VAMOS LÁ CANTAR AS JANEIRAS
Bem, quero aqui registar uma observação a um subtil argumento incerto num artigo de Pacheco Pereira e que me parece ser recorrente em muitos actores dos círculos de poder político quando à conversa vem a imagem que deles o povo faz.
Referindo-se às denúncias anónimas no “processo Casa Pia” diz que se muitas delas têm por motivação a simples vingança, outras terão no “(…) ressentimento contra os políticos (…)” (1) a sua principal razão de ser.
Assim será, diremos nós, mas acrescentamos que não será por isso que nos absteremos ou que nos devamos abster de ter e apresentar os nossos pontos de vista sobre o assunto.
É que nós somos pessoas de bem e, em conformidade, não guardamos ressentimentos contra alguém. Tomamos por boa aquela velha sabedoria de não fazermos ao outro o que não gostaríamos que nos fizessem pelo que respeitamos o nosso semelhante – somos todos irmãos humanos de uma mesma espécie e, se quisermos, todos Seus filhos – sendo esse, justamente, o pressuposto da nossa relação, não nos custando pois pedir perdão quando erramos e fazemos mal a alguém, do mesmo modo que retribuímos de bom ânimo a acção oposta.
Quando falamos da mediocridade dos políticos, do clientelismo, da corrupção e do oportunismo e, por isso, protestamos e esticamos o dedo directamente às feridas, verificamos que são mentes pragmáticas as daqueles que mais falam de ressentimento e para estes, o género de discurso que é o nosso mais não é que uma relíquia museológica, o que não tem mal algum, protestamos na mesma e subimos o tom dos protestos, até que se transformem numa varredela naqueles que nos sugam o sangue e o tutano e o dinheirinho dos impostos.
Ora sem a devida ponderação, pois não negaremos que haja ressentimento em algumas vozes críticas, direi que o reparo em causa pode ter efeitos perniciosos no que nos pode remeter para o silêncio.
Foi Jomos Kenyata que um dia disse, numa conversa com os fazendeiros brancos das férteis highlands do Quénia, em vésperas da independência daquela então colónia britânica, “-All we want it’s the power.”
Pois nós não, nós não queremos o poder, sequer sentimos o apelo para tal, mas queremos controlá-lo, pretendemos certificarmo-nos de que ele é exercido no interesse das populações e exigimos dispor dos mecanismos para o forçar a tanto ou, no mínimo, para o impedir de ir contra isso. Julgamos que estes são direitos democráticos que nos assistem.
Se isto se trata de ressentimento…
Ontem, ao fim da tarde, a Luísa desmontou o presépio e a árvore de natal.
O pai arrumou a tralha no sótão e levou o pinheiro para o lixo.
Em Marrocos foi libertado um jornalista que tinha sido preso por críticas ao Rei.
E hoje os alunos fizeram diversos exercícios e fichas sobre as matérias aprendidas.
A Matilde trouxe a informação sobre a ida ao teatro no próximo dia onze de Fevereiro e eu assinei a respectiva autorização.
Esta tarde, antes da saída para a ginástica, lá escutei, uma vez mais, um trio encantador que parece estar a ensaiar as janeiras.
A Lua brilha, feita meloa, no lado de lá do vidro da janela do escritório.
Alhos Vedros
12/01/2004
NOTA
(1) Pacheco Pereira, José, ANATOMIA DE UMA FUGA NO PROCESSO CASA PIA, p. 5
CITAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
Pacheco Pereira, José, ANATOMIA DE UMA FUGA NO PROCESSO CASA PIA, In “Público”, nº. 5038, de 08/12/2003
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