Agostinho da Silva, parlamento...
1989
Fotografia de Eduardo Martins
Colóquio "Agostinho da Silva: Filosofia e Poesia"
Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa, 2 de julho de 2019
Parte do título desta comunicação, refere-se a um livrinho intitulado "As Últimas Cartas do Agostinho...", por mim organizado e editado no Círculo de
Animação Cultural de Alhos Vedros, em outubro de 1995, do qual foram feitos 50
exemplares, e que se constitui por um conjunto de 12 cartas enviadas por mão do Professor Agostinho da Silva a um grupo de amigos com quem estava em contacto mais
próximo, ou que se candidataram a destinatários de tão digníssima epístola.
O repto é endereçado pelo Professor em Carta subscrita na Lua
Cheia de janeiro, 8/1/1993, onde diz: “Queridos Amigos, O imaginário Convento
Sonho duns Irmãos Servidores me encarrega de vos comunicar que acaba de tomar
posse de tudo quanto há e me designa como
seu agente junto de vós para tudo que se refira a estas folhinhas
dactilografadas, que serão sempre mensagem do Convento, assinadas ou não (…)
São enviadas a tôdas as pessoas que já declararam por palavras ou feitos que
desejam recebê-las ou o declarem daqui por diante.”
A primeira carta do conjunto que constitui a brochura, foi
enviada no mês de dezembro de 1992, e a última em setembro de 1993, o que
significa dizer que este conjunto de cartas foi expedido, praticamente, ao longo
do último ano de vida da sua vida, pois que em meados de outubro, mês seguinte
ao da última destas cartas, a súbita degradação física que o acometeu haveria
de o guindar ao seu falecimento que, como sabemos, ocorreu no dia 3 de Abril de
1994, um triste mas revelador Domingo de Páscoa, dia de ressurreição.
Fulcral é a primeira destas 12 cartas e, logo aí, se diz
claramente ao que se vem. Fixemo-nos nas palavras de Agostinho:
“Resumo da ideologia do Povo Português nos séculos XIII e
XIV, transmitida ao Brasil por seus adeptos que ali se foram acolher, passada
ao futuro e, por ele, à criativa Eternidade para os que emigrem para o mais íntimo de si próprios e aí se firmem
para sempre.
Missão de Portugal: Sacralizar o Universo, tornando Divina a
Vida e Deus real.
Meios: Desenvolvimento dos Povos pela inteira aplicação da
Ciência e da Técnica, inclusive nos sectores da Economia, da Política, da
Administração Pública e da Filosofia. Conversão da pessoa à adoração da Vida.
Características do que houver no Sagrado: Criança como a
melhor manifestação da poesia pura e como inspiradora e suporte, e incitadora a
ser criança de todos os que existam. O gratuito da vida. A plena liberdade de todo
o ser.”
Eis uma síntese perfeita do período da história portuguesa
que Agostinha da Silva mais admira, e a que no dizer das suas ideias sempre
regressa, resumo da ideologia que, então, orientava o país, com epicentro no
reinado de D. Dinis (“o plantador das naus a haver”, no dizer de Fernando
Pessoa). Agostinho complementaria assim: “Acho a época de D. Dinis perfeita (…)
A Rainha Santa e o rei-poeta. Calcule, o casamento de um poeta e de uma santa,
que coisa extraordinária! D. Dinis com os Estudos Gerais. Depois é que
transformaram aquilo em universidade, que veio a dar no que deu. Estudos
Gerais, estudo geral para toda a gente e geral para todos os estudos, que outra
coisa quereríamos para Portugal senão isso? Toda a educação portuguesa devia
ser essa. Voltar aos Estudos Gerais e ao D. Dinis.”
Então, seguindo o nosso autor, haverá que disciplinar o
processo de produção e de distribuição dos bens, de forma a chegar-se a uma
economia comunitária que se inspire naquela que existiu, para construir uma
economia mais humana, pois é esse o exemplo que nos dá a organização económica
medieval em Portugal. O que a Europa trouxe para Portugal foi uma economia
capitalista, uma economia de luta. Ora, muito melhor é uma economia de
convivência e de cooperação comunitária, de autonomia municipalista, com uma
distribuição mais equilibrada das riquezas, como era a que caracterizava a
economia portuguesa da Idade Média, antes desta importação europeia. Tipo de
economia que foi liquidada por essa outra importada.
Discorrendo sobre a organização política que se deveria
seguir, em carta de Lua Nova de 22 de Janeiro, 1993, sustenta-se que deve esse
tal “imaginário Convento Sonho duns Irmãos Servidores”, deveria assumir dois compromissos:
primeiro, o de que Portugal, inspirando-se nesses princípios da ideologia
medieval portuguesa, se deveria comprometer na educação da Europa
Transpirenaica; segundo, de que viesse a
constituir-se uma Confederação, ou coisa parecida, de todas as Nações de Língua
Portuguesa, sendo um dia Portugal seu representante na Europa Comunitária e,
citando, “…que fique nítido que o ideal
de futuro é o da cultura do Povo Português nos séculos XIII e XIV.”
Neste sentido, relembre-se, a importância que tem, para si, o
culto popular do Espírito Santo que ganha uma dimensão fundamental em Portugal
neste período, com o ativismo espiritual da Rainha Isabel de Aragão. Culto
Popular do Espírito Santo, ou Culto do Divino, que chega a Agostinho da Silva
pela influência direta de Jaime Cortesão, e também de António Quadros, embora
na forma de um reencontro, pois que, como nos diz, não exclui a hipótese de que
ele próprio tenha “andado no tal século XIII envolto com os outros na Festa do
dia de Pentecostes em que sonhava o povo português sentir-se já num Paraíso a
vir…”.
Eis os três pontos essenciais da festa do Espírito Santo:
1. A coroação de um menino como imperador do mundo. A
representação na Terra do Espírito Santo é a imaginação da criança. Ou, como
diz Agostinho, também pode ser, inspirando-nos no presépio de Francisco de
Assis, o menino representando o renascimento de Cristo: “é como se fosse Cristo
renascendo.”
2. Através da imaginação da criança se chegará à libertação
dos presos e ao fim de todas as prisões, internas e externas. Ou seja, à
consagração do grande ideal de liberdade e de libertação espiritual que
Agostinho sempre releva.
3. O banquete gratuito, como representação simbólica de uma
livre repartição de recursos alimentares entre todos, de modo a que ninguém
falte que comer.
No dizer do Professor, “É como se os portugueses tivessem
dentro deles sem se expressar, inconscientemente, já essa ideia fundamental de
ter que se caminhar para o futuro, mas para um futuro que era ao mesmo tempo do
passado, porque, se o espírito santo que viria a reinar numa terceira Idade era
coetânea do Pai e do Filho, logo pertencia a um passado de toda a Eternidade.
(…) ou seja, uma festa em que os portugueses declaram como vai ser o tal mundo
do Espírito Santo.”
E seguindo a carta de Lua Cheia de 8 de Março de 1993, “Pôsto
isto assim, e acreditando num universo sacralizável ou de que se descobriria o
Sagrado, na possibilidade de uma vida gratuita, numa defesa e desenvolvimento
contínuos do Poeta que nasce em cada Criança e numa desejável inteira liberdade
de cada ser, o melhor é não o andarmos
pregando, mas o pormos em prática.”
Continuando, em carta no Crescente de Abril, “como os da
Festa foram todos expulsos, para a Guiné ou para o Brasil, aí pelos séculos XV
e XVI, pensámos que já era tempo de regresso (…) Nada será de uma dia para o
outro, mas iremos à nossa tarefa com toda a calma, experimentando, poucos como
somos, tornarmo-nos um tanto contagiosos e reaver o tesouro que se perdeu, mas
de que ainda há lembrança nos Açores e muita prática no Brasil (…) Porque
afinal tudo isto é só uma tentativa de alicerce de império: Império de Servir.”
E por se falar em “Império de Servir”, sobre as ideias
quinto-imperiais, relembremos que Agostinho da Silva vê uma perfeita linha de
continuidade entre a cultura medieval portuguesa, e Camões, Vieira e Pessoa,
seja no “culto do espírito santo”, na “ilha dos amores” ou “5º império”, embora
pesem os diferentes tempos em que existiram e a inevitabilidade de se
relacionarem com as ideias do seu respetivo tempo. Afinal, em suma, dizer que Camões,
Vieira e Pessoa são heterónimos do desejo de que haja no Mundo alguma coisa que
seja a realização plena do homem.
Assim, o Império enaltecido na “Ilha dos Amores” dos
Lusíadas, preconizado por Vieira e por Pessoa, será um império verdadeiramente
“católico”, quer dizer, de acordo com a etimologia da palavra, universal, e
caracteriza-se pelo advento da Idade do Espírito Santo, o consolador da
esperança humana, tal como profetizara o evangelista S. João e idealizou o
abade italiano Joaquim di Fiore.
Este Deus consolador que se refere é aquele que Cristo
revela, a quem Agostinho reza na igreja, mas que não é o Deus das igrejas, antes
o Deus que as une a todas e paira acima de todas. É um Deus que podemos chegar
se atingida a verdade. Um Deus íntegro, total, paradoxal, tudo e nada,
imanência e transcendência, que junta tempo e eternidade, sem separação de bem
e de mal, de homens e animais, de tudo o que existe. Um Deus que é, antes de
mais, inefável, e é silêncio, onde ciência e filosofia, “saudades disfarçadas
em raciocínio”, devem ajudar a atingir, mas não podem definir.
Às influências de Jaime Cortesão e de António Quadros, sobretudo
do primeiro, seu sogro, com quem conviveu e trabalhou no Brasil, deve juntar-se
a ideia de “luso-tropicalismo” do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre que
nesse país fez escola, base da ideia que expressa na carta de Lua Nova (face
virada ao sol), Abril de 93, sobre “o empreendimento em que pensa o Brasil duma
Comunidade de Povos de Língua Portuguesa, e seus crioulos, filhos, por seu
turno, do crioulo que o Português foi do latim, tudo afinal neto do mais vasto
Indo-Europeu.” O Brasil torna-se em Agostinho, o contemporâneo parceiro
ecuménico por excelência daquele Portugal medieval que proclamava o reino do
Paráclito, pois que à comunidade luso-brasileira deverá caber a missão de
condução desse projeto ecuménico ao mundo. Como sabemos, Agostinho da Silva é
um dos percursores da conceção de um Projeto Lusófono que junte países e
comunidades, ideia que acabou por se materializar em 1996, com a criação da
“CPLP” (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).
E continuando ainda com o que nesta carta se diz: “O que vai
haver, sem velas, excepto as desportivas, mas por aeroportos e por Faxes, é a
integração dum pensamento como o de Lao-tsu, se dele é, (…) que os há em todas
as religiões e filosofias (…) reinado da criança e sacralização dos animais e
de tudo o resto. O que temos de ter connosco é um sentido de ordem não
opressiva que impeça o caos e ondas de imaginação a saudar o que ainda não
veio, com uma China cada vez mais para o concreto, um Brasil todo virado ao
sonho, e, no meio, uma África que nos ensine a todos, já que índio enfraqueceu
por tanto século de luta.” E aqui, como se refere Lao-tsu também se poderiam
referir ideais budistas, particularmente, do budismo zen, espiritualidade que
Agostinho também enalteceu. Como sabemos o próprio Agostinho visitou o Japão em
1963 e aí conviveu entre faculdades, templos e monges budistas, e disso nos
deixou testemunho.
E para terminar, na
última carta “de Setembro de Lua Cheia, de 93”, e sendo que o forte “avc” de 17
de outubro já se avizinhava, Agostinho deixa-nos três princípios pessoais
orientadores de vida: “o de se ver livre do supérfluo, o de não confundir o
verbo amar com o verbo ter, o de prestar voto de obediência ao que for servir,
não mandar (…) Para tudo o que fordes e fizeres rogarei perfeito empenho e boa
sorte, bom vento de navegar.”
Se eu chegar a ser dum
Outro
mas de mim não me
perdendo
e esse Outro todos os
outros
que comigo estão
vivendo
não só homens mas
também
os animais e as
plantas
e os minerais ou os
ares
e as estrelas tais e
tantas
terei decerto cumprido
meu destino e com que
sorte
para gozar de uma vida
já ressurecta da
morte.
Agostinho da Silva,
Uns poemas de Agostinho, 1989
Luís Santos
2 de julho/2019
SANTOS, Luís Carlos
dos (org.) (1995) As Últimas Cartas do Agostinho… Edição do Círculo de Animação
Cultural de Alhos Vedros.
Idem (2016) Agostinho
da Silva: Filosofia e Espiritualidade, Educação e Pedagogia (td). Vila Nova de
Gaia: Euedito.