terça-feira, 4 de setembro de 2012

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Já não era sem tempo. Foi difícil, foi mesmo aquilo a que se chama um parto difícil, mas finalmente a electricidade chegou às nossas casas, o mesmo é dizer que regressou às nossas vidas, não sem antes termos passado por vicissitudes que, no mínimo, seriam ridículas para nem dizer bizarras se, em alguns aspectos, não tivessem sido muito simplesmente ofensivas. Desde que aqui chegámos e em breve farão dois anos, requeremos abertura de uma extensão de rede até ao local onde vivemos e que implicou a instalação de cabos desde as linhas que passam sobre a berma da estrada ao longo de uma mão cheia de quilómetros. Não será propriamente dito como tratar de abastecer um prédio na cidade mas também que diabo, do mesmo modo não será nada do outro mundo. E muito menos se tiver em conta que até fomos nós quem instalou os postes e naturalmente assegurou os custos da operação. Para nem referir que o próprio projecto foi todo ele elaborado pelo pessoal do burgo e que às entidades oficiais apenas competiu, para além das aprovações legais, colocar os cabos e, digamos assim, ligar o interruptor. Seja como for, quase dois anos para aquilo que se poderia fazer numa semana, é obra, temos que o reconhecer. Primeiro foram as mãos que se untaram ou tiveram que untar para que a papelada chegasse célere a quem de direito, depois para que os despachos fossem rapidamente executados e, ainda assim, não fosse o José Pedro o neto de uma memória respeitável que por enquanto perdura nos mais velhos, nada me espantaria se ainda hoje estivéssemos à espera das decisões alheias. Isto porque ele lá foi sabendo da curiosidade que toda esta gente representa para as autoridades locais, coisa estranha para um menino como ele, eventualmente vítima de más companhias que tamanhas desconfianças deixam à volta das possibilidades de andarem dedinhos comunistas por detrás de tudo. Afinal o que poderia levar pessoas como eles que somos nós, quase todos formados, a virem para este fim de mundo para viverem como… E por esta dúvida se escoaram as semanas. Estou convencida e não sou a única que o pensa, nem mesmo, entre nós, fui a primeira a dizê-lo, foi o tempo para que as nossas vidas tenham sido escrutinadas de fio a pavio e, como o senhor Abel já teve problemas com o regime e alguns dos outros não morrem de amores por ele, os guardiães da ditadura se certificarem que não há qualquer propósito subversivo que, no imediato, tenha por fim pôr em causa a quietude podre em que assenta o quotidiano num sistema repressivo. Eis porque andámos cá e lá, mais um papelinho, mais uma assinatura e por fim a autorização desejada que logo mereceu um pequeno festejo. Sinto-me novamente uma pessoa civilizada e como iremos passar este Natal com os meus pais, trarei a grafonola que o paizinho me prometeu como forma de comemorar mais esta nossa aquisição. Tenho tantas saudades de escutar uma boa peça de música. Pois ainda bem que as noites deste Inverno que está a chegar, terão mais este aliciante. Para já não me canso da alegria de ver a casa iluminar-se pela magia da pressão de um dedo. Falta a iluminação da rua e só espero que todas estas demoras e demandas se não repitam e o Senhor Presidente da Câmara autorize rapidamente, coisa que, pela voz dos entendidos, não será fácil e que não deveremos esperar tão cedo. Faço votos para que estejam errados. Agora que calcetámos a colina até ao cume, onde ficou demarcado o círculo em que pretendemos erguer o depósito de água e que deixámos os passeios prontos ao longo da ladeira das casas, seria bonito dispormos de uma sucessão de candeeiros para iluminarem as passadas nocturnas. E o caminho que nos liga à estrada ficará certamente mais seguro quando não for apenas a escuridão a cuidar dele. Daqui até lá, demo-nos por satisfeitos por não termos que andar com o candeeiro a petróleo na mão sempre que mudamos de divisão. É, sem margem para dúvidas, um passo à frente para este nosso pequeno mundo. Só por isso compreendo que os homens tenham decidido fazer uma festa de arromba que teve direito a pé de dança e tudo. E fizeram a coisa dentro do maior secretismo que nem o meu marido se descoseu com o que quer que fosse, não deixando transparecer o mais leve sinal de que algo se iria passar. Ao que parece foi o senhor Abel que teve a ideia e o Zé Pedro que deve ser tão maluco quanto aquele, não só tratou de lhe dar ouvidos como de imediato reuniu uma equipa que tratou de tudo. Com isto do interesse pelos cantares populares da zona, o Félix tem feito conhecimentos não só entre rostos que vivem perdidos pelos montes e as aldeias das redondezas, como entre pessoas ligadas a colectividades, especialmente a que serve de apoio à filarmónica da Vila. Pelos vistos ainda não arranjou qualquer aluno para as aulas de música que se nos mostrou disposto a ministrar, mas lá descobriu um gosto comum no Artur e na mulher deste e não lhe deve ter sido difícil convencê-los para o acompanharem com cadernos de pautas e a viola que este último domina, para irem ao encontro do registo de letras e respectivas músicas que o povo canta de cor e passa de geração em geração. Foi por ele que os estrondos dos foguetes nos despertaram para um burburinho longínquo que, pela aproximação, acabámos por identificar como música. Agora que temos metade das mulheres em casa por causa da prole nascida e da que está para nascer, foi já com as bocas abertas na rua que a surpresa se desvendou, na visibilidade da azinhaga, com a banda marchando e os homens, com o senhor Abel à frente lançando as canas para o ar, pulando e dançando sob o ritmo das tarolas que se confundiam com o estilhaçar do foguetório. Depois houve bailarico e o José Pedro concluiu com um discurso curto e simples mas bonito, em que nos recordou que, aos poucos, por muitas e espinhosas que as dificuldades se nos revelem, lá vamos dando provas que não estamos aqui em vão e vamos ficando cada vez mais longe de um mero bando de sonhadores. Montámos mesa no salão da casa grande e, embora de improviso, fizemos um jantar em que se brindou à saúde de todos, ao bem estar dos nossos filhos e ao futuro em que almejamos ser felizes.
Agora, quando sair daqui, já não terei que soprar pelo topo de uma barriga de vidro. O apagar da lâmpada não deixa rasto de cheiro no ar. Será que me começo a sentir no paraíso? A verdade é que me tenho sentido tão feliz.

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