O ANÚNCIO
Os donos do
café “Flor da Aldeia” e alguns fregueses da casa, sabendo das necessidades do
tio Zé , vulgarmente tratado por Piça Daço, trataram de o incitar a responder
ao anúncio, e eles próprios formulavam frases para a resposta, com esta ou
aquela variação da conversa habitual em situações análogas: sou homem honesto,
trabalhador, tenho terras e gado, e estou na posse integral das minha
faculdades físicas mas sinto-me muito só
desde que a infelicidade da viuvez me bateu à porta…
E assim, num
dia que não ficou marcado em calendário, chegou na carreira uma bela mulher com
um mala de viagem na mão, que se dirigiu ao referido café, ali a dois passos da
paragem. Tempo frio, o Inverno era ali, naquele rigoroso interior.
Com passos
pouco decididos entrou e logo foi identificada pelos olhos espertalhões da
Etelvina que acotevelou o marido e lhe disse entredentes: Lá vem a tal de
Joana.
-É a menina
Joana? Muito prazer, eu sou o dono deste estabelecimento e esta é a minha
mulher, Etelvina. – Muito gosto. -Ponha-se à vontade. Este é o senhor Zé, vulgo
Piça Daço. Um aperto de mão, algumas
palmas por parte da atenta assistência e assim se cumpria a primeira parte
deste episódio que quase se escondeu como o sol à noite.
Joana faz um gesto para pegar na mala, mas Zé antecipou-se e lá foram os dois a
caminho de casa.
-A minha
casa é aquela ali, disse o Zé para não estar calado. Aquele gato preto no telhado,
é meu. É um bom caçador de ratos. Â medida que a aldeia se despovoa, ratos e
ratazanas são cada vez mais. Está frio. Ontem fui tirar água do poço, para me lavar e estava
gelada. Já era altura de amaciar o tempo.
E nada mais foi dito.
E neste monólogo
foram engolidos pelas paredes da casa, e nada mais se sabe para além do que
ficou escrito numa mensagem deixada por Joana sobre a mesa da cozinha, no dia
em que partiu na mesma carreira que a trouxera, um mês exatamente decorrido
desde a chegada.
O tio Zé
Piça Daço, já com a vista a faltar-lhe, e fracos conhecimentos escolares,
agarrou no papel e levou-o aos seus amigos do café para que lho lessem, mas
baixinho, e assim se soube logo ali, e mais tarde por toda a aldeia, o conteúdo
da mensagem.
-Vamos para
ali, ti Zé. Posso começar?
-Lê, homem,
lê.
Serve esta carta como
despedida e justificação.
A minha sincera vontade era ter
regressado no dia em que cá cheguei. Não o fiz, primeiro por acanhamento e
segundo porque não havia carreira. Como não o fiz nesse dia, resolvi dar uma oportunidade
à situação, ou seja a si e a mim e não digo nós porque nós nunca existiu.
Quando olhei para si, vi a figura do
meu pai que desgraçou a minha mãe com maus tratos. Não a mim, que saí de casa
quase criança para uma vida de esquinas na noite a fazer favores sexuais a
homens de toda a espécie. Aconselhada por gente que conheci e me tinha estima,
estudei qualquer coisa e trabalhei num lar de idosos. Mas a solidão moía-me e
os anos passavam e nada de arranjar companhia, daí o anúncio. Imaginava-me numa
aldeia, com um homem a quem estimaria e por quem seria estimada, com umas
galinhas e uma horta para tratar, via-me a estender a roupa da cama na frescura
do amanhecer, coisas simples.
Ao entrar na sua casa senti revolta.
Tudo desarrumado. Ratoeiras por toda a casa com ratos mortos, loiça apinhada
por lavar, ceroulas misturadas com toalhas de mesa, cheiro a podre no
frigorífico e cama sem lençõis. Nada sem solução até aqui. Nada que uma boa
limpeza não resolvesse.
Mas porque carga de água, havendo água quente e um esquentador vulcano
praticamente novo na casa de banho, tomava você banho e se lavava na água do
poço queixando-se da sua frieza? Porque razão tendo gavetas cheias de meias
novas só calçava meias rotas? Porque razão tendo loiça nova nos armários só
quer comer em loiça rachada, porque razão mantem uma pilha de medicamentos da
sua falecida mulher que recusa deitar fora, Por que razão...
Enfim, talvez a solução para si seja
de outra natureza. Eu por mim fiz o que pude e que a mim própria prometi.
Organizei a sua vida por fora. Por dentro, não tenho para isso nem habilidade
nem habilitação. Lavei, desinfetei e
arejei a casa. Livrei-me de toda a roupa rota, estragada, e debotada e cosi a
que valia a pena aproveitar. Organizei as gavetas da cómoda por ceroulas,
cuecas, meias de verão e de inverno, camisas, camisolas e pijamas. As calças e
o fato estão em cruzetas no guarda fatos. Livrei-me da pratalhada partida e dos
tachos, cafeteiras e púcaros rotos ou sem asas. A casa de banho está
apetrechada de lexívia, papel higiénico, e espero que não perca o hábito de lavar os dentes. Deixei duas
pastas novas na prateleira e uma escova suplente. Continue a tomar o duche de
água quente e lave bem os tornozelos, as orelhas, as partes e entre os dedos
dos pés.
No frigorífico há sopa feita e um
guisado que fiz com o coelho que comprei ontem à Etelvina do café, comprei mas
não paguei, não se esqueça de o pagar. Deixei dois queijos, um pão e também uns restos de comida para o gato.
Se mantiver alguma disciplina no que
comigo aprendeu, talvez arranje uma companheira que o queira.
Não fui feliz aqui, mas encaro o mês que aqui passei como uma missão. Você
não é má pessoa mas também não foi boa pessoa e lamento não me ter deitado
consigo. Se disso se tiver gabado, quando lerem esta carta, que estou certa
será mais divulgada que o meu anúncio, logo saberão que mentiu. Se tiver falado
verdade, será mais respeitado.
A estas horas, já estarei longe daqui. Outro
homem que respondeu ao anúncio há mais de quinze dias, veio buscar-me hoje,
porque eu disse-lhe que tinha de cá ficar um mês. Adeus e felicidades. Já me
esquecia, odiei a sua alcunha.
A que nunca foi sua
Joana
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