quarta-feira, 6 de março de 2019

Uma música silenciosa


Fim do Entrudo. O repouso das almas (mais que um réquiem) – hino às estrelas.


1º andamento: pé ante pé
Vamos dar voz ao silêncio
pensar numa música silenciosa
pouco ruidosa, um calmante natural
sem esforço de pensar, tocar devagar
afagando as cordas, soprando nas teclas
sem elevar a voz, soletrar

um passo leve, um rodopio suave
de uma dança parada, quase nada
quase mel que escorre de dois
corpos juntos, ou nem isso
um meigo sorriso, um instigante segredo
um recado de uma brisa que nem vento

por dentro, uma suave respiração
que mal se ouve o coração do mundo
sossego, enlevo, alargo a consciência
o laboratório da amizade, é que nem marcha
nem fúnebre, tão pouco rufo do tambor
um canto de escovas na bateria, se tanto

Fecho os olhos, relacho a pena, arrumo o fado
passo, não dou o passo, e fico com o universo
de braço dado.


2º andamento: passo curto
Tudo é, tudo exulta de si, vibram os corpos
dançam os átomos, o som que não se detém
as paredes que não vedam, o entre-penetra
da água, o sabor do sumo da fruta, da flor
da imagem que dá no olho, da transformação
do mundo mudo, mecânica do universo

do trabalho que dá saciar o corpo, da posse
da terra, do matar o vício, das linhas no chão
de construir os muros que nos protegem
do medo que dá, da raiva de se ter, a dor
do que se trás às costas e se passa aos outros,
o que não cessa, nem cura

a curva da perna, a venda das pernas, a tesão
o parto, a violência e a doença do corpo
da alma renascida, do que fica torto e tropeça
do que devaneia e se enleia na espuma dos dias
eis o que se vê, defuntos adiados, malcriados,
invejosos, débeis, frágeis, ilusórias fantasias

Ou o calor que nos esquenta, essa luz branca
o que nos faz brilhar, a que nem chega o ouro,
o Sol.


3º andamento: alegre, quase parado
O terno olhar das pétalas de uma flor
e o meu amor, uma cristiana solicitude
um lamento, um queixume, um ai, o ser
redondo e pontiagudo de um seio, de um índio
de uma clareira na floresta, de uma festa
mirabolante fora do bulício da cidade

a luz de uma fogueira e o braseiro que dá
do fogo, do crepitar da lenha, do calor
que nos anima a noite fria, a poesia
que se empresta à música que continua
suave, afinada, muito pouco ritmada
que nem a tango chega, um entre-tango só

mas as pétalas da flor lá estão e insistem
de vermelhas que são, coladinhos corações
de boas visões, de um doce passeio por letras
doces e calmas como as águas do riacho
que escorrem em seiva e lhes dão cor
porque amor que é amor, é mesmo amar

a forma da água, o símbolo da vida, vi
um outro dia duas lindas criaturas, deusas
crianças nuas.


(in, Luís Carlos dos Santos (2018) Dar Voz ao Silêncio, Música de Palavras. V. N. de Gaia: Euedito, pp. 15-17)



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