quarta-feira, 29 de junho de 2016

Trigo-sarraceno


Diz-se que as civilizações afloraram com a prática da agricultura, assentando basicamente em três cereais destinados à alimentação humana: o trigo na Europa, o arroz na Ásia e o milho na América. Tal afirmação é, de maneira geral, correta, mas não inteiramente verdadeira para todos os países. Os russos, por exemplo, fizeram do centeio e do trigo-sarraceno a base do seu sustento.

Respiguei esta curiosa nota do livro “Ethnobotany of Buckwheat”, adquirido em Seoul (Coreia do Sul), em 2004. Embora a livraria fosse de grande dimensão, foi o único volume de botânica que encontrei, sem ser em coreano, idioma que ainda não domino. Avidamente, comprei-o com o fito de alargar conhecimentos e enriquecer a minha já vasta biblioteca dedicada ao reino vegetal. A decisão foi acertada porque a citada obra, da iniciativa do investigador Cheol Ho Park, é um precioso tratado sobre a importância, a nível mundial, do “buckwheat” (trigo-sarraceno, em inglês), valiosa planta quase desconhecida entre nós. O livro integra monografias de académicos da China, Japão, Coreia, Butão, Tailândia, Rússia, Ucrânia, Polónia, Chéquia, Eslovénia e de outros países europeus. Eles descrevem, com minúcia, a utilização do trigo-sarraceno nos seus respetivos países, abordando não só aspetos alimentares mas também medicinais, históricos e etnográficos. Uma verdadeira preciosidade!

Depois de ler o livro, tenho perguntado em várias regiões do nosso País, se alguém se lembra do cultivo presente ou passado desta curiosa planta. Até ao momento, não consegui detetar quaisquer vestígios, o que me deixa deveras admirado e intrigado.

Há tempos verifiquei, algures em Lisboa, que num supermercado russo vendiam trigo-sarraceno a granel. Comprei 2 kg e tentei semear alguns grãos. A tentativa foi gorada porque provavelmente tinham-lhes extraído a cutícula exterior e eles ficaram incapazes de germinar. Espero bem que esta croniqueta possa atrair sabedores da nossa praça para me ajudarem numa futura sementeira.

O trigo-sarraceno, cuja designação científica é Fagopyrum esculentum, não é um cereal, nem sequer pertence ao grupo das gramíneas, contrariamente ao que o seu nome parece indicar. Integra-se na família das Polygonaceae, como as azedas e as labaças, e tem ciclo anual. Pode atingir 70 cm de altura, possui folhas sagitadas e flores agrupadas, brancas ou rosadas. As sementes são aquénios com três arestas (triangulares) de cor acastanhada. Segundo consta não é exigente quanto a solos, dando-se bem em terrenos pobres e ácidos. O único problema é a colheita mecanizada porque as sementes não maturam todas ao mesmo tempo. Pensa-se que é originário da Sibéria e da Manchúria, sendo a Rússia e a China os seus principais produtores.

A proteína dos grãos do trigo-sarraceno contém praticamente todos os aminoácidos essenciais, com destaque para a lisina, que raramente se encontra nos vegetais. O trigo-sarraceno constitui, portanto, um alimento muito energético e nutritivo. É rico em fibras e antioxidantes, cálcio, magnésio, fósforo, potássio, selénio, zinco, vitamina PP, vitamina E, vitaminas do complexo B e um flavonóide chamado rutina que é adequado para deter a fragilidade e permeabilidade excessiva dos vasos capilares. Não contendo glúten, torna-se um alimento ideal para os celíacos. Possui ácido oleico, linoleico e palmítico que são importantes para controlar o colesterol e os problemas cardiovasculares. Por ter muita fibra provoca a saciedade e é, por isso, aconselhável nas dietas de emagrecimento.

A farinha do trigo-sarraceno dá para confecionar pães, bolachas, pastéis, esparguetes, polentas, crepes e outras iguarias muito apreciadas nos países orientais. É famosa a massa japonesa denominada soba. Os rebentos jovens são comestíveis. Os grãos podem ser utilizados para fazer pipocas.

As flores são melíferas e de alto valor medicinal. Com elas se faz uma infusão anti-inflamatória, sendo excelente para hemorragias, varizes e outros problemas circulatórios.

Os textos do livro etnobotânico, acima mencionado, apresentam percursos fascinantes dos recursos alimentares baseados no trigo-sarraceno ao longo da História em diversas regiões, contendo também várias receitas tradicionais de cada país. Ele é considerado o motor energético que debela fomes, fomenta conhecimentos e proporciona, a baixo custo, vigor e saúde à Humanidade.

Por que será que um vegetal tão prestigiado em avantajada parte do mundo não se encontra aqui cultivado e é escassamente utilizado em Portugal? Fica escarrapachada a pergunta para provocar reflexão e incentivar diálogos suscetíveis de enriquecer esta breve croniqueta.



Miguel Boieiro

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