Ana Maria Pessoa
Uma leitura de um livro:
José Gil é o autor que nos
convida a partilhar hoje um livro pequeno, branco, depurado, de 15 x 18 cm, com
53 poemas, de amor…
É um privilégio estar nesta
sessão com alguém que conheço há mais de três décadas, em contexto
profissional. Mas não é esse que convoco aqui. Este é o lugar do pessoal, de um
outro registo quase quotidiano, de centenas de quilómetros feitos ao longo de
uma estrada já sem surpresas, com ou sem outras companhias, repleto de
conversas amenas, privadas, guardadoras de segredos, muitos, pessoais, íntimos,
alguns apenas sentidos, não ditos, por não encontrarmos para eles palavras. Um
percurso de cumplicidades, de discussão, de pontos de vista, de timidez, de
tristezas e alegrias, de angústias, trocadas e partilhadas.
Conhecemo-nos e partilham-se
os medos sobre a vida dos filhos, o arrojo das decisões, as dúvidas, as
certezas, os amores felizes e depois infelizes, a vida…o passado e o futuro…
Outras mulheres e homens que
povoam as nossas vidas marcam também presença nestes diálogos. Até aqui nenhuma
surpresa. Porém, nenhuma como a Solange – mulher real, amada – traz tanta
melancolia, nostalgia e reflexão sobre distância e saudade.
Foi há muitos anos, na véspera
da partida para o Chile, que soube que o José Gil (lhe) escrevia poemas. Foi
uma admiração total. Depois, um dia, quase com uma alegria pueril, falou de um
livro que iria publicar. Soube então que o queria pequeno, em linguagem direta, com a naturalidade de
quem fala, “bonito e simples”. Seria uma forma de, como disse Nadine Gordimer,
ao mesmo tempo, se esconder dizendo, em alta voz, o que sentia em surdina. Para
uma pessoa tão educada, tímida, respeitadora dos outros, a escrita da poesia seria
a forma de comunicar o/com o sofrimento que a distância lhe impunha.
No verão passado
trouxe um livro, este, que me pediu que lesse e cuja apresentação me convidou a
fazer. Hoje, agradecida, aqui estou para lhe devolver a minha resposta e, com
ele e com todos aqui presentes, partilhar a intimidade que ele nos oferece.
Um título cheio - com a amada
e com pequenos poemas que, tal como as cerejas na cultura popular, não se
consegue parar de ler como numa magia que se estabelece “entre a folha branca e o gume do olhar” (Eugénio Andrade).
Um
livro sobre o oceano Atlântico, enorme entre duas pessoas, que ”conhece muitos
segredos” e que comunica sofrimento. Um livro triste, sobre a solidão. Repleto
de palavras “ cheias de memória/, algumas, um punhal, um incêndio/outras, orvalho
apenas”
(Eugénio de Andrade), de
lugares, de cheiros, de sabores, de gestos, de cores. Sobre o amor, os tempos
felizes, fugazes.
As sultanas, o melão, os figos do cato (as piteiras, o figo-da-índia, a figueira do diabo...), os morangos, os marmelos, as nozes, o mel, o vinho, lembram poemas do quotidiano de tempos árabes na Península, cantados por poetas como Al-Mu'Tamid.
As sultanas, o melão, os figos do cato (as piteiras, o figo-da-índia, a figueira do diabo...), os morangos, os marmelos, as nozes, o mel, o vinho, lembram poemas do quotidiano de tempos árabes na Península, cantados por poetas como Al-Mu'Tamid.
A leitura, o corpo, “o amor sem feriados”, “os beijos com flores eróticas”, “os teus lugares ausentes das minhas mãos” “ o teu corpo para mergulhar na minha terra o lugar da serenidade” são a exposição de um homem na meia-idade que ama, que partilha essa felicidade com quem o lê, sem rebuço ou pudores. São um convite a entrar na intimidade de prazeres e tristezas de quem os escreve, sem disso ter vergonha. São a concretização da máxima de Fernando Savater que, aos professores (como é o caso de José Gil) recomenda que exponham, sem despudor, a sua nudez perante quem os ouve.
Poesia
de espaços e lugares entre Colares, Santiago do Chile, Guincho, Nazaré,
Sevilha, Cascais, Serpa, Sintra, Belo Horizonte, Évora, Pinhal Novo, Punta del Mar,
Valparaíso, onde se expõem pormenores com um detalhe de filigrana e de
geografias que o aprisionam e que lhe recordam todos os sítios de felicidade.
O
tempo multifacetado de uma década de amor é encarcerado em frases que percorrem
“o verão”, “o natal”, “dezembro”, “o amor sem feriados nem domingos”,
“janeiro é assim”, sábado chove no outono, fevereiro”. Esta sucessão rápida, só
na enumeração, carrega uma angústia melancólica na lembrança.
A poesia chilena, a de Drummond de Andrade, a de
Leonard Cohen sussurrada ao ouvido no “dance me to the end of love” percorre,
do início ao fim, o texto destes 53 poemas. A ela
se juntam algumas das causas por que vale a pena bater-se: o teatro sempre, os
refugiados, a resistência de Mandela, “a podridão das negociatas e o direito à
honra”, o colonialismo e o “desemprego a crescer na nossa mátria”…
Poesia ainda de distância e saudade que
impede a felicidade total. O “que temos lutado para não
haver longe nem distância”, entre um tempo passado de que se fala,” no natal
passado que demorou meses a preparar”,” quantos dias passaram sem as cerejas
das tuas carícias”, “dormimos nas palmeiras da sombra”,
”eu amo-te dolorosamente na linha da distância”.
Esta
maldição lançada sobre a distância é tão consciente e castradora que o poeta
nos faz lembrar os versos de Pablo Neruda,
precisamente sobre a dor da distância, quando este diz:” Não estejas longe de
mim um dia que seja, porque, porque, não sei dizê-lo, é longo o dia”.
A
saudade impõe-se, diacrónica, do princípio ao fim do livro, em frases curtas,
acutilantes, quase impercetíveis: “Saudades de tantos abraços, saudades”,
“estamos tão longe e tão perto”, “Lembramos Santiago com saudade infinita”, “esquece as saudades nos meus dedos vagabundos de mel”, ”mergulho
nos cabelos da saudade com trancinhas húmidas como algas”, “as saudades
de tantos dias de outro”.
Nestes
poemas há uma angústia constante perante a dificuldade de viver o presente, ou
seja, um intervalo entre um passado de amor que se recorda e que se inquieta
com a invenção de outras formas de preparação de novos encontros: “espero
devagar o passar do tempo” “Dedos que escrevem o branco caminho da tua vinda em
agosto”, “ imagino o futuro agosto”.
Este
livro, também onírico, delirante, verbaliza cada dia como se fosse um sonho
irreal gasto na preparação de encontros vindouros, angustiantes porque sem
limite previsto para acontecerem, embora estimulantes porque com esperança de
concretização – “vou tocar o teu peito com pedrinhas doces”, “vou voar em sonho
de madrugada de Lisboa para Belo Horizonte”.
Num livro de
poemas de amor há lugar para uma dedicatória à mãe que, apenas no que à
felicidade da infância se refere, lembram Eugénio de Andrade no Poema à mãe. Também aqui José Gil é
feliz pois é “o menino que adormeceu nos teus olhos”, que
recorda a felicidade da recolha das folhas de amoreira, ainda hoje, já enormes
e inacessíveis, mas ainda visíveis, na Av. Grão Vasco e que passou tardes imensas
na “esplanada da Nilo”, a pastelaria onde, ainda hoje, também a mãe se senta
mesmo que nem sempre na companhia dele.
A relação de
igualdade entre o par amoroso, a preocupação com o outro, a ingenuidade do
quotidiano está também patente num poema que não resisto a ler (poema 33, p.
33):
“e o teu pezinho, amor lindo, ainda dói?/demora tempo a
passar/meu amor lindo, demora tempo/ mas vai passar com o verão/ coloca o pé
sempre ao sol e dentro de água com sal/. Ana da sempre, nunca pares/anda, anda
devagar se necessário, mas anda/ e toma os remédios/do médico/. amo-te tanto,
escrevo-te hoje como um poema,/ ao ano está quase a mudar e estou só//escrevo
para sobreviver/és a mais linda, a mulher/ transatlântica/que me deu tanto
amor/beijo e beijo/pensa em mim/ eu rezarei para o novo ano”.
Se se ousasse
enclausurar o livro numa palavra poderia escolher-se, como o próprio poeta
afirma, a “solidão” de quem vive “vencido pela paixão”. Regressando de novo a
Pablo Neruda, também o poeta assume que “estou
triste: mas sempre estou triste. Venho dos teus
braços. Não sei para onde vou”.
Apesar de tudo, existe uma esperança,
uma hipótese de remissão que o poeta partilha com quem o lê: a crença no poder
da poesia, quando se afirma (poema 53, p. 50):
“não há divisão entre a vida e a poesia/ponte
ou muro na transparência/meu corpo é aberto no alcatrão/ quando o poema
explode, onde/os outros pavoneiam a sua obra/eu apenas desejo transformar-me/
num comboio de laranjas de sol/ e revelar a prática dos carris de ferro/e o
gelo mais duro da solidão picado/pela casa de todos os leitores/ pelas portas
que os seus olhos abrem/e pela gratidão doce da sua leitura”.
Sonim/Lisboa,
agosto 2017
Ana
Maria Pessoa
Sem comentários:
Enviar um comentário