segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

REAL... IRREAL... SURREAL... (120)

Gitano, Nonell, 1901
Óleo sobre Tela, 73x61cm
O MUDO

Nascera cedo demais para ser noite mas já muito tarde para ser ainda de dia. Contaram-lhe que as primeiras palavras da sua mãe tinham sido: «Era capaz de ter já outro» e isso tanto poderia ser bom como mau sinal. Ainda miúdo, escaparam-se-lhe as palavras todas com um susto que apanhou por causa de um cão que, na verdade, não lhe chegou a fazer mal, mas que era enorme e negro e lhe aparecera de repente e sem aviso. 

Já homem, muitas vezes, era apenas o “Mudo” e, com o tempo, tinha encontrado uma forma astuciosa de usar a seu favor a pena das pessoas que lamentavam muito mais do que ele próprio o facto de não conseguir falar. 
Era mudo, mas não era surdo. Desenrascava-se bem com os gestos e sabia perfeitamente como chegar onde queria. O tempo que seria de falar, usava-o para pensar e observar outras vidas e assim fora desenhando a sua, de forma irrepreensível. Tudo estava perfeitamente alinhado e medido para cada um dos seus dias. 
Naquela manhã, ainda cedo, ia ver o lixo e procurar uma qualquer coisa de valor no contentor verde, perto do cemitério do bairro. Mais difícil do que permanecer pendurado de forma perfeita entre a parte de dentro e a parte de fora do contentor, era conseguir encontrar alguma coisa que valesse o esforço. O valor das coisas, ele achava-o conforme o uso que lhes atribuía e de tal forma tinha aprimorado as suas recolhas que nem o mais pequeno músculo de seu corpo se moveu quando, saída a direito do contentor verde, a sua mão lhe mostrou um saco cheio de notas. Sorriu ligeiramente e colocou-o de parte, como fazia sempre. Chegaram-lhe às mãos outras coisas que foi ignorando, entre as quais um relógio de parede, uma boneca de pano, um bebé e um chapéu de senhora.
O “Mudo” olhou o tempo e cumpriu-o, respeitando o costume de ali passar trinta minutos todas as segundas feiras. Passado esse tempo, recolheu o saco das notas e saiu. Passou a porta do cemitério, virou à direita, depois à esquerda e chegou a uma casa amarela. Empurrou a porta, entrou e dirigiu-se devagar ao cofre grande que dava por mobília junto a um colchão atirado a um canto de uma vida passada fora dali. Abriu-o e colocou lá o saco das notas. Atribuiu-lhe um número e deixou-o à espera. Sorriu ligeiramente, como fazia sempre.

Tomou banho, vestiu-se e saiu. 

Era um homem bonito e, às vezes, muito bem vestido. Chamava-se Nuno. Ouvia perfeitamente, embora não falasse. E tinha encontrado uma forma astuciosa de usar a seu favor a pena das pessoas que lamentavam muito mais do que ele próprio o facto de não conseguir falar.


Maria Teresa Bondoso

Sem comentários: