sexta-feira, 15 de julho de 2016

Pela Sibéria espanhola


75º Congresso Espanhol de Esperanto

Herrera del Duque
Mais uma vez o Esperanto constituiu o motivo próximo que nos permitiu viajar, conhecer, conviver e aprender … aprender sempre.
Provavelmente, a maior parte dos leitores jamais ouviu falar de Herrera del Duque, escasso povoado perdido na Sibéria. Atenção que nos estamos referindo a uma comarca sita na Extremadura Espanhola, no extremo nordeste da Província de Badajoz. É a região menos povoada do país e daí talvez, a origem do nome por similitude, mais psicológica do que física, com a extensíssima Sibéria Russa. A pequena cidade que terá no máximo uns 4 mil habitantes é, no entanto, dotada de tudo o que é necessário para se poder considerar uma povoação com boa qualidade de vida: estabelecimentos comerciais, escolas, centro de saúde, hotéis (ou hostales), palácio da cultura, tranquilidade q.b. e gente simpática e acolhedora. Em nossa modesta opinião, andou bem a Federação Espanhola de Esperanto ao escolher este local para a realização do seu 75º congresso. Foi uma forma inteligente de divulgar uma região turisticamente pouco conhecida mas cheia de surpreendentes encantos.

O Congresso
O magnífico Palácio da Cultura, muito confortável e espaçoso, acolheu os 150 participantes oriundos de toda a Espanha mas também da Alemanha, Bélgica, Brasil, Congo, Croácia, EUA, França, Holanda, Lituânia, Luxemburgo, Polónia, Roménia, Rússia, Senegal, Sérvia … e seis de Portugal. De 30 de junho a 4 de julho foi um desfilar incessante de novidades e agradáveis surpresas, um banho de cultura, um convívio inesquecível onde a poesia, a música, o canto e a dança tiveram lugares privilegiados. Não foi possível, por falta de ubiquidade, estar em todos os eventos, visto que alguns aconteciam em simultâneo. Mencionemos alguns de forma breve e sucinta:
- Com grande pompa, a sessão solene de inauguração do Congresso e o seu encerramento tiveram a presença das autoridades locais e regionais que receberam (e ofereceram) prendas e elogios pelos apoios concedidos.
- Apresentação de uma edição em esperanto de “Don Quixote de la Mancha”, incluindo uma versão informática, no ano em que se comemora o IV Centenário da morte de Cervantes.
- Leitura de poemas de Jorge Camacho que foi, na altura, homenageado, e descrição de romances do profícuo esperantista russo, Mikael Bronsxtein.
- Palestra proferida pelo professor José Salguero sobre as influências recebidas pelo castelhano falado na Extremadura: leonesa a norte, andaluza a sul e portuguesa a oeste.
- Conferência sobre literatura esperantista pelo professor doutor Duncan Charters que apresentou uma brilhante argumentação, clara e concisa, sobre as vantagens do uso do idioma internacional. Pena foi que o tempo fosse insuficiente para ler e refletir sobre os vários quadros “power point” que projetou, todos de inegável interesse.
- Mesa redonda sobre a origem e o percurso da chamada “Ibera Skolo” com os escritores Jorge Camacho, Miguel Fernandez, António Valén, Javier Romero, António del Barrio e outros. Como curiosidade, destaque-se a referência elogiosa ao nosso compatriota Gonçalo Neves.
- Palestra do nosso jovem amigo do Brasil, Lucas Barbosa, sobre os idiomas tupi e guarani, a qual encantou os participantes sequiosos de curiosidades linguísticas.
- Espetáculos de grande nível apresentados no auditório do Palácio da Cultura. Destaque para as atuações de Jomo, Jxomart kaj Natasxa, Sepa kaj Asorti, orquestra ligeira de jovens locais e para a peça de teatro “la Kredito” pelos atores Georgo e Sasa.

Visita a Guadalupe
Remotamente, já tínhamos ouvido falar do santuário mariano de Guadalupe mas não suspeitávamos das ramificações portuguesas deste local medieval de culto e peregrinação. Parece que foi no século XIV que a virgem apareceu a um boieiro (guardador de bois e de vacas, entenda-se). Tal episódio encheu de vaidade este modesto escriba com o mesmo apelido que antes se convencera que a santa só aparecia a inocentes pastorinhos. Segundo apreendemos, a citada deusa tornou a surgir várias vezes pelo que o local foi consagrado com a construção do “Real Monasterio”. Para além da virgem, outras figuras ilustres vieram aqui para orar e pedir favores. O nosso rei D. Sebastião também aqui esteve antes da desgraçada batalha de Alcácer-Quibir, mas o pedido não foi aceite por eventual burocracia divina e foi o desastre que se soube. Isabel, a Católica, visitava o santuário, amiudadas vezes (consta-se que foram 26) e parece que resultou. No átrio da entrada principal lá está o seu busto e a designação “Monumento de la Hispanidad”.
Nos claustros, único local em que se pode tirar fotografias, encontram-se diversas pinturas das quais se destaca a da batalha do Salado em que o rei D. Afonso V, o Africano, veio dar uma ajuda preciosa ao rei castelhano e, juntos, derrotaram o exército sarraceno. A presença portuguesa está bem patente numa das capelas que ostenta vários brasões lusos, no túmulo da Duquesa de Aveiro, Dona Maria de Guadalupe de Lencastre, nascida em Azeitão no ano de 1630, na pintura dedicada a Fernando de Pinha, cavaleiro e cronista da corte do rei de Portugal ao qual a virgem apareceu por três vezes (que sorte!).
Depois de percorrermos os espaços museológicos dedicados aos paramentos religiosos bordados a ouro e prata, casulas e quejandas, os enormes livros “miniados”, a parte das pinturas dos famosos Zubarán e el Grieco, a sacristia, os relicários, a capela de São Jerónimo, fomos almoçar a um dos restaurantes da Hospedaria del Monasterio, antiga hospedaria real, construída nos finais do século XV.
E sobre o mosteiro não se acrescenta nada mais, visto que nos folhetos e livros turísticos há informação bastante para quem queira aprofundar a temática.

Concerto do Grupo Acetre
Após o lauto almoço na Hospedaria do Mosteiro, recebemos detalhadas informações históricas de Guadalupe, que em árabe significa “rio escondido”, fornecidas pelo incansável professor de Don Benito, José Salguero. Seguiu-se uma atuação musical de Mikaelo Bronsxtejn. Voltando aos autocarros, excursionámos pelas imediações de Talarrubias e Valdecaballeros e parámos numa das muitas barragens do Guadiana. Foi no Embalse de Garcia de Sola, em cuja praia adjacente deu (a quem a isso se dispôs) tomar uma banhoca com água agradavelmente tépida. Sempre divisando planos de água, seguimos para Peloche, localidade de apenas 600 habitantes que dista 8 km de Herrera. Foi aí que tivemos uma noite memorável proporcionada pelo grupo Acetre (6 homens e três mulheres) proveniente de Olivença, a que se juntou episodicamente a famosa cantora de Herrera, Célia Romero.
Com uma excelente orquestração baseada em instrumentos tradicionais a que nem faltou o adufe e melodiosas vozes, o grupo surpreendeu-nos não só pela qualidade artística mas também porque a maior parte das canções tinham origem portuguesa. A sua atuação, que, a pedido do público, terminou com dois “encore”, durou mais de duas horas e foi fabulosa. Iniciaram com a “Senhora do Almurtão” a quem se recomendava, como diz a respetiva letra, “para virar costas a Castela e não querer ser castelhana”. Emocionaram-se os quatro portugueses presentes e vibraram os espetadores locais e visitantes que encheram o anfiteatro natural da praça principal da povoação.

A vegetação da Sibéria Estremenha
Entre os raios da roda de uma carroça disposta na horizontal em cima de uma mesa baixa, a ornamentar um dos vestíbulos do hostal, podia-se ver as plantas, já secas, típicas da região: olivo (oliveira), quejigo (carvalho-cerquinho), acacia (acácia), lentisca (lentisco), encina (azinheira), jara (esteva), madroño (medronheiro), arrijanera (aroeira), pino (pinheiro), arbulaga (tojo), romero (alecrim), tomillo (tomilho), berezo (urze), alcornoque (sobreiro), álamo negro (choupo-negro), coscoja (carrasqueiro). Eis pois a síntese da flora de influência mediterrânica que aqui existe.
Na digressão efetuada a Guadalupe as únicas plantas abundantemente floridas neste mês de julho eram os loendros, se excetuarmos, obviamente a vegetação ripícola dos ribeiros e das lagoas originadas pelos vários “embalses” do Guadiana, cuja etimologia é simplesmente “rio” em versão dupla (ana – “rio” na linguagem primitiva e guad – “rio” em árabe). As azinheiras, em povoamentos pouco densos e irregulares, constituíam a principal espécie que resistia à canícula que rondava os 40 graus. Viam-se também extensos olivais, alguns sobreiros e pinheiros mansos e bravos. Na vegetação rasteira abundavam as estevas (curiosamente são também conhecidas como jaras na região de Portalegre), os silvados ainda a querer florir, as giestas já sem flor, as milfuradas já sem flor, os catacuzes secos … Irrigados por canais ladeados por tabuas (atenção não são tábuas mas tabuas, espécies lacustres) divisavam-se arrozais e milheirais. A subir a encosta xistosa para o Mosteiro podiam-se ver alguns castanheiros e frutíferas (ameixeiras, pessegueiros, vinhas).

A viagem e a companhia
Viajar com pessoas espirituosas e inteligentes ajuda a exercitar o cérebro e a, tendencialmente, sermos como elas, inteligentes.
Apesar das altíssimas temperaturas que se fizeram sentir numa região que se diz ter 6 meses de inverno e 6 meses de inferno (alguém convencionou que o inferno seria terrivelmente quente), foi muito agradável a viagem. No regresso aproveitámos para visitar dois teatros romanos: um em Medellín e outro, obviamente em Mérida. Foram lições vivas de História, suscetíveis de agilizar compreensões sobre o evoluir da Humanidade.
Uma breve referência ao almoço do derradeiro dia no restaurante “El Mosquito”, em Medellín, numa das margens do Guadiana. Num pequeno cartaz estava descrita uma pequena e espirituosa fábula do famoso escritor castelhano, Quevedo:
 “Le dijo el mosquito a la rana: mas vale morrir en el vino que vivir en el agua”.
Ao jovem Lucas Barbosa, notável linguista apesar dos seus escassos 19 anos, que connosco conviveu ao abrigo do “Pasaporta Servo”, ao Rui Vaz Pinto, à Alexandrina Timóteo e à Manuela (minha esposa), as homenagens e agradecimentos deste cronista de meia tigela.

Julho de 2016
Miguel Boieiro

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