José Pais de Carvalho
Lembrava-se! Como poderia recordar a manhã pronunciada no
desconhecido senão pelo esquecimento.
Lembrava-se de percorrer em silêncio as ruas de uma cidade a
sul, imerso na recordação do mercado, do pavimento irregular da calçada, da
azáfama das pessoas e das mercadorias. Lembrava-se! viajara ao encontro do ancião
e encontrara-o no pátio da casa quando uma mulher de velha idade e de feições
indígenas lhe abrira a porta.
É verdade que sempre se afligia quando estava diante daquela figura enigmática, e supunha que não seria diferente daquela vez. Na sombra da latada esbatida sob o sol, reverberavam imagens perdidas da antiguidade, que o impressionaram ao ver a fisionomia da anciã alterada. Com
respiração parca mas levemente acelerada, duvidava do espectro e aprazava-se por
rever o anfitrião que o convidava a sentar, com um rasgado e efusivo sorriso de
boas-vindas, não atribuindo outra importância ao puzzle criado pelas sombras e afectado
pela imaginação. Conversaram acerca de trivialidades, da longa viagem. Depois o
diálogo contemplou outros temas, cuja razão o viajante não podia divisar. Falaram
sobre o que o homem de idade indeterminada designou por domínio da consciência.
Houve, adrede, um silêncio: O grande
feito é atingir a liberdade total antes de ser uma consciência desencarnada dirigindo-se
para o incognoscível. Ficava a impressão de que o velho homem escolhera as
palavras antes de retomar a conversa, para produzir uma tensão, e pousando-lhe a mão sobre o ombro,
convidou-o a dar um passeio.
No caminho, o ancião observava, como se fosse a última, os
rostos dos transeuntes e detinha-se defronte das lojas, dos candeeiros
públicos, das casas. Numa alameda, atentava a cada pormenor: o reboco dos muros
e das paredes, os líquenes, os tons verde-escuros, os de cor de bolor e as
pedras descarnadas pelo tempo. A dado instante, dirigiu-se-lhe: … nesta cidade tudo é possível acontecer! e
sorriu. Como jovem aprendiz, reconhecia aquele olhar, aquele sorriso. Inúmeras vezes
deparara-se com circunstâncias análogas. Apoderava-se dele uma estranha
sensação: incorria no íntimo a certeza de acontecer algo imprevisível, e
sentia-se desconfortável. Numa rua pararam perpendiculares a um antigo casarão.
O de mais idade não deixava de olhar tudo ao redor: contemplava a araucária, os
plátanos, os cedros, e deteve-se na velha nespereira com as poucas folhas que
restavam, tombadas sobre si próprias como lágrimas. O jovem para quem bastava um olhar, um sorriso ou uma
palavra do decano para o estado emocional mudar radicalmente, permitiu que uma
lágrima lhe escorregasse pelo rosto, e sentindo de antemão uma melancolia que o
comoveu, pressentiu que a imagem acerca da velha nespereira seria apenas sua.
Primeiro supôs sentir-se triste, mas de imediato compreendeu uma sensação mais
profunda e distante, tão cavada quanto a solidão.
Chegados a uma praça, já sentados num banco público, o mais
velho dava continuidade à frase deixada atrás: … por baixo da cidade está uma outra de onde desapareceram os que nos
sonhos acordaram numa posição para além dos limites do conhecido. Escutar
tal estória sobressaltava-o, e sentindo
um empurrão, sem que pudesse formular alguma pergunta, entrava na igreja, e
lembrava-se! já tinha estado ali em outra ocasião.
Ajoelharam-se ambos lado a lado num banco de madeira corrido,
fronteiro ao claustro. O ancião balbuciou-lhe quaisquer palavras
ininteligíveis, despertando-lhe uma recordação já perdida. Uma mulher de feições
indígenas fitou-o, fazendo-lhe sinal, e ele, não pelo fulgor da juventude, deslumbrou-se:
um misto de admiração e fascínio aprisionava-o, tão magnânimos eram os olhos
negros. No momento ficou perplexo: a mulher que lhe abrira a porta estava ali,
mas não parecia a mesma. O vestido preto deixava antever a sua silhueta e a tez
era límpida e cuidada. Aparentava ser nova. E ele atemorizou-se. Quis
compartilhar a surpresa, descrevendo um movimento com o corpo, mas o ancião
desaparecera, concomitante à perda da acuidade visual.
Algo acontecera. Quando recuperou a visão estava numa igreja,
numa outra igreja, quiçá num
outro tempo. A decoração afigurava-se do século dezoito: o altar-mor, o deambulatório em torno dele, as pinturas do teto da nave, a talha dourada, obturando o óculo da fachada com um relevo, sugeriam-no. Decorria uma missa, e o silêncio era total.
De
temperamento susceptível, por experiências anteriores perante o desconhecido, ele
sabia que facilmente oscilaria entre a confiança e o temor, e que poderia
perder a razão. A luz da igreja era ambarina e ele demorou a ambientar-se. Espantou-se
com as sombras, pois eram negras e profundas como nunca tinha visto, e reparou
o tom de pele das criaturas ajoelhadas, singularmente pequenas. Apreensivo,
tornara-se ele próprio testemunha da imaterialidade do tempo. Os entes ao redor
não eram da época que atribuiu à igreja. Como poderia aquela gente rezar, mover
os lábios e ele não ouvir o mínimo barulho? Estranho, olhou para a direita e
confrontou-se com a dita mulher. Ã!
gaguejou trépido. O som exauria-se em si mesmo, parecia-lhe inaudível,
incumprido. O corpo teve um espasmo e os
indivíduos em torno olharam-no, censurando-o. A mulher murmurou-lhe que ouvisse
com todo o ser; e ele assim fez sem
saber como fez. A missa estava a acabar e o movimento da multidão, sentiu-o
ensurdecedor ou quem sabe se intensificado. Porventura idealizava, concluiu. A
percepção aguçada deu-lhe outra indicação. Percebeu que estava a sonhar. Havia
uma agudeza mais consciente do que o torpor mental sentido. Independentemente
de onde estivesse ou do mundo em que estivesse, o que vivenciava era real e
abarcava-o na totalidade. A mulher olhava-o doce e intrigante, aparentava agora
uns trinta anos: o mundo que apreendemos e a sua
substancialidade dependem da tua total atenção para que exista. A posição em que se começa a sonhar
espelha-se na posição em que permanece o corpo de sonho. Deste modo deve-se
sonhar que se acorda deitado exatamente na mesma posição em que se adormece,
para sonhar adormecer de novo. A
voz dela era cristalina, sedutora num
sentido restrito, magnetizante. Tudo o
que se vê, o ambiente ao redor é a projeção da minha intenção, um sonho! Estás
a viver no meu sonho. Não basta somente sonhar o objecto, é necessário
visualizá-lo e trazê-lo para o sonho, materializá-lo, para se tornar real. Foi
a partir deste recurso que te trouxe para o meu sonho. Foi desta maneira que
numa época longínqua à do tempo deste sonho, os antigos habitantes
desapareceram da cidade, deixando somente os vestígios da sua cultura. Foi
muito antes de eu existir e de existir o local onde estamos. Quando nasci, eles
já eram antigos e repara como sou antiga!
exclamou com malicia.
De seguida pegou-lhe na mão e levou-o até à porta da igreja,
o que o acalmou. Ao saírem, deparam-se com uma praça velha. No tempo eminente
escutou-a. A praça para que estás a olhar
não existe na realidade, só a poderás tornar real mediante a tua intenção.
A vista dele turvou-se; focando-a, encontrava-se agora sozinho na cidade em
cujo cenário se desenrolava o sonho. Na praça viu o decano sentado no banco
onde estiveram antes, segurando o chapéu, enquanto um vento soprava ao redor.
Um pensamento determinava-lhe que tinha de deslocar os olhos para alterar a
percepção. No mesmo banco, um outro homem dormitava. Embora o choque do que não
podia avaliar o propulsionasse, fracionava-o luminescente, e vislumbrou a sua
paridade: sentado no banco ao lado do homem que segurava o chapéu, viu-se de pé
no pórtico da igreja, e assombrou-se, caindo em si.
Sentiu que tinha perdido algo significativo. Talvez alguém de
quem gostasse muito, mas não conseguia recordar-se. Uma ideia como essa
afigurou-se-lhe absurda. A memória atraiçoava-o de novo e sentiu um misto de saudade
e medo, indecifrável. O ancião sossegou-o,
pedindo-lhe para contar o que se lembrava do sonho. Lembrava-se de terem
entrado na igreja e pensou: poderiam ele
e o ancião, acordar no mesmo instante, na mesma posição de sonho? O homem
de maior idade não foi directo na resposta, disse-lhe que o acompanhara na
ocasião em que se sentiu puxado por ele até ao interior da mesma. Não é possível saber como ocorre, talvez
pelo desejo. Apenas acontece assim. Foi o modo como os antigos partiram em grupos. Talvez fosse decisão deles morrer em outro mundo, ou não encontraram o
caminho de regresso. O fenómeno sucede conquanto paremos o diálogo interno e
mudemos o foco para o que nos induz a percepções incomuns. Restava o silêncio,
e lembrava-se! quem era a mulher do sonho? Por sua vez, o ancião apaziguava-lhe
o temor: era o tempo de se recordar da
mulher, pois iria encontrá-la uma última vez. Era antiga como ela lhe dissera. Desafiara
a morte com êxito, tornando-se prisioneira da veleidade que destruiu os antigos. Dera-lhe um presente, o qual se recordaria em
breve: Podemos viajar pelo desconhecido,
mas temos de nos ancorar dentro dos limites do conhecido para regressarmos. Se te
deslocares para outro mundo, esta cidade desaparecerá, mas irás permanecer
aqui. É este o mistério que ainda não compreendeste. Romper
as barreiras da percepção é entrevir a eternidade. Mais cedo ou mais tarde
aperceber-te-ás que cada um de nós é todas as coisas, que é isto e aquilo. Um
mundo só é perceptível por força do alinhamento da totalidade dos nossos feixes
de luz com os correspondentes exteriores e não apenas com partes deles. Disto
depende a nossa estabilidade. Só assim um mundo se torna real, permitindo-nos
então escolher onde morrermos e também como fazê-lo em consciência total. O teu trabalho será ainda tornar compreensível tudo o que está além do
território onde a consciência quotidiana assenta a sua identificação, em que
nenhuma dúvida possa interferir nos teus actos. Com o passar dos dias,
compreenderás melhor. Darás uma coerência a tudo o que viveste e não consegues por
enquanto recordar.
De repente tudo ficava claro, mas nem uma palavra conseguia
articular, não tinha energia suficiente para o colocar por palavras. Compreendia
que tais acontecimentos não poderiam ser recordados pela memória. Então o
ancião lia-lhe o pensamento: Agora
começas-te a compreender. O mundo dos homens é tão-somente uma visão a partir
da posição do alinhamento dos feixes de luz consoante a energia que reunam; não
conseguires expressá-lo, deve-se ao facto de não teres ainda acumulado a energia
que te permita ordenar o conhecimento. E mudava de assunto: Aproxima-se o momento de eu partir, esta será
a última vez que nos encontramos nesta cidade juntos. Talvez retorne um dia, mas nunca mais voltarei aqui tal
como me vês hoje.
Sentiu-se uma brisa, do outro lado da praça o velho homem
acenava-lhe, despedindo-se e surpreendeu-se: lembrava-se! o conhecimento era
silencioso, uma força que não podia ser descrita, no entanto estava ali para
que qualquer um a pudesse utilizar. Ainda olhou de novo para o outro lado da
praça, e viu o ancião virar-se para trás, sorrindo-lhe.
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