MIRADOURO 19 / 2015
(esta rubrica não respeita as regras do acordo ortográfico)
ACRESCENTEMO-NOS
Quando
daqui por uns anos, quando os historiadores, sociólogos, antropólogos,
politólogos e outros estudiosos se forem debruçar sobre este período que agora
vivemos, ficarão decerto estupefactos com o nível de destruição conseguido em tão
pouco tempo.
Destruição
manifesta numa fractura social profunda que compromete qualquer contrato social
indispensável para a estruturação de qualquer sociedade em bases dignas. As
causas derivam da luta entre os dois grandes campos que constituem a sociedade
em si: o trabalho e o capital. É evidente que dentro de cada um destes grandes
campos haverá inúmeros grupos e grupinhos mas, apenas para simplificar,
poderemos resumir assim o ângulo de observação para o que queremos dizer.
Tal
separação esclarece quaisquer dúvidas relativamente à chamada luta de classes.
É evidente que existe, continua e está bem viva como permanentemente podemos
sentir e constatar.
Posto
isto, não é para queixas que falamos do assunto. Os campos estão definidos e,
como em qualquer luta, uns vão ganhando e os outros perdendo. Quem ganha exerce
o “poder” da forma que melhor serve os seus interesses instrumentalizando os
outros para os servirem. O que é paradoxal é que, tendo em conta a dimensão dos
“exércitos”, sejam os que são menos, muito menos, que seguem vencendo sobre os
que são mais, imensamente mais, e que continuam perdendo. Chegados aqui,
evidencia-se imediatamente a realidade: tal só é possível porque os que são
mais, imensamente mais, estão divididos.
Portanto,
mais do que queixas importa alterar esta realidade que está na base do problema
e trabalhar na construção da união. Não precisamos pensar tudo igual pois que
tal não será possível nem sequer, porventura, desejável, mas precisamos
secundarizar diferenças em prol do que é essencial.
Trabalho,
Educação, Saúde, Justiça Social, Liberdade.
Agostinho
da Silva falava dos três esses: Sustento, Saúde, Sabedoria. Creio que falamos
da mesma situação e dos mesmos problemas.
Não
é fácil? Concerteza que não e por isso mesmo é preciso arregaçar as mangas e
começar a construir. Porque o tempo não pára mesmo que nós decidamos ficar
parados no tempo.
(Lisboa. Num 1º de Maio. Foto de Edgar Cantante)
***
Para
além dos equilíbrios no que é civilizacional e colectivo, há o individual que
se soma e cria o outro. É por aí que se começa a construção e só cada um saberá
do que mais necessita, que ingredientes lhe darão maior estabilidade. Por mim,
frequentemente e creio que talvez desde sempre, encontro-o na Natureza. É ela
que me ensina, permite a paz e garante energia para prosseguir. E prosseguir é
inevitável já que desistir não podemos.
*
Temperatura
amena e logo o campo a estender-se lânguido num torpor de preguiça. Não é
preciso verbalizar para que a troca se dê. Sabendo ao que vamos a Natureza
aceita e retribui.
A
ribeira deslisa de mansinho, sem ruído, no cumprimento de missão ao encontro do
seu destino. Artéria da Terra, corrente de vida.
Quanto
mais nos afastamos das vozes que humanamente nos desconsideram afirmando
desamor próprio de quem se perdeu de si próprio e tarda em encontrar o caminho
de volta, melhor o silêncio reverbera no tambor da alma. E ela, de novo
recupera o conforto langoroso do deleite.
Povoam-se,
então, de afectos os espaços, preenchendo o vazio cerrado do olhar com lampejos
de cor, ritmo e fantasia. Tudo se transforma em apaziguamento que compõe novos
sons que entre si se harmonizam, integram e se completam em sinfonia
sentimental.
Se
as árvores nos acolhem em sombra e sossego e as aves nos desafiam nos trinados
do seu canto emoldurando de imagens o momento, como recusar o convite das águas
para com elas ir peregrinando o futuro? Não se recusa, vai-se pois já nos
pesava a solidão.
Indo
com as águas, sulcando-as, mergulhando e com elas nos fundindo, seguimos
olhando. Margens que aconchegam sem abafar e uma outra música nasce e eleva-se.
Já
se silenciaram as vozes iradas que solicitavam interlocução e percebe-se que
este tempo é outro porque a dimensão é diferente. As coordenadas que a balizam alteraram-se.
E sendo ainda nós na mesma e outra vez, ao alterarem-se as circunstâncias
acedemos a outra esfera do sentir. Uma esfera mais desperta e receptiva. E é
nessa nova ordem que sente e se pensa e disso faz registo.
A
metamorfose da personalidade não é definitiva ou irreversível mas, declara-se
possível e alternativa ao revelar-se. Percepciona-se assim a possibilidade de
escolher. A possibilidade de mudar o registo e aceder a outras vozes e a outros
lugares.
Manuel João Croca
(A Ribeira da Seda em Cabeção. Foto de Joaquim Raminhos)
Sem comentários:
Enviar um comentário