Há um aspecto nas grandes correntes filosóficas que sempre me causou confusão. É que raramente consideram o factor humano e por isso se constroem como se as pessoas não existissem. Fala-se de grandes sistemas como se estes não fossem constituídos por homens ou como se aqueles fossem os determinantes das acções e a consciência e a vontade de cada um não tivessem a menor importância. Até em Marx que coloca o problema das classes sociais e da luta entre elas como o factor primordial no movimento da História, apesar de ser evidente que estas são conjuntos de indivíduos, tudo se explica como se aquelas se comportassem como um todo com iniciativa própria que estaria além dos seus componentes individuais a quem ditariam desígnios e modos de proceder. Hegel, com o seu evolucionismo histórico, fala da Humanidade como se esta, no seu dia a dia, obedecesse a leis deterministas de sentido único e geral a que os seres humanos se não pudessem subtrair. Isto sem chegar a questionar a ideia de progresso que lhe está subjacente e a que, em boa verdade, não serei capaz de atribuir a constância e a universalidade que se procura conceder-lhe. Para ser sincera, não sei se a História nos permite corroborar empiricamente semelhante observação e a Antropologia, pela variedade que destaca, chama-nos a atenção para o facto de nem todas as sociedades estarem submetidas aos mesmos mecanismos que provocaram o tal desenrolar progressivo de que estamos a falar. Mas este é um pormenor que pouco me interessa nesta ocasião e para o assunto que aqui me traz. A este nível, por exemplo, prefiro Kirkegaard que coloca o indivíduo no cerne da questão e constrói o seu pensamento a partir da referência do poder de decisão de cada um. A liberdade de que dispomos para escolher um determinado rumo na vida. Efectivamente, desde há muito que perfilo essa maneira de ver e é por aí que navego. Creio que tudo começou pela crítica do discurso vulgar que se faz em torno da ideia de destino, algo a que os meus queridos pais tanto me incentivaram. Não há um destino pré-definido; ninguém nasce com um fado, uma rota e um sulco traçados e muito menos irreversíveis. Deste modo, o futuro estaria pré-determinado pelo que poderíamos adivinhá-lo algo que, sabemo-lo perfeitamente, não acontece. Sempre achei assim que está na mão de cada um tomar as rédeas da sua própria existência e agir em conformidade. É claro que existem condicionantes e obviamente não deixo de ter isso em conta e sei como é vulgar que tais enquadramentos acabem por empurrar alguns, gorando-lhes por completo a sua livre iniciativa ou a possibilidade de a usufruírem. Pergunto-me se o filho de um miserável terá essa mesma liberdade tão em aberto quanto sucederá com um sujeito criado num núcleo familiar com todos os meios à disposição para se afirmar. Há pois uma inter-influência de factores em que a individualidade surge condicionada pelas circunstâncias em que vive. Seja como for, isso não implica que apaguemos o papel da pessoa e, mais, não nega ou não nos permite negar a possibilidade que sempre nos assiste de decidirmos e por via disso não só abrirmos o caminho que pretendemos pisar, como até modificarmos o sentido daquilo que nos rodeia. Como é que isso se passa, isto é, como e em que base se operam essas influências recíprocas, quais são os instrumentos que o produzem, não sei. Devo confessar que nunca reflecti sobre o tema. Mas é precisamente isso que me parece estar agora a passar-se connosco. Desde que aqui chegamos que nos temos guiado por ideias simples. A começar pelo motivo que aqui nos trouxe. Ele haverá quem denote um certo idealismo no propósito de querer erigir um mundo melhor mas, no fundo, o desiderato colectivo não ultrapassa a pretensão de apenas procurar encontrar uma forma de viver mais agradável e que a todos possa proporcionar um pouco mais de conforto e felicidade, fora das pressões habituais da busca individual do ganha-pão. Depois sempre temos partido do princípio da distribuição das tarefas pelos presentes de acordo com aquilo que há para fazer. Até ao momento, o método, se é de um método que se trata, tem resultado. Bem ou mal, umas vezes melhor outras pior, o certo é que temos levado a cabo aquilo a que nos temos proposto e seria um disparate se negasse que as coisas têm corrido a contento e ainda mais se não considerasse os saldos amplamente positivos. Nuns meros dois anos já conseguimos muita coisa e só o facto de estar aqui em pijama, agora que a madrugada se prepara para deixar os campos cobertos de geada, é disso o melhor testemunho. Contudo temos que admitir que a natalidade impõe ou pelo menos convida a dadas regras e se ela tem sido promissora por estas paragens. Enquanto o Adão foi o único bebé nesta aventura, tirando um ou outro remoque mais parvo, não houve qualquer problema. Mesmo com os dois nascimentos quase simultâneos que se lhe seguiram, foi possível permanecer no ritmo anterior sem dificuldades de maior. Mas agora temos mais um trio de um rapaz e duas meninas e outros tantos, se tudo correr como se espera, vêm aí. Significa que se repetirmos a receita, ficaremos com mais de metade da mão-de-obra feminina em casa o que naturalmente nos colocará perante o escolho de nos virmos a deparar com uma situação em que não encontremos quem possa fazer. Além disso, se até agora a ajuda da filha do senhor Abel se tem revelado eficaz e sido suficiente, com tantas casas a que acorrer, só por milagre poderiam os seus braços responder às solicitações inerentes. Havia pois que encontrar uma solução que, ao mesmo tempo, pudesse funcionar com garantias em termos de futuro. Por isso decidimos que a alternativa seria enveredarmos por aquilo que se consubstanciará na nossa primeira especialização. A Catarina que tem jeito e conhecimentos nestas matérias, organizará conjuntamente com a Dona Noémia um serviço de creche, onde, a partir do ano de idade, a pequenada ficará enquanto os pais estão a trabalhar e ainda, quando for necessário, no decurso desse primeiro aniversário, a mãe possa deixar o rebento para colaborar em alguma tarefa em que forçosamente tenha que tomar parte. Com isso, por um lado garantimos um máximo de gente para o labor produtivo e o número bastante para que a miudagem possa crescer em segurança e com o devido acompanhamento e, por outro lado, ao longo do primeiro ano que todos achamos ser importante que a mãe passe com o filho, podemos dessa forma dispor de mais esse recurso em casos em que tal se revele imperioso. O frenesim do mulherio em tornos dos partos é que não deixará de ser inevitável. Mas esse é um dia apenas e que para todos acaba por ser uma oportunidade de festejo. Já estamos a remodelar a ala esquerda do casarão que outrora albergou a criadagem para aí, com o uso que tem de um pequeno quintal próprio, instalar os apetrechos adequados e convenientes de modo que tenhamos além do quarto para que os pequenos façam as sestas e que já pintámos de azul clarinho, sobre o qual o Alberto pintalgou nuvens e estrelinhas numa decoração que dá gosto ver, uma cozinha que renovámos na íntegra e a casa de banho a que acrescentámos outra e adaptámos ainda uma divisão para o imprescindível trabalho de apoio pedagógico e administrativo e uma outra, a antiga despensa que bem ampla era, ou não fosse isto casa solarenga, a depósito de materiais, estando nos acabamentos um salão maior que conseguimos pelo derrube de uma parede, para que ali haja o espaço de jogos e aprendizagem. Para já a todos parece resolver as necessidades que temos.
E decidimos adoptar um novo costume. Por ideia e proposta do Félix, todos concordaram que é muito bonito que o pai e a mãe de cada criança plantem uma árvore por cada filho, à qual atribuirão naturalmente o nome do petiz. Na opinião do proponente, será uma maneira engraçada para deixarmos um marco desta nossa experiência e paralelamente começarmos a arborizar as imediações do casario e a praça onde contamos vir a ter um jardim. Só isto seria muito. No entanto o Quico quis ir mais longe e sugeriu que deveríamos educar as crianças no sentido de, à medida que forem crescendo, virem a ser elas a tomar conta da árvore respectiva. Após uma acalorada conversa, todos concluíram que seria uma forma de incentivar o espírito e o sentido de trabalho e sacrifício e a responsabilidade entre os miúdos e miúdas e, porque não, também, o gosto pela Natureza, acrescento eu e ainda de lhes incutir e desenvolver a noção da cooperação pois, especialmente quando chegarem à idade de serem eles a fazerem a poda, tudo será mais fácil se trabalharem em conjunto e isto, não sem antes o terem comprovado pelas actividades mais simples de limparem o local e apanharem as folhas. Esse foi um serão que se prolongou até altas horas e no fim todos foram unânimes em dizer que gostaram do que ouviram e, em conformidade, decidiram vir a pô-lo em prática. Num destes últimos dias, o José Pedro foi a um horto perto de Lisboa comprar aquelas que serão as primeiras árvores desse projecto. Um dia teremos o bosque dos descendentes.
2 comentários:
"Um dia teremos o bosque dos descendentes."
Esta frase, com que concluis a crónica, fez-me lembrar Fernando Pessoa e Zeca na canção, Comboio descendente, que termina assim:
No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormnindo, outros com sono,
E outros nem sim nem não
No comboio descendente
De Palmela a Portimão.
(de onde eu regressei)
Por grande reinação, gostei da tua piada, quando no final dizes:
...no fim todos foram unânimes...
Eu digo, por reinação, que as tuas crónicas são sempre uma surpresa inesperada...
Abraço,
António
É isso, tal e qual, quando as estrelas que nos poderiam levar a pensar são eclipsadas pelo grão de poeira que estava na lente.
Talvez só no comboio ascendente seja possível entender que a narradora tem a sua própria linguagem, a sua própria maneira de dizer e de escrever e mesmo as redundâncias, ou as aparentes redundâncias, ainda que evitáveis, como poderia ser de esperar, fazem parte da marca de água que distingue o discurso escrito de alguém que apenas se limita a desabafar no papel as vicissitudes do mundo em que vive e que vai contribuindo para pôr de pé. Provavelmente com a velocidade da descida, afinal é capaz de haver galáxias que passam despercebidas.
É como alguém disse um dia, a voar é que a gente se entende; o problema é que há passageiros que só por avião o conseguem fazer.
Aquele abraço, companheiro
Luís
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