domingo, 24 de maio de 2015



MIRADOURO 19 / 2015

(esta rubrica não respeita as regras do acordo ortográfico)


ACRESCENTEMO-NOS

Quando daqui por uns anos, quando os historiadores, sociólogos, antropólogos, politólogos e outros estudiosos se forem debruçar sobre este período que agora vivemos, ficarão decerto estupefactos com o nível de destruição conseguido em tão pouco tempo.
Destruição manifesta numa fractura social profunda que compromete qualquer contrato social indispensável para a estruturação de qualquer sociedade em bases dignas. As causas derivam da luta entre os dois grandes campos que constituem a sociedade em si: o trabalho e o capital. É evidente que dentro de cada um destes grandes campos haverá inúmeros grupos e grupinhos mas, apenas para simplificar, poderemos resumir assim o ângulo de observação para o que queremos dizer.
Tal separação esclarece quaisquer dúvidas relativamente à chamada luta de classes. É evidente que existe, continua e está bem viva como permanentemente podemos sentir e constatar.
Posto isto, não é para queixas que falamos do assunto. Os campos estão definidos e, como em qualquer luta, uns vão ganhando e os outros perdendo. Quem ganha exerce o “poder” da forma que melhor serve os seus interesses instrumentalizando os outros para os servirem. O que é paradoxal é que, tendo em conta a dimensão dos “exércitos”, sejam os que são menos, muito menos, que seguem vencendo sobre os que são mais, imensamente mais, e que continuam perdendo. Chegados aqui, evidencia-se imediatamente a realidade: tal só é possível porque os que são mais, imensamente mais, estão divididos.
Portanto, mais do que queixas importa alterar esta realidade que está na base do problema e trabalhar na construção da união. Não precisamos pensar tudo igual pois que tal não será possível nem sequer, porventura, desejável, mas precisamos secundarizar diferenças em prol do que é essencial.
Trabalho, Educação, Saúde, Justiça Social, Liberdade.
Agostinho da Silva falava dos três esses: Sustento, Saúde, Sabedoria. Creio que falamos da mesma situação e dos mesmos problemas.

Não é fácil? Concerteza que não e por isso mesmo é preciso arregaçar as mangas e começar a construir. Porque o tempo não pára mesmo que nós decidamos ficar parados no tempo.


(Lisboa. Num 1º de Maio. Foto de Edgar Cantante)

***

Para além dos equilíbrios no que é civilizacional e colectivo, há o individual que se soma e cria o outro. É por aí que se começa a construção e só cada um saberá do que mais necessita, que ingredientes lhe darão maior estabilidade. Por mim, frequentemente e creio que talvez desde sempre, encontro-o na Natureza. É ela que me ensina, permite a paz e garante energia para prosseguir. E prosseguir é inevitável já que desistir não podemos.

*

Temperatura amena e logo o campo a estender-se lânguido num torpor de preguiça. Não é preciso verbalizar para que a troca se dê. Sabendo ao que vamos a Natureza aceita e retribui.
A ribeira deslisa de mansinho, sem ruído, no cumprimento de missão ao encontro do seu destino. Artéria da Terra, corrente de vida.
Quanto mais nos afastamos das vozes que humanamente nos desconsideram afirmando desamor próprio de quem se perdeu de si próprio e tarda em encontrar o caminho de volta, melhor o silêncio reverbera no tambor da alma. E ela, de novo recupera o conforto langoroso do deleite.
Povoam-se, então, de afectos os espaços, preenchendo o vazio cerrado do olhar com lampejos de cor, ritmo e fantasia. Tudo se transforma em apaziguamento que compõe novos sons que entre si se harmonizam, integram e se completam em sinfonia sentimental.
Se as árvores nos acolhem em sombra e sossego e as aves nos desafiam nos trinados do seu canto emoldurando de imagens o momento, como recusar o convite das águas para com elas ir peregrinando o futuro? Não se recusa, vai-se pois já nos pesava a solidão.
Indo com as águas, sulcando-as, mergulhando e com elas nos fundindo, seguimos olhando. Margens que aconchegam sem abafar e uma outra música nasce e eleva-se.
Já se silenciaram as vozes iradas que solicitavam interlocução e percebe-se que este tempo é outro porque a dimensão é diferente. As coordenadas que a balizam alteraram-se. E sendo ainda nós na mesma e outra vez, ao alterarem-se as circunstâncias acedemos a outra esfera do sentir. Uma esfera mais desperta e receptiva. E é nessa nova ordem que sente e se pensa e disso faz registo.
A metamorfose da personalidade não é definitiva ou irreversível mas, declara-se possível e alternativa ao revelar-se. Percepciona-se assim a possibilidade de escolher. A possibilidade de mudar o registo e aceder a outras vozes e a outros lugares. 


Manuel João Croca


(A Ribeira da Seda em Cabeção. Foto de Joaquim Raminhos)

Sem comentários: