Diz-se que as civilizações afloraram com a prática da
agricultura, assentando basicamente em três cereais destinados à alimentação
humana: o trigo na Europa, o arroz na Ásia e o milho na América. Tal afirmação
é, de maneira geral, correta, mas não inteiramente verdadeira para todos os
países. Os russos, por exemplo, fizeram do centeio e do trigo-sarraceno a base
do seu sustento.
Respiguei esta curiosa nota do livro “Ethnobotany of
Buckwheat”, adquirido em Seoul (Coreia do Sul), em 2004. Embora a livraria
fosse de grande dimensão, foi o único volume de botânica que encontrei, sem ser
em coreano, idioma que ainda não domino. Avidamente, comprei-o com o fito de
alargar conhecimentos e enriquecer a minha já vasta biblioteca dedicada ao
reino vegetal. A decisão foi acertada porque a citada obra, da iniciativa do
investigador Cheol Ho Park, é um precioso tratado sobre a importância, a nível
mundial, do “buckwheat” (trigo-sarraceno, em inglês), valiosa planta quase
desconhecida entre nós. O livro integra monografias de académicos da China,
Japão, Coreia, Butão, Tailândia, Rússia, Ucrânia, Polónia, Chéquia, Eslovénia e
de outros países europeus. Eles descrevem, com minúcia, a utilização do
trigo-sarraceno nos seus respetivos países, abordando não só aspetos
alimentares mas também medicinais, históricos e etnográficos. Uma verdadeira
preciosidade!
Depois de ler o livro, tenho perguntado em várias regiões do
nosso País, se alguém se lembra do cultivo presente ou passado desta curiosa
planta. Até ao momento, não consegui detetar quaisquer vestígios, o que me
deixa deveras admirado e intrigado.
Há tempos verifiquei, algures em Lisboa, que num supermercado
russo vendiam trigo-sarraceno a granel. Comprei 2 kg e tentei semear alguns
grãos. A tentativa foi gorada porque provavelmente tinham-lhes extraído a
cutícula exterior e eles ficaram incapazes de germinar. Espero bem que esta
croniqueta possa atrair sabedores da nossa praça para me ajudarem numa futura
sementeira.
O trigo-sarraceno, cuja designação científica é Fagopyrum esculentum, não é um cereal,
nem sequer pertence ao grupo das gramíneas, contrariamente ao que o seu nome
parece indicar. Integra-se na família das Polygonaceae,
como as azedas e as labaças, e tem ciclo anual. Pode atingir 70 cm de altura, possui
folhas sagitadas e flores agrupadas, brancas ou rosadas. As sementes são
aquénios com três arestas (triangulares) de cor acastanhada. Segundo consta não
é exigente quanto a solos, dando-se bem em terrenos pobres e ácidos. O único
problema é a colheita mecanizada porque as sementes não maturam todas ao mesmo
tempo. Pensa-se que é originário da Sibéria e da Manchúria, sendo a Rússia e a
China os seus principais produtores.
A proteína dos grãos do trigo-sarraceno contém praticamente
todos os aminoácidos essenciais, com destaque para a lisina, que raramente se encontra nos vegetais. O trigo-sarraceno constitui,
portanto, um alimento muito energético e nutritivo. É rico em fibras e
antioxidantes, cálcio, magnésio, fósforo, potássio, selénio, zinco, vitamina
PP, vitamina E, vitaminas do complexo B e um flavonóide chamado rutina que é adequado para deter a
fragilidade e permeabilidade excessiva dos vasos capilares. Não contendo glúten,
torna-se um alimento ideal para os celíacos. Possui ácido oleico, linoleico e
palmítico que são importantes para controlar o colesterol e os problemas
cardiovasculares. Por ter muita fibra provoca a saciedade e é, por isso,
aconselhável nas dietas de emagrecimento.
A farinha do trigo-sarraceno dá para confecionar pães,
bolachas, pastéis, esparguetes, polentas, crepes e outras iguarias muito
apreciadas nos países orientais. É famosa a massa japonesa denominada soba. Os rebentos jovens são
comestíveis. Os grãos podem ser utilizados para fazer pipocas.
As flores são melíferas e de alto valor medicinal. Com elas
se faz uma infusão anti-inflamatória, sendo excelente para hemorragias, varizes
e outros problemas circulatórios.
Os textos do livro etnobotânico, acima mencionado, apresentam
percursos fascinantes dos recursos alimentares baseados no trigo-sarraceno ao
longo da História em diversas regiões, contendo também várias receitas
tradicionais de cada país. Ele é considerado o motor energético que debela
fomes, fomenta conhecimentos e proporciona, a baixo custo, vigor e saúde à
Humanidade.
Por que será que um vegetal tão prestigiado em avantajada
parte do mundo não se encontra aqui cultivado e é escassamente utilizado em
Portugal? Fica escarrapachada a pergunta para provocar reflexão e incentivar
diálogos suscetíveis de enriquecer esta breve croniqueta.
Miguel Boieiro
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