar e sermos autênticos na nossa originalidade, humanos com o mundo, críticos e pensantes, interventivos se necessário for.
Inevitável escolher a verdade, o encontro com o Eu e com o Outro, inexorável afirmar a nossa diferença perante um sistema que nos quer alienados e não pensantes. Questionamos. Escolhemos. Ousamos. Pensamos.
Enfim, caminhamos.
Mas nunca esquecemos, e citando Goethe: 'Nem todos os caminhos são para todos os Caminhantes'.
Assim é. 

Por Lúcia Reixa Silva, 24/8/2017


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