TROÇAR NÃO É BONITO
Naquele tempo o mundo estava dividido em pobres, ricos e remediados. E o mundo estava ali, era vizinho, ao fim da rua, nas casinhas térreas de telha vã e sem luz eléctrica, no outro lado da rua, na mansarda bem alimentada e segura. O mundo estava sentado, ao meu lado, nos bancos da escola, na ardósia que poupava os cadernos de papel pardo aproveitados ao mais ínfimo espaço e nas malas de cabedal com estojos de lápis e esferográficas e caixas de lápis de cor às dúzias. Andava pela rua, em correrias de bola e esconderijos, vociferando palavrões. Não era o caso de que ele não se encontrasse nos bufetes das sociedades musicais e recreativas ou deixasse de se cruzar nos passeios e nas mesas de cervejas e hilariação. Mas a todos era comum o discurso da fartura, da escassez e da suficiência sobejante. O Marçal que, segundo o Chico Armando, vivia num chalé de prata, dada a chaparia reflectora que lhe amparava o telhado e a parede ventosa da barraca, o Marçal dizia que o Júlio do café era rico por ter carro e um estabelecimento e, por sua vez, o Pedrinho da Professora Arlete que também era dona de uma padaria, considerava-se um infeliz por não ter os mesmos carros eléctricos com que um amigo brincava sobre os mosaicos de um terraço debruçado para um ajardinamento de laranjeiras.
Era assim que todos conheciam o seu lado da linha e mesmo quando algum rosnava, se a coisa estava para lá da inveja, era aceite que apenas o esforço ordeiro e vagaroso poderia proporcionar a passagem de um estádio a outro, embora sempre dentro do respeito daquele equilíbrio em que o mundo estava repartido em três partes.
Talvez por isso os miúdos aparecessem com teorias de umbigo que apelidavam de vadios os gaiatos que não brincavam em casa ou, em contrapartida, chamavam de meninos da mamã a todos aqueles que não podiam beliscar as calças vincadas e os sapatos brilhantes. Bem, olhando o jardim a partir do ar aquecido por detrás dos vidros de janelões por onde passaria um homem em pé, minha irmã e primas riam com as macaquices do Bétis e dos mariolas que se enchiam de nódoas de terra lamacenta, no entanto, ainda agora estou em crer que dificilmente ultrapassariam as gargalhadas de quem atira a moeda à foca; e mais tarde vim a saber que, apesar de cobiçadas, ai não que não eram, apesar disso, a gentileza lhes era devolvida e elas eram tidas como inúteis que jamais serviriam para dar conta da casa de um homem. Hoje sou capaz de me recordar da confusão de quem se espantava com a troça e os remoques com que muitos caçoavam dos modos e dizeres de quem não tinha de seu, tal como me chocava a chacota com que as boas maneiras eram recebidas como caganças de quem tem a mania de ser superior aos outros. E os meus olhos tanto se perdiam nas recomendações da mãezinha, como nos sorrisos descuidados de miúdas que apenas se preocupavam em passar o tempo que lhes restava antes de começarem a trabalhar. É claro que eu também mostrava os dentes com as anedotas sobre as particularidades daqueles que proferiam mal as palavras ou manifestavam desconhecer tantas das coisas que vinham nos livros. Com isto não estou a apresentar uma defesa do miúdo que era, tão fácil que é admitir a graça do empregado do bar que confundia as toilettes com as tabletes e se apressava a apontar a montra a quem pretendia lavar as mãos. Fosse como fosse, à medida que fui crescendo, cada vez mais me foram confundindo aquelas carapaças com que se pretendia a imutabilidade da ordem.
Não sei dizer se a minha vocação literária adveio das minhas preocupações ou se estas se me revelaram por efeito daquela. Certeza tenho que ambas, são, em mim, uma atitude que data do despertar da puberdade. Provavelmente surgiram independentes e coexistiram e quando me foi dado a inventar o primeiro poema, a que não terá sido estranha a influência de quem falei em outra altura, é compreensível que tenham aparecido em conjunto e a peça em causa tenha registado a preocupação com a injustiça no mundo, o tal mundo que ainda estava dividido naquele triângulo primordial. Para o caso interessa que dali brotava a minha perplexidade.
E se ela tinha seara para a foice.
Até pelo simples facto de o mundo estar ali, como vizinho.
Pois quem não sabe que as pernas crescem e se fazem corredoras? Que a alma se agiganta e a omnipresença obrigatória de um tecto se transforma numa prisão?
Ora essa, como é que uma pessoa sensata poderia proibir um rapazola saudável de fazer a pira e meia e de cabecear para golo? Era isso que os meus pais pensavam, além de partilharem a opinião que não me fazia mal nenhum conviver com as outras crianças, muito pelo contrário e sempre eu me reparti entre amizades que não permutavam umas com as outras. Devo até confessar que isso me agradava. Ai não que não me sentia bem dentro das roupas irrepreensíveis com que desfrutava os sofás do A. J. para escutar as últimas novidades dos Beatles e dos grupos que vieram depois. Então não eram uma felicidade as brincadeiras e mais tarde conversas com o António João e as irmãs, a descoberta dos movimentos sob a intermitência das lâmpadas de néon e os lanches, no fresco das latadas do quintalão. Mas era tão bom trocar impressões sobre “Os Cinco” como nadar entre uma margem e a outra do esteiro, ou jogar às escondidas entre varinos e fragatas com aqueles fatos de banho roçados e fora de moda que raramente contactavam a frescura do oceano. E se me entusiasmavam as deambulações que A. J. e os outros faziam sobre a vida de outros planetas, também me empolgavam as opiniões do Chico e do Abílio sobre o Benfica e o futebol em geral e igualmente dava como incontornáveis as aprendizagens ornitológicas que fazia, quer junto de pessoas mais velhas, quer com os meus confrades das arolas e quejandos.
Creio que tão só por cretinice eu não teria compreendido quanto a sorte sorria a uns tanto quanto se negava a outros.
No entanto, quando por vezes me deixava pensar na quietude do meu conforto, o que ouvia eram as palavras do paizinho e da mãezinha, recordando-me o respeito que devia aos outros, tal como nós, todos eles filhos de Deus e, por isso, igualmente dignos.
Portel, 7 de Maio de 1998
2 comentários:
Só por cretinice, como disse o autor de "Troçar não é Bonito", alguém não perceberia as diferenças entre as três classes em que dividiu o mundo.
O interessante é que nessa idade a inveja de alguns não dependia da classe em que estava inserido: o rico podia invejar o pobre com todas as forças, só porque o pobrezinho podia fazer coisas que estavam proibidas aos ricos e mesmo a alguns remediados...
Claro que essa inveja, pela ordem natural das coisas passará com o tempo. As excepções, são mesmo isso: excepções!
Boa análise!
Abraço,
António
Não se trata de uma análise, tão simplesmente um registo de memória. A análise, essa, em a havendo, caberá aos méritos do Leitor.
É aí que o prémio do Autor começa.
Aquele abraço, companheiro
Luís
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