quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Dores Nascimento e Leonel Coelho - Conto


O ANÚNCIO

Os donos do café “Flor da Aldeia” e alguns fregueses da casa, sabendo das necessidades do tio Zé , vulgarmente tratado por Piça Daço, trataram de o incitar a responder ao anúncio, e eles próprios formulavam frases para a resposta, com esta ou aquela variação da conversa habitual em situações análogas: sou homem honesto, trabalhador, tenho terras e gado, e estou na posse integral das minha faculdades físicas mas  sinto-me muito só desde que a infelicidade da viuvez me bateu à porta…

E assim, num dia que não ficou marcado em calendário, chegou na carreira uma bela mulher com um mala de viagem na mão, que se dirigiu ao referido café, ali a dois passos da paragem. Tempo frio, o Inverno era ali, naquele rigoroso interior.

Com passos pouco decididos entrou e logo foi identificada pelos olhos espertalhões da Etelvina que acotevelou o marido e lhe disse entredentes: Lá vem a tal de Joana.

-É a menina Joana? Muito prazer, eu sou o dono deste estabelecimento e esta é a minha mulher, Etelvina. – Muito gosto. -Ponha-se à vontade. Este é o senhor Zé, vulgo  Piça Daço. Um aperto de mão, algumas palmas por parte da atenta assistência e assim se cumpria a primeira parte deste episódio que quase se escondeu como o sol à noite. Joana faz um gesto para pegar na mala, mas Zé antecipou-se e lá foram os dois a caminho de casa.

-A minha casa é aquela ali, disse o Zé para não estar calado. Aquele gato preto no telhado, é meu. É um bom caçador de ratos. Â medida que a aldeia se despovoa, ratos e ratazanas são cada vez mais. Está frio. Ontem fui  tirar água do poço, para me lavar e estava gelada. Já era altura de amaciar o tempo.  E nada mais foi dito.

E neste monólogo foram engolidos pelas paredes da casa, e nada mais se sabe para além do que ficou escrito numa mensagem deixada por Joana sobre a mesa da cozinha, no dia em que partiu na mesma carreira que a trouxera, um mês exatamente decorrido desde a chegada.

O tio Zé Piça Daço, já com a vista a faltar-lhe, e fracos conhecimentos escolares, agarrou no papel e levou-o aos seus amigos do café para que lho lessem, mas baixinho, e assim se soube logo ali, e mais tarde por toda a aldeia, o conteúdo da mensagem.

-Vamos para ali, ti Zé. Posso começar?

-Lê, homem, lê.

 Serve esta carta como despedida e justificação.

A minha sincera vontade era ter regressado no dia em que cá cheguei. Não o fiz, primeiro por acanhamento e segundo porque não havia carreira. Como não o fiz nesse dia, resolvi dar uma oportunidade à situação, ou seja a si e a mim e não digo nós porque nós nunca existiu.

Quando olhei para si, vi a figura do meu pai que desgraçou a minha mãe com maus tratos. Não a mim, que saí de casa quase criança para uma vida de esquinas na noite a fazer favores sexuais a homens de toda a espécie. Aconselhada por gente que conheci e me tinha estima, estudei qualquer coisa e trabalhei num lar de idosos. Mas a solidão moía-me e os anos passavam e nada de arranjar companhia, daí o anúncio. Imaginava-me numa aldeia, com um homem a quem estimaria e por quem seria estimada, com umas galinhas e uma horta para tratar, via-me a estender a roupa da cama na frescura do amanhecer, coisas simples.

Ao entrar na sua casa senti revolta. Tudo desarrumado. Ratoeiras por toda a casa com ratos mortos, loiça apinhada por lavar, ceroulas misturadas com toalhas de mesa, cheiro a podre no frigorífico e cama sem lençõis. Nada sem solução até aqui. Nada que uma boa limpeza não resolvesse.

Mas porque carga de água,  havendo água quente e um esquentador vulcano praticamente novo na casa de banho, tomava você banho e se lavava na água do poço queixando-se da sua frieza? Porque razão tendo gavetas cheias de meias novas só calçava meias rotas? Porque razão tendo loiça nova nos armários só quer comer em loiça rachada, porque razão mantem uma pilha de medicamentos da sua falecida mulher que recusa deitar fora, Por que razão...

Enfim, talvez a solução para si seja de outra natureza. Eu por mim fiz o que pude e que a mim própria prometi. Organizei a sua vida por fora. Por dentro, não tenho para isso nem habilidade nem habilitação.  Lavei, desinfetei e arejei a casa. Livrei-me de toda a roupa rota, estragada, e debotada e cosi a que valia a pena aproveitar. Organizei as gavetas da cómoda por ceroulas, cuecas, meias de verão e de inverno, camisas, camisolas e pijamas. As calças e o fato estão em cruzetas no guarda fatos. Livrei-me da pratalhada partida e dos tachos, cafeteiras e púcaros rotos ou sem asas. A casa de banho está apetrechada de lexívia, papel higiénico, e espero que não perca  o hábito de lavar os dentes. Deixei duas pastas novas na prateleira e uma escova suplente. Continue a tomar o duche de água quente e lave bem os tornozelos, as orelhas, as partes e entre os dedos dos pés.

No frigorífico há sopa feita e um guisado que fiz com o coelho que comprei ontem à Etelvina do café, comprei mas não paguei, não se esqueça de o pagar. Deixei dois queijos, um pão e  também uns restos de comida para o gato.

Se mantiver alguma disciplina no que comigo aprendeu, talvez arranje uma companheira que o queira.

Não fui feliz aqui, mas encaro  o mês que aqui passei como uma missão. Você não é má pessoa mas também não foi boa pessoa e lamento não me ter deitado consigo. Se disso se tiver gabado, quando lerem esta carta, que estou certa será mais divulgada que o meu anúncio, logo saberão que mentiu. Se tiver falado verdade, será mais respeitado.

 A estas horas, já estarei longe daqui. Outro homem que respondeu ao anúncio há mais de quinze dias, veio buscar-me hoje, porque eu disse-lhe que tinha de cá ficar um mês. Adeus e felicidades. Já me esquecia, odiei a sua alcunha.

A que nunca foi sua

Joana



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