Apesar da proximidade de aldeia em que vivemos a que se acresce o trabalho ou os trabalhos comuns que temos executado, o meu conhecimento das pessoas que me acompanham nesta aventura é ainda muito superficial, isto se considerar que nesta matéria é possível traçar uma perspectiva geral. Há, nisto das convivências, uma empatia natural que não conseguimos explicar. É assim, simplesmente e ninguém sabe porquê. Por qualquer razão que desconhecemos somos levados a simpatizar mais com este ou aquele, talvez se trate de uma espécie de atracção, o certo é que achamos mais graça a alguém, sentimo-nos mais à vontade com uns do que com outros, há, perante determinadas pessoas, uma maior descontracção que nos predispõe a ouvir ou a receber, a partilhar, muitas vezes tudo se traduzindo tão só no mais simples gargalhar que faz do estar junto um gosto. É um mistério, do mesmo modo que o inverso também sucede e gente há de quem nos sentimos repelidos no mais curto e fortuito dos cruzamentos. É o que me acontece nesta experiência em que me decidi envolver. Daí que apesar da mediania do que se me vai formulando a respeito dos convivas seja baixa, rostos há que me são cada vez mais familiares e biografias de que vou sabendo mais e mais detalhados pormenores. O tecto de cada família pôs termo naquela vida colectiva dos primeiros meses e, desde que pudemos dispor de uma mesa para convidar alguém para jantar que nós lá fomos obedecendo a essa lei de nos darmos melhor com uns do que com outros e nas muitas noites em que temos sido visitas ou anfitriões de companheiros, houve uma variedade pequena que se reduziu à sucessão das repetições. Eu gosto muito da mulher do senhor Abel. Está bem para ele. Nem é aquele caso corriqueiro de a mulher se ajustar à sujeição a que se vê forçada perante o marido. É antes das compatibilidades das maneiras de ser que se trata. De resto, muito embora ele colabore numa ou outra tarefa dentro do lar, já o vi varrer a cozinha e a pôr e levantar a mesa ou a lavar a loiça, é ainda a ela e à filha a quem incumbem os recados domésticos e os contributos no masculino ainda não vão além disso mesmo, uma simples colaboração. Bem, falando assim até parece que nem é nada de extraordinário o que ele faz. É o que dá viver numa pequena aldeia, lá vamos sendo atingidos pela intimidade dos vizinhos e ficamos a saber que por detrás daquelas paredes alguém está farto de outrem ou mesmo naquela cozinha há quem não tenha nada que se intrometer. Para além de estar consciente como é o costume por esses lares fora. Homem ganhando o pão, a mulher de vassoura na mão. Mas a miséria que também as atira para a faina, é a que as afunda no duplo sacrifício de alimentar a prole e cuidar de todos. É o que tem sido a secular tragédia no feminino. Ora longe vai assim o senhor Abel, mas não é um paradoxo que seja ao mesmo tempo tão pouco o que dá? Mas a dona Noémia não é mulher que se intimide e muito menos de virar a cara para perder tempo com queixas e lamúrias. Cresceu com o pé descalço e o nariz ranhoso de um rosto sujo que uma grande ninhada nunca foi o melhor meio onde olhar por maneiras e aparências. Mas ouviu as prédicas do pai contra a injustiça daquela pobreza de alimentar patrões. Mas também lhe ouvia dizer como era importante a liberdade e por isso a honradez de nunca andar em falta com alguém. E por isso foi à escola e aprendeu as letras e as contas e com a mãe teve que aprender a fazer sopa a partir de ervas e vagens e um par de batatas. Depois instruiu-se em ofícios; de costureira e chapeleira em que, para além das artes, umas meninas de farda lhe deram a saber que havia maneiras de dizer e modos de agir, porque haviam aqueles que pediam umas calças e aqueles que aos coletes juntavam fatos completos e até camisas e roupa interior. E de casa trouxe ainda a certeza de que a filosofia, por si, não enche barrigas e que ao pobre, se resta a revolta, para que um dia chegue lá importa dar ao braço, sem negaças nem desânimos e de preferência com um sorriso ao Sol que para todos nasce e a nenhum cobra as alegrias que sejamos capazes de descobrir. Gente assim, dizia-lhe a mãe, não pode estar doente, ainda que seja quem mais cai em tal armadilha. Pois é disso que a dona Noémia resulta naquilo que é, uma pessoa bem disposta e sempre com olhar positivo sobre as coisas. Há algo para resolver? Não se sabe como chegar lá? Só o cruzar de braços deixa de ser uma opção e por mais que se erre naquilo que se tente, o que é verdadeiramente importante é justamente a tentativa pois é daí que sai o que se costuma acertar. Há uma aflição, algo que possa ter um mau desfecho e más consequências? Vamos primeiro esperar por elas e isto sem prejuízo de as tentarmos evitar ou remediar e por fim fincar o pé para lhes encontrar respostas e soluções. É esta a sua sabedoria que na vida encontrou o compêndio principal e têm sido estas as lições que me vai dando, quando despachamos louças e despojos de jantares repartidos e a convite e a que, amiúde, se têm juntado outras presenças, especialmente as do Gustavo e da Viviana e as do Félix e da Éster. E agora que vai ganhando confiança com os outros e com a sua própria posição neste universo, vamos percebendo que se por um lado não é de falar pelo aproveitamento das ausências e como não se mete na vida de quem quer que seja e é mulher inteligente, tenho a certeza disso, é daquele género de conhecimentos em que podemos confiar e com quem podemos entabular amizade. O casamento é um contrato, diz ela, em que pode haver amor ou em que, pelo menos, as pessoas julgam partir com o amor, mas no fundo não deixa de ser um contrato, sobretudo para que duas pessoas possam ajudar-se entre si a viver e a criarem os filhos que vierem. Depois também há o amor, mas este precisa que se cuide dele que se vá cuidando dele à medida que os anos vão passando. E o amor não fica o mesmo, não é para sempre a cara bonita que nos fez sorrir quando éramos novos. Esse desaparece e não volta, mas deixa o seu rasto que podemos levar a que floresça e se traduza numa riqueza de nos darmos bem e de gostarmos de estar juntos e partilharmos os risos e as borrascas que a vida nos traga. E para isso, muitas e muitas vezes, é preciso ter sorte, como a que eu me convenço que tive por ter encontrado o Manuel. É claro que desgastado como anda por todo este esforço titânico que temos desenvolvido, já não é aquele rapaz bonito e elegante a quem a franja puxada para trás e as gravatas bem postas faziam parecer o principezinho que me encantou, mas mesmo com as olheiras mais fundas continua gracioso e trata-me com tanto, tanto carinho. E é curioso como, depois de uma troca de impressões com a dona Noémia, reparei que ele nunca disse que me ajudava em casa, antes fazendo sem perguntas toda e qualquer coisa que possa estar por fazer, sem que alguma vez tenha sido preciso dizer a quem cabe o quê. Fiquei tão contente quando ela me disse que é precisamente isso que faz a paixão de um casamento. E agora tenho a certeza de ter sido isso que se passou entre o paizinho e a mãezinha.
Continuamos afortunados nas colheitas. O olival, mesmo velho, deu novamente uma safra extraordinária, ainda maior que a do ano passado, o que a todos levou a perguntar o que seria se se tratassem de oliveiras novas. E tudo o mais se excedeu quanto ao que poderíamos esperar o que, no caso da cortiça extraída, nos permitiu saldar a dívida contraída para com o José Pedro por causa das habitações. Falta apenas a dos silos e da represa que o depósito de água e o resto já estamos a pagar com os dividendos apurados pela cooperativa. O Raul e o Rui voltaram a resmungar face à distribuição de réditos, mas permanece a equitatividade nos benefícios. Quanto a mim é assim que deve ser.
Lá fora está um vendaval terrível.
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