Deixa que sinta
O calor, sim,
Uma Revista que se pretende livre, tendo até a liberdade de o não ser. Livre na divisa, imprevisível na senha. Este "Estudo Geral", também virado à participação local, lembra a fundação do "Estudo Geral" em Portugal, lá longe no ido século XIII, por D. Dinis, "o plantador das naus a haver", como lhe chama Fernando Pessoa em "Mensagem". Coordenação de Edição: Luís Santos.
Este relato por ser real não
podia ficar na gaveta. Um amigo meu, funcionário no hospital onde trabalhei,
pensou arranjar maneira de poder ganhar mais uns tostões (ainda não havia euros)
para juntar ao seu modesto vencimento.
Assim comprou uns bezerros
pequenos e começou a alimentá-los numa fazenda, com o intuito de os vender mais
tarde.
E lá ia ele, todas as manhãs,
antes de ir para o emprego cuidar deles. O tempo foi decorrendo, e chegou a uma
altura que os animais já conheciam a chegado do amigo F...
pelo ruído do motor da sua
viatura, e corriam ao seu encontro. Entre eles foi então crescendo uma grande
amizade.
Mas chegou o dia, o menos
desejado, em que nessa manhã o amigo F... deslocou-se para a fazenda carregando
em cima de si um pensamento demasiado pesado.
E pela primeira vez algo de
inédito aconteceu,
os animais não correram ao seu
encontro.
Aproximou-se dos animais e viu
que havia lágrimas correndo pelos seus olhos.
Passado uma hora chegou à fazenda
uma camioneta que levou os animais para o matadouro local. F... deu por
terminada ali a sua experiência comercial, prometendo a si próprio que tal não
se voltaria a repetir, é que a sensibilidade também faz parte dos seus
alforges.
Amigo F... desculpa não te ter
pedido autorização para esta publicação, mas os mais sensíveis não nos iam
perdoar, se nós não a partilhássemos.
António do Carmo Alfacinha
24.12.2022
O EcoCampus do Instituto Politécnico de Setúbal e a Rede de Escolas Associadas da UNESCO
Muitos dos fenómenos meteorológicos que se têm feito
sentir um pouco por todo o mundo, como é o caso da intensa chuva que tem caído
nos últimos dias no nosso país, têm sido frequentemente associados às
alterações climáticas que, por sua vez, surgem interligadas às múltiplas causas
da excessiva poluição do planeta como é o caso do uso excessivo dos
combustíveis fósseis (petróleo e carvão) que têm sido largamente usados no
funcionamento das indústrias, dos transportes, dos consumos energéticos das
nossas casas.
Esta excessiva poluição que se faz sentir de forma
muito significativa nos ares, nas águas dos rios e dos mares, entre outros
efeitos muito nefastos, tem provocado o aumento da subida das temperaturas
médias do planeta que neste momento se cifra nos 1.2ºC, o que em si é já um
valor muito elevado, mas que continuará a subir se, a nível mundial, não forem
tomado um conjunto de medidas que tendam a alterar alguns dos comportamentos
humanos que estão por detrás destes fenómenos, a fim de que se possam evitar
mudanças climáticas irreversíveis, cujas consequências podem aumentar ainda
mais os níveis de pobreza, fome, doença e, no limite, pôr mesmo em risco as
possibilidades de sobrevivência, pelo menos, de grande parte da espécie humana
no planeta.
Neste sentido, aos frequentes alertas que têm sido
proferidos pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, a
Organização das Nações Unidas, depois de outras, promoveu no mês passado mais
uma Conferência Mundial que decorreu no Cairo, capital do Egipto, onde se
tentaram encontrar compromissos concretos por parte de todas as nações do mundo
que se traduzam numa alteração desses nefastos comportamentos que, por exemplo,
levem ao degelo das calotes polares e o consequente aumento das catástrofes
naturais que lhes surgem associadas.
Assim, desde 2015 que os 193 países que constituem
as Nações Unidas (ONU), chegaram aquela que se designa atualmente como a
“Agenda 2030”, constituída pelos 17 objetivos do desenvolvimento sustentável
(ODS), e pela sua aplicação até final da década, que consigam inverter, ou pelo
menos, estancar, para o bem comum, as múltiplas causas que têm conduzido à
excessiva poluição do planeta e às alterações climáticas.
Entre os 17 ODS, a necessidade de promover uma
“Educação de Qualidade” e, neste sentido, também de estabelecer um conjunto de
parcerias com instituições afins, tem levado o nosso Instituto (IPS) a
desenvolver um conjunto de ações como resposta aos compromissos assumidos por
Portugal no âmbito das Nações Unidas. Por outro lado, a Comissão Nacional da
UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Ciência, Educação e Cultura que
tem como objetivo primordial contribuir para a paz e segurança no mundo) tem
vindo a participar no incremento de uma série de iniciativas como é o exemplo
daquela que se designa como a “rede de escolas associadas da UNESCO”. E é
justamente na tentativa de iniciar uma parceria que se quer duradoura entre o
Instituto Politécnico de Setúbal e a Comissão Nacional da UNESCO que hoje temos
connosco o Professor Carlos Mata, Vice-Presidente do IPS, e a responsável pelo
setor da educação da CNU, Dra. Fátima Claudino, que, respetivamente, no âmbito
dos princípios do desenvolvimento sustentável, nos irão dizer, porque é que o
IPS é um EcoCampus e o que se pretende com essa “rede de escolas associadas da
unesco”.
Luís Santos
19.12.2022
Nem tudo vale o mesmo. Há o que
promove o pleno desenvolvimento humano, pessoal e comunitário, e o que apenas
satisfaz os interesses e desejos de ilusão, preservação e engrandecimento dos
egos individuais e colectivos. Há exemplos de vida virtuosa, posta ao serviço
do bem dos humanos e de todos os seres, e exemplos de vida pequenina, serva do
aumento do próprio umbigo, individual ou colectivo. Uma sociedade e civilização
que entroniza e idolatra os heróis da competição e do sucesso exterior- seja
empresarial, político, artístico, literário, académico ou desportivo - está em
profunda decadência e arrasta consigo os mais jovens, a quem não oferece
modelos de pleno florescimento humano, exemplos de sabedoria, amor e compaixão.
É uma sociedade e uma civilização que se corrompe e dissolve, tornando-se na
melhor das hipóteses o húmus do germinar de novas sementes de consciência e de
Vida.
Paulo Borges
#irmânia
https://www.facebook.com/hashtag/irm%C3%A2nia
“Faróis”
«Não consigo pensar em nenhum outro edifício construído pelo homem tão altruísta quanto um farol. Eles foram construídos apenas para servir.»
(Bernard Shaw)
Sempre me atraíram os faróis. Procuro-os para os
observar, fotografar e visitar. Deslumbro-me naquele interior espaçoso… em
altura; fico extasiado perante aquelas lentes descomunais. Mas sobretudo,
admiro (o que nunca vejo) os faroleiros e a sua solidão profissional. Em dias
de raios e coriscos e névoa densa, a luz e o som dos faróis (preventivos de
catástrofes) orientam as embarcações e levam-nas a bom porto. Na nossa costa
temos 50. Locais de encantamento e magia.
Em mim, esse interesse acentuou-se ainda mais com a
leitura do romance Mentira do catalão
Enrique de Hériz (2005). Uma das personagens, Serena, desenvolve uma pesquisa
sistemática, nos faróis da Costa Brava de Espanha, para encontrar um eventual
registo do temporal de 22/01/1922 que provocou o naufrágio do barco de pesca
que havia zarpado de Malespina (Barcelona), com o seu avô Simón em fuga de um
pai tirano (três dias depois seria resgatado pelo cargueiro Astor). Serena aos
37 anos «ainda anda por aí à procura de tempestades, a sonhar com um ciclone
que a transporte no tempo, sempre para trás, e lhe permita salvar o avô e
resgatar também o pai e salvar-se a si própria de não sei o quê» (p. 93, lê-se
no diário da sua mãe antropóloga que a família julgava morta na Guatemala).
«Desde finais do século XIX até 1968,
todos os faróis de Espanha conservavam um registo chamado “Livro de Registos de
Estados das Tempestades”. Hoje, os correspondentes a todos os faróis da Costa
Brava estão guardados no Arquivo Histórico de Girona. Cada ano, um livro de
registo. Adoro aquele nome: estado das tempestades. Como se uma tempestade não
fosse uma coisa que acontece de repente, uma coisa que vem e vai, mas sim uma
presença acaçapada e permanente, uma fera cujo humor se vigia. Foi esse o tema
da minha tese e tive a sorte de tocar com as minhas próprias mãos aqueles
documentos: cadernos oblongos de capas vermelhas e papeis toscos, inchados pela
humidade» (p. 86)
Nessa demanda documental, quase obsessiva, Serena
perdia-se maravilhada nos manuscritos «daqueles faroleiros, que eram
meteorologistas sem o saberem» onde, para além dos dados meteorológicos (hora
do início e fim da tempestade, humidade, temperatura, direcção do vento e
quantidade de água recolhida por metro cúbico), anotavam, no verso da mesma
página,
«as suas impressões pessoais e, com o
estilo altissonante próprio dos tempos, demorava-se em apreciações quase
poéticas sobre trovões e relâmpagos, espessura das nuvens e violência do mar.
Antes de assinar, despedia-se sempre com o mesmo comentário final: “Não há
conhecimento de que tenha ocorrido qualquer novidade nas proximidades deste
estabelecimento.» (p. 86)
Foi também esta faceta “literária” da actividade dos
faroleiros, expressa num instrumento que partilham com os antropólogos – o
“diário” – que me entusiasmou de forma acrescida. À sua maneira, também eles
etnografavam… o céu e o mar.
Uma amiga, sabendo desse meu gosto e fascínio pelos faróis, ofereceu-me um quadro pintado por si com este mesmo, o de Santa Marta, igualmente em tons de azul. Tenho-o numa das paredes do meu quarto. Acordo, todas as manhãs, a olhar aquela peculiar torre quadrangular de 20 metros, revestida a azulejo, com faixas horizontais azuis e brancas. E a lanterna vermelha a indicar-me o rumo: levanta-te e faz-te à vida… que já são horas!
Post scriptum:
Este
mural de Exas (Muraliza, Cascais, 2014), estende-se por um muro convexo
na Travessa dos Navegantes, entre o nº 2
e o 5, e nele se vê uma pequena placa metálica azul em que se pode ler: “É
proibido afixar anúncios nesta propriedade”.
Já quando era miúdo não entendia bem o sentido desta
placa afixada nas paredes exteriores de alguns edifícios, da minha vila
suburbana. Por esses tempos (os da ditadura) não havia, praticamente,
publicidade de rua (só me lembro do Licor Beirão), nem disputas eleitorais (o
sistema era de partido único), nem graffitis
(ainda eram desconhecidos, entre nós, como manifestações de contracultura).
Com a democracia, a parafernália de cartazes
partidários tornou obsoleto o conteúdo de tais placas proibitivas, e lançou o
caos naquelas paredes caiadas por um senhorio diligente e ávido do que é seu.
Era o tirocínio da cidadania através de ínvios caminhos.
Nos dias de hoje, este aviso – resquício desse tempo
em que tudo se proibia (até o viver em liberdade) – é digno de loja de
antiguidades. Por isso o graffiter
não o teve em conta e fez o que o seu impulso artístico e dever cívico lhe
impunham – extravasar o que lhe ia na alma e dar vida e colorido ao velho e
corroído muro daquela movimentada rua.
Agora, anos volvidos, a vegetação espontânea
apossou-se da parede e quase esconde o belo mural. Os meus olhos desviavam-se,
entristecidos pela incúria…
Texto e Imagens
Luís Souta
por Luís Santos
O emir do Qatar,
apelido de família Thani, entre outras coisas, é conhecido
pelas suas 3 esposas e respetivos 13 filhos que, pressupostamente, são todos seus. Tanto quanto se sabe, vivem juntos,
moram juntos, comem juntos, vão de férias juntos e, em salutar harmonia,
dividem um jeito diferente de ciúmes da maneira ocidental.
Numa gente tão endinheirada, com tantos milhões de litros de
petróleo e de gás natural, a juntar a família tão extensa, ainda
pressupostamente, existem uma quantidade indefinida de concubinas e, aqui,
entre outras coisas menos boas, aparece a questão dos direitos das mulheres,
dos homens, das crianças, dos animais, etc.
Como o textinho não deve ser muito longo e o objetivo é
falar da organização da família no mundo, do jeito que a Antropologia nos tem
ensinado, para se viver numa família poligâmica, quer dizer, onde um homem casa
com várias mulheres, não é preciso ser rico, nem ser árabe, já que, por
exemplo, isso é um costume habitual nas sociedades africanas tradicionais. Tal
como, numa outra forma de família, existem muitas famílias de tipo poliândrico,
ou seja, lugares do mundo onde é normal uma mulher ter vários maridos.
Continuando a resumir, é também assim a condição humana e
até se pode perguntar se é bom se é mau, se este tipo de gente com costumes tão
diferentes dos nossos, no fim, vai para o céu ou para o inferno?
E, pronto, por hoje era isto.
Na fotografia, mulher nepalesa que tem 3 maridos e jura que
é feliz.
Luís Souta
ANTROPOLOGIA e LITERATURA
«Do que eu
gostava na antropologia, era o seu poder de negação, da sua obstinação em
definir o homem»
(Samuel Beckett, Molloy, 1964:55)
A Literatura não sendo uma ciência,
tem, no entanto proximidades com o vasto campo das Ciências Sociais (História,
Geografia, Antropologia, Sociologia, Economia, Psicologia Social, Ciência
Política). De tal modo que se vulgarizou a designação “Ciências Sociais e
Humanas” ou “Ciências Sociais e Humanidades”, para incluir outras, como a
Literatura, a Filosofia e o Direito. De facto, a Literatura está mais próxima
deste grande grupo multidisciplinar cujo centro das suas preocupações são as multíplices
problemáticas do Homem e da Sociedade. As diferenças entre Ciências Sociais e
Literatura são de natureza e de estatuto social. Podemos recorrer a um
critério, a atribuição do prémio Nobel. No âmbito das Ciências Sociais, só a
Economia tem esse galardão (o primeiro foi atribuído em 1969). Ora o Nobel
Literatura desde 1901 que é concedido, sendo (a par com o da Paz) o de maior
impacto mediático e dos mais conhecidos entre o grande público. Este simples
exemplo, a que outros se poderiam aduzir, como o da divulgação, via editorial,
dos respectivos produtos, serve para salientar a ideia da influência social que
a literatura tem quando comparada com o mundo da Ciência.
Jean Copans anotava que «[d]esde a
sua origem, a etnologia é também uma
literatura, visto que ambas são um discurso, descritivo e valorizante»
(1971:50). Nos anos mais recentes, vários têm sido os trabalhos que evidenciam
as fronteiras onde se tocam a antropologia e a literatura, muito através dos
«estudos culturais». A par da História é talvez na Antropologia que essa
proximidade à literatura seja mais notória. O sentido holístico da análise que
tanto a Antropologia como a História prosseguem (uma centrada nas sociedades do
passado, a outra nas sociedades actuais), colocam o Homem numa rede de
múltiplos feixes de intersecção e interacções sociais nas suas diversas
actividades e esferas de acção (familiar, económica, política, social, militar,
cultural).
O antropólogo americano Clifford
Geertz, ligado ao paradigma interpretativo, revolucionou a antropologia
moderna, em diversos sentidos, nomeadamente possibilitou uma aproximação entre
a antropologia e a literatura, ainda que produzindo afirmações que estão longe
de colher consenso entre aquela comunidade científica. Dessas afirmações
destacam-se as referentes à cultura, «não é mais do que um conjunto de textos»,
e às obras etnológicas, consideradas como ficções, na medida em que são
produtos construídos. De facto, o produto final do trabalho de campo de um
antropólogo consubstancia-se na produção de um texto, que procura, em certa
medida, ser a “voz” desses “outros” que lhe serviram de objecto de estudo. Ele
resulta de um processo metodológico, único, e distintivo da identidade
disciplinar da Antropologia – a «observação participante». Só que Geertz e
seguidores preferem, naturalmente, falar em «descrição participante», ou seja, uma
versão biográfica do «estar lá» (Casal, 1996:96), e pôr a tónica nos problemas
da narratologia, ela própria produtora de uma outra realidade, marcada por uma
visão subjectiva. Deste modo se fazia emergir, aquilo que, em regra, não vinha
à luz do dia: as condições em que eram recolhidas as informações e como,
posteriormente, elas eram traduzidas num texto inevitavelmente plasmado da
personalidade de quem o redige (cf. Clifford & Marcus, 1986).
O consumo do texto antropológico é
diminuto, limitado, em regra, aos meios académicos e a uma escassa fatia do
público não especializado. Tal decorre, também, de uma certa particularidade do
tipo de textos antropológicos muitas vezes acusados de conterem «exemplos
áridos, sem vida». Um texto descritivo que torna o trabalho maçudo e denso,
faltando-lhe fluidez que só a narrativa lhe empresta. Ainda que não se possa
confundir o “literato” com o “antropólogo”, um pertenceria à categoria do
«escritor» e outro à do «escrevente», recuperando os velhos conceitos de
Barthes (1964), ou seja, um mais preocupado em «como escrever?» e o outro em
«escrever o quê?».
Só que estes dois modos de encarar
a escrita não são dicotómicos; os dois campos têm-se vindo a aproximar, havendo
já casos de “fusão” entre a Antropologia e a Literatura, a «artful-science»
como lhe chama Ivan Brady, onde a linguagem científica e a estética da arte se
interpenetram num género novo. O antropólogo italiano Alberto Sobrero, num
texto apresentado no Congresso de Antropologia1, numa secção
significativamente designada de «Antropologia como Ficção: as escritas
antropológicas», identificou um conjunto assinalável de autores2 e
de obras desse tipo, muitas delas produzidas em contexto de emigração ou por
“antropólogos-nativos”, estes últimos mais ligados à recente “antropologia
periférica” (muito em especial em África e na América Latina). Também de
referir os “antropólogos viajantes”, sendo Ramos (2000) e o seu diário de
viagem à Etiópia um bom exemplo. Enfim, gente que ousa atravessar as fronteiras
onde antropologia e literatura se tocam.
Caso de Paul Benson que editou, em
1993, uma obra pioneira neste domínio a que deu precisamente o título de Anthropology and Literature. Esse
volumoso livro reúne onze textos de antropólogos de diferentes nacionalidades
que relatam as suas experiências concretas em diversos locais do globo (Alaska,
Florida, Índia, Indonésia, Novas Hébridas…), em torno da utilização que fazem
da ficção (poesia, tragédias gregas, por exemplo) e que reflectem de forma
aprofundada sobre a crescente variedade de géneros na produção dos seus
próprios textos, em moldes mais próximos do registo literário (short stories, por exemplo) que da
clássica e tradicional monografia. Situando-se em campos metodológicos mais tocados
pela pós-modernidade e pelas correntes da antropologia crítica, valorizam uma
etnografia auto-reflexiva, que evita as dicotomias dogmáticas e clássicas:
etnografia associada a factos e verdades em contraponto com a ficção e a
fantasia; dum lado cientistas e do outro artistas. Antes se reforça a unidade
das componentes do self, onde o
pessoal e o profissional, o literário e o científico do antropólogo lhe permitem
rentabilizar a sua acção.
Outro exemplo, é o do antropólogo
francês Marc Augé quando recorre às obras de alguns romancistas para dar corpo
às três figuras centrais do esquecimento que ele nos propõe – «o retorno, a
suspensão e o recomeço» – num conjunto de ensaios em que se procura ver «a vida
como narrativa» e da necessidade intrínseca que todo o ser humano tem de
esquecer. E usa, para isso, a metáfora da jardinagem: «as recordações são como
as plantas: há algumas que é preciso eliminar rapidamente para ajudar as outras
a desabrochar, a transformar-se, a florescer» (1998:23).
James Clifford e, em certa medida
também, Raúl Iturra têm praticado uma escrita onde se denota um certa
justaposição de géneros e onde o “literário” emerge como forma discursiva com
fortes marcas de experiência pessoal.
No caso português, temos tido alguns escritores que nas suas obras, mobilizam um conjunto de saberes multidisciplinares, entre os quais os da antropologia; poderíamos quase considerá-los como escritores-etnógrafos que recorrem ao trabalho de campo e, por aí, se aproximam do ofício do investigador social. Aquilino Ribeiro, Alves Redol, Miguel Torga, Tomaz Ribas, Teixeira de Pascoaes3, são alguns exemplos onde muito material etnográfico é coligido e descrito com pormenor e minúcia. Glória: uma aldeia do Ribatejo de Alves Redol (1938), classificada como «ensaio etnográfico», e Aldeia de Aquilino Ribeiro (1946), sub-intitulada «terra, gente e bichos», são talvez os casos mais próximos da monografia antropológica, mais evidente na estrutura do primeiro, mas onde o conteúdo revela preocupação em descobrir as raízes profundas de Portugal, e em particular, conhecer as duras realidades em que vive o seu «povo». Não é por acaso que ambos são “acusados” de escritores regionalistas que, tal como os antropólogos, focalizam o seu estudo sobre uma região específica (aqui, um centra-se na Beira e outro no Ribatejo). Em Aquilino Ribeiro encontramos mais dois livros com referências explícitas nos subtítulos a essa intencionalidade antropológica: O Livro do Menino-Deus: o Natal na história religiosa e na etnografia (1945) e Geografia Sentimental: história, paisagem, folclore (1951).
Notas
1.
Comunicação de Alberto Sobrero ao 2º Congresso de Antropologia, Lisboa,
F.C.Gulbenkian, 15/11/1999.
2.
Referiu um caso em língua portuguesa, a do cabo-verdiano Luís Romano (1962) Famintos.
3. Cf. “O pensamento antropológico de Teixeira Pascoaes” de Manuel Ferreira Patrício (1997).
Referências
AUGÉ,
Marc (1998) As Formas do Esquecimento.
Almada: Ímanedições, 2001.
BARTHES, Roland (1964) Elementos de Semiologia. Edições 70.
BENSON, Paul (ed.) (1993) Anthropology and Literature. Urbana and Chicago: University of
Illinois Press.
CASAL, Adolfo Yáñez (1996) Para uma epistemologia do discurso e da prática antropológica.
Lisboa: Edições Cosmos/ Cosmos Antropologia, nº 1.
CLIFFORD, James e MARCUS, George E. (1986) (eds.) Writing Culture: the Poetics and Politics of
Ethnography. London: University of California.
COPANS,
Jean et al (1971) Antropologia. Ciência das sociedades
primitivas? Lisboa: Edições 70/ Biblioteca 70, 1974.
RAMOS, Manuel João (2000) Histórias Etíopes: diário de viagem. Lisboa: Assírio & Alvim/
Sete estrelo, nº 7.
REDOL,
Alves (1938) Glória – Uma Aldeia do
Ribatejo. Publicações Europa-América / Obra Completa de AR, nº 18.
RIBEIRO,
Aquilino (1946) Aldeia. Venda Nova:
Livraria Bertrand/ Obras completas A.R., 1978.
Alhos Vedros, 10-11-2022
Paulo Landeck
Partiu há pouco o meu querido
Ulisses, o animal com quem senti mais conexão dos muitos que se cruzaram comigo
nesta vida. Ensinou-me muitas coisas, sobretudo com a sua morte, que me deixou
o ser nu, lavado das muitas futilidades e distracções em que me tenho enredado.
Vejo-te, Ulisses, a regressares à Luz sem forma de onde tudo vem. E, agora que
não tens corpo, reconheço-te em todos os seres e coisas, em todo o lado. A
morte é um dos aspectos mais sagrados da vida, como fizeste sentir a mim e à
Daniela enquanto acompanhávamos a tua lenta, serena e silenciosa despedida. Que
as minhas orações e as de todos os amigos que se quiserem juntar a elas sejam
as asas que te levem mais lesto para o Infinito. Na tradição do Buda usamos o
mantra da compaixão - Om Mani Padme Hum - , mas todas as palavras e sons puros
são bem vindos para te acompanhar e a todos os seres que estão a fazer a mesma
Viagem. Sim, que contigo nos leves a todos para a Luz infinita! Que todos os
seres sejam livres e felizes, agora e sempre! Que todos despertemos deste sonho
de haver vida e morte!
E, por falar em partidas, foi adicionada uma música que é da responsabilidade do editor, aqui: https://www.youtube.com/watch?v=MzGpYtR1v4U
Luís Souta
AS CIÊNCIAS NAS FRONTEIRAS DA FICÇÃO
«Ciência é loucura se o bom siso a não cura.»
O debate em
torno da ficção, não está hoje circunscrito à literatura. Ele instalou-se no interior
desse espectro largo que são as ciências sociais. Mesmo aquelas que mais
pareciam blindadas a esse tipo de “vírus”, têm-na inscrita nas suas agendas
metodológicas. Tomemos a História como ponto de partida. Nela, o real
acontecido era tornado verdadeiro na e pela escrita do historiador (cujo
estatuto tem muito de comum com o narrador, ainda que mais evidente na corrente
da «história narrativa»). «Os factos», enquanto incidentes singulares da
interacção humana num determinado contexto histórico, eram, por excelência, o
interesse primeiro do historiador. Mas a história não é uma ciência dos factos,
há nela sentimentos, emoções, afectos, especulações… leis e teorias. Captá-los
e “trazê-los” para o interior da História passou a ser um objectivo de quem se
interessa por reconstruir o passado, na sua pluridimensionalidade. Também por
resolver estiveram sempre os “buracos” na história das nações e da humanidade,
para os quais não havia documentação, monumentos, artefactos, provas empíricas.
Cabia então ao historiador, resolver esses problemas, preenchendo lacunas, com
o recurso a inferências, à imaginação, em suma, à ficção. Daí que Valdés afirme
peremptório: «There is as much fiction in history as there are facts in
fiction» (1992:28).
Por sua vez
Hayden White diz que a principal distinção entre história e ficção «tem a ver
com a forma, e não com o conteúdo» (citado em Nóvoa, 2000).
Neste
ponto, vale a pena ter presente a visão de um escritor, o peruano Mário Vargas
Llosa, cujos romances «andam muito próximos de acontecimentos históricos»1
e que destrinça a questão da verdade, na história e na literatura, nestes
termos: «A verdade literária e a verdade histórica são muito distintas. A
verdade histórica mede-se pela identificação entre aquilo que um historiador
conta e a realidade vivida. A verdade de uma ficção não é alheia à própria
ficção. Depende, não da sua identificação com uma realidade prévia, mas
fundamentalmente do seu poder de persuasão.» E ilustra com Guerra e Paz de Tolstoi onde os historiadores detectam uma série de
inexactidões sobre as guerras napoleónicas mas os leitores não deixam de
acreditar «cegamente (…) pela força hipnótica que o romance tem»2. É
esta uma das formas próprias que a literatura tem de nos levar acreditar que
«copia a realidade».
Sandra
Pesavento reconhece que as divisões se têm esbatido pelo que «a questão da
veracidade e da ficcionalidade do texto histórico está (…) presente na nossa
contemporaneidade, fazendo dialogar a literatura e a história num processo que
dilui fronteiras e abre as portas da interdisciplinaridade» (2000:37).
Pesavento faz um exercício curioso, em relação a um período concreto da História
do Brasil: procura cruzar uma obra literária de 1865 – Iracema – do conhecido escritor José de Alencar (1829-1877), com o
trabalho de 1907 – Capítulos da História
Colonial do não menos conhecido historiador Capristano de Abreu. Cotejando
as duas obras, ela constata «o quanto de verdade» ou de «aproximação com o
real» a primeira obra é portadora. Nela se encontram «registros etnográficos e
passagens de causar inveja a qualquer geógrafo, antropólogo ou filólogo»
(2000:54-5). Não é pois de estranhar que os desenvolvimentos na História (a
ciência social que parecia mais sólida nos seus princípios metodológicos) para
áreas de estudo como a «vida quotidiana» ou das «mentalidades», para só
identificar dois campos, tenha feito entrar no seu aparato instrumental
conceitos como os da representação, do imaginário ou do simbólico.
Um outro
exemplo brasileiro, de articulação estreita entre a antropologia e literatura
num mesmo autor, é-nos dado por José Maurício Arruti quando analisa a obra do
antropólogo Darcy Ribeiro (1995) O Povo
Brasileiro – a formação e o sentido do Brasil e constata que o autor chega
a «reproduzir trechos inteiros de um dos seus romances, como contribuição
legítima para a sua argumentação» (1996-97:305). O produto final pode ser visto
como uma grande narrativa, que em vez de uma pretensa objectividade, resultante
de um olhar externo, distante e superior, ajuda «a pensar a partir da
sensibilidade».
O
historiador Jacques Revel, aquando da sua vinda a Portugal para participar nas
Conferências do Convento 1996, na Arrábida, afirmou numa entrevista concedida a
um jornal nacional3: «Os historiadores iniciam frequentemente as
suas análises pela contextualização. Nas teses francesas havia sempre um
capítulo inicial chamado “La terre et les hommes”. Descreviam uma região, uma
cidade, a paisagem. Montava-se o cenário, como num romance, garantindo assim
que tudo aquilo tinha acontecido alguma vez.»
Um exemplo clássico é a obra de Oscar Lewis Os Filhos de Sánchez, por ele mesmo considerada como uma «literatura de realismo social» (1961:14). A partir das entrevistas aos quatro irmãos da família Sánchez – Manuel, Roberto, Consuelo e Marta – que vivem na vecindad da Casa Grande, num bairro pobre no centro da cidade do México, Lewis procura «uma visão cumulativa, multifacetada, panorâmica de cada indivíduo, da família como um todo, e de muitos aspectos da vida da classe baixa mexicana» (id.:13). E assim, inaugura o método das «autobiografias mútuas» que tanto impacto tem tido não só na antropologia (Vieira, 1998, 1999) como noutras ciências sociais (Leite, 1999)… O antropólogo americano praticamente abdica da análise teórica, dando-nos um «pedaço de vida (do “romanesco”), mas pedaço de vida refractado por várias subjectividades, o que lhe permite um mínimo de objectividade» (Copans, 1971:51). Curiosa é a reacção de um escritor, Vergílio Ferreira, a este livro, de que nos dá conta no primeiro volume do seu diário Conta-Corrente: «o grande truque do autor é jogar no verdadeiro contra o verosímil. (…) Mas dizendo-nos que aquilo é “verdade”, nós pomos de parte a categoria da “verosimilhança” e aceitamos. (…) [E uma vez] declarada a “verdade” das narrativas, só mal reparamos nas inúmeras intervenções do autor (comparações, reflexões, etc.) evidentemente “literárias”. (…) A “literatura” não está apenas nas narrativas do Manuel (que o autor nos diz “instruído”) mas em todas» (1980:72). Vergílio Ferreira conclui dizendo que o que valoriza uma narrativa “verdadeira” seria alvo de discussão numa narrativa ficcional.
Notas
1. Conversa na
Catedral (1969), A Guerra do Fim do
Mundo (1981), História de Mayta
(1984), A Festa do Chibo (2000), O Paraíso na Outra Esquina (2003)…
2. Entrevista de Mário Vargas Llosa ao DNA, 21/04/2001, p. 15.
3. Entrevista concedida a Octávio Gameiro, Público, 20/07/1996, p. 5 do suplementos “Leituras & Sons”.
Referências
ARRUTI,
José Maurício (1996-97) “Uma antropologia Mameluca a partir de Darcy Ribeiro,
1995: O Povo Brasileiro – a formação e o
sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras”. Revista da Faculdade de Letras, nº 21-22, 5ª série, pp. 301-312.
COPANS,
Jean et al (1971) Antropologia. Ciência das sociedades
primitivas? Lisboa: Edições 70/ Biblioteca 70, 1974.
FERREIRA,
Vergílio (1980) Conta-Corrente 1 (1969 a
1976). Amadora: Livraria Bertrand.
LEITE, Carolina (1999) “Conto e Histórias de Vida nas
Ciências Sociais”. Comunicação e
Sociedade, Cadernos do Noroeste,
Série Comunicação, vol. 12, nº 1-2, pp. 219-227.
LEWIS, Oscar (1961) Os Filhos de Sánchez. Lisboa: Moraes Editores/ Mundo imediato, nº
1, 2ª edição, 1979.
NÓVOA, António (2000) “História & Educação”. Educação Ensino, nº 22, Maio-Junho, pp.
9-11.
PESAVENTO,
Sandra Jatahy (2000) “Fronteiras da Ficção: diálogos da história com a
literatura”. Revista de História das
Ideias, vol. 21, pp. 33-57.
Ainda nos lembra os picos da Atlântida, de que os Açores são
parte. As conversas telepáticas, o brilho dos cristais, das viagens espaciais.
Rememorações ancestrais. Das asas, dos voos. Das pedras piramidais, dos enormes
templos. Dos sacerdotes e dos deuses das jornadas iniciáticas. Das
festividades, das homenagens, dos rituais.
Ainda nos lembra das árvores. Nossas casas. Das árvores e
dos frutos. Dos guinchos e das poças de água em que bebiam e chapinhavam, e às
vezes até lutavam, com paus, com ramos, que se foram tornando pontiagudos.
Grupos enormes, famílias extensas. Nómadas à procura de tempos quentes, e das
marés. Das fogueiras e das cavernas.
Do ferro e dos arados. Das cabanas em círculo de entre-ser e
dos centros das aldeias em que dançámos e se contavam estórias sobre estórias. De
tudo se falava e de nada se escrevia. Riscos e desenhos, pinturas no chão e nos
corpos. E se percutiam as danças onde se saltava bem alto em frente delas para
mostrarmos da imensa leveza, da elevação.
Matriarcais saudades de jovens amazonas que viviam nos
campos de escravizantes agriculturas. Quando se deixaram as deambulações, de
bichos à solta, e se fixaram os animais e as terras, e se construíram as cercas
para as crianças e as mulheres, das escolas e dos lares e das mamas, do leite.
Da carne.
Do peixe e daqueles pescadores da Judeia, de Belém, entre os
latins romanos do império que rendiam os gregos, mas só nas armas que não na
filosofia. Da democracia, mas não para mulheres e escravos e estrangeiros,
metecos aristotélicos e platónicas curtes, por sua vez, herdeiros de socráticos
devaneios. Da maiêutica, da arte de dar à luz, do mundo das ideias.
Afinal, o Amor. A universal fraternidade. O céu infinito. O
Amor... e a cruz. Jesus! Para tanto sofrimento que nos redima. Então e da
meditação, do Buda, que nos livra do sofrimento? Do possível transcendental
salto védico que nos livre daqui. Do
Deus no lugar do homem que, doravante, será parte de Deus. Da oração, do
silêncio, do deserto. De Ti!
Cadê a deusa-mãe, cadê os celtas. Cadê celtas e iberos,
endovélicos lusitanos. Dos bárbaros
godos e visigodos que depois voltaram. Os pagãos, as forças da natureza, as
mágicas alianças. Avalon. Os druidas, as poções, dos milagres, da cura e a
doença. A lógica analógica, a consciência cósmica. A totémica identidade. Todos
indo-europeus, todos cristãos virados pelo avesso, anunciada evangelização.
O crescente lunar e a arabesca astronomia. Das bússolas, do
astrolábio. Do Maomé e do Alcorão. De Meca, de Medina e da mesquita. Das deusas
encantadas, enamoradas. Dos cânticos de amor. Desgostos do Amor. Da “xaria”. Da
expansão e da desejada reconstrução do "mare nostrum". De Poitiers e
de Carlos Magno, Urbano VIII de joelhos, imperador da cristandade.
Da reconquista católica. Dos cruzados e das cruzadas.
Raimundo e Henrique, Teresa e Urraca. Afonso de Castela. Do Condado
Portucalense. Guimarães. São Mamede, 24 de junho de 1128. Um rei sonhado e a
sonhar com cristo-rei. Vai e funda o meu reino, vai Henriques. E ele foi.
E lá foi fazer o que Ele quis. Vai Dinis. Vem Santa Isabel.
Vinde Língua Portuguesa. Vinde todos os peregrinos, toda a ordem do templo,
ordem de cristo. Venha o espírito santo. O pai, o filho e a Jerusalém
Celeste. Vinde vendavais que rumorejam
nos pinhais, venham todas as naus. Todas as ilhas dos amores.
(in, AMORIM, Francisco Gomes de & FONSECA, Henrique Salles da (2022) Encontro de Escritores, uma reunião inesquecível. Lisboa: Edições Vírgula, pp.40-43)
Luís Souta
«A medida do
amor é amar sem medida.»
(Victor Hugo)