quarta-feira, 13 de março de 2019

Uma Missa de Espanto


estudo, 8º dia da quaresma, Luís Carlos dos Santos (continuação)





1º andamento – um canto gregoriano, uma missa de espanto

Num terceiro domingo, dobram os sinos
replicam os salmos ao longe na igreja
interiorizam-se os cânticos e as teclas
do órgão que vai devagar de olhos semi-fechados
quase que nem se canta, murmuram as almas
repetem as gentes, reclinam-se os peitos
e as mãos postadas no caminho da cruz
os joelhos nas lajes frias do chão, outra vez
fazem-se mais uma vez as infinitas contas
do rosário, da oração, contemplativo silêncio

Não se foge do sofrimento, antes se lamenta
do Deus, da condenação e do arrasto do corpo
ir com ele, de subir com ele, de o ver luzir
monte da esperança, vozes dos anjos que cantam
tocam as trompetas no envolvimento do Espírito
messiânicas expectativas de servos humildes
do que É de dar a vida em sacrífício, salvívico
caminho da perseguição e da morte, todavia
da gloriosa consciência que a ressurreição anuncia
da gloriosa poesia que em voz suave nos acalma.


2º andamento - o vira da natureza

As nuvens vêm carregadas de um temporal
de onde sopram os ventos e arrefecem as noites
os ramos das árvores são feitos de assobios
e as águas despenham-se pelos penhascos
pintando de terra molhada a face da terra

Logo mais rasga-se o sol e rompem-se as flores
cheias de cores  os campos de tremoço e papoila
o verde acastanhado da planície que se estende
por meio de um vale entre rios e risos da festa
do estalar das rolhas das garrafas do vinho

As andorinhas chegam cansadas, ofegantes
correm as danças nos caminhos dos cruzados
pagãos de braços dados na folia dos corpos nús
rituais sagraddos na fecundação da terra
um bem que é mal,  e um mal que é bem,

meu bem.


 3º andamento – o corridinho das águas

Apressados e unidos apressam-se os pingos
grossas vêm as chuvas, prenúncio de abril
chuvas mil aos molhos escorre a salmoura
das lágrimas das fontes e dos montes
que se alagam e se desfecham aflitos
desenfreados correm os rios de caminhos
dos oceanos plenos de glaciares degelos

Os atropelos dos passos das concertinas
e das serpentinas reais dos arraiais furores
dos tambores, pandeireitas, castanholas
e das espanholas dos festivos sorrisos
o ribombar dos foguetes e o som de ferrinhos
dos tamancos das moças que cantam no chão
e eles de braço dado num rodopio sem fim

O oceano, o mar azul que se estende nos pés
do calor no pico do meio dia, todo o dia
ondas de alfarrobas, amendoeiras em flor
e os meus amores que nem as cores todas
das oliveiras milenares, toda a areia da praia
onde se amolecem as mentes descansam
os corpos, das passas e dos medronhos.


(in, Luís Carlos dos Santos (2018) Dar Voz ao Silêncio. Música de Palavras. V. N. de Gaia: Euedito, pp.18-21)

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