O FANTASMA DE JOÃO SORUMENHO
No tempo e no espaço, a família é universal. Compreende-se. Explicam os entendidos que ela é uma resposta cultural aos mecanismos biológicos da reprodução da espécie e também por eles sabemos da variedade formal em que a mesma se realiza. No entanto, ela é isso mesmo, uma construção cultural, pelo que não reproduz, necessariamente, as relações biológicas da consanguinidade. Trata-se de uma convenção e eu estou convicto que ela existe pelo reconhecimento ou, por outras palavras, só por essa via ela ganha existencial real. Apenas quando os indivíduos se reconhecem como parentes é possível falarem numa determinada família concreta. Ora o reconhecimento não se completa apenas no acto das diversas identificações pessoais, dele igualmente faz parte a memória e, com esta, as histórias que cada grupo singulariza em relação aos outros. No momento, não é minha intenção elaborar um trabalho desse género. Tão só quero chamar a atenção para o facto de aí podermos encontrar episódios que nos bem disponham e, por exemplo, sirvam para entreter um serão de cavaqueio.
Quando eu era pequeno gostava muito de escutar as histórias das minhas tias, de as ouvir narrar as peripécias deste ou daquele ou as mais estranhas lendas de outras eras e os mais variados eventos fantásticos. Desde os feitos de um tal Jorge Cagáu, uma autêntica baleia, no dizer dos conterrâneos que, todos os anos, ia a nado, pelo menos uma vez, até à ilha do Rato, mas também passando pela sina de um rapaz que tinha ataques e se transformava num cão de verdade, a todos eu abria os tímpanos e dedicava a atenção com igual prazer e entusiasmo. Por vezes, as deste último tipo provocavam-me arrepios e, à noite, faziam-me sonhar e, no preâmbulo do sono, perscrutar no escuro a metamorfose dos meus bonecos em monstros que eu me esforçava por ver se estavam ou não em movimento. Evidentemente que tudo isso foi ultrapassado com o decorrer dos anos mas, naquelas idades, quando eu apagava a luz e o longe parecia ficar todo da mesma cor, dava-se então o aparecimento da dúvida sobre se as coisas ganhavam ou não capacidades insuspeitas e terríveis. E de todas as contarias eram as que envolviam almas penadas que mais me levavam a adormecer com a cara voltada para a porta do quarto.
Quantas não são as famílias que, no seu património, guardam passagens de encontros com o além? Pois bem, o mesmo se passa com a minha, especificamente no ramo paterno, em que existe um caso de fantasmagorias. Propriamente dito, tratou-se de uma assombração que recaiu sobre a casa do meu avô, era o meu pai menino, por volta do início da segunda guerra e que, se aos residentes nunca chegou a preocupar por causa de um cepticismo natural em face da falta de provas, ainda trouxe a vizinhança com o credo na boca por mais de duas invernias. O meu avô ria-se e até fazia humor com o racionamento da comida que o país passava à época, argumentando que assim deveria contar com mais um hóspede. Mas até a Dona Teresinha insistia que não se devia brincar com esses fenómenos e ela era crente e nada dada a matérias de superstição.
Tudo começou quando, uma noite, alguém das casas fronteiras à Igreja Matriz e laterais ao cemitério foi acordado pelos sons de pancadas cuja origem, ao fim de alguns dias de repetições e depois do acréscimo de outros sons próximos de uivos, a suspeição fez recair sobre aquele rectângulo onde os mortos repousam. A Dona Henriqueta, jurava a pés juntos que ouvira o portão a bater e que, cheia de coragem, anesgando-se atrás das cortinas, bem vira que a pesada estrutura de ferro se movia sem qualquer fonte de inércia.
Daí às visões mais extravagantes foi o tempo de um raio e nos cafés e tabernas começaram a soar desencontradas descrições ora de uma sombra da altura do campanário, ora de uma luz que deambulava sem sentido. Nas barbearias, chegou-se à conclusão que só os peitos mais abertos poderiam ter testemunhado aquilo que começava a remeter as pessoas para trás de postigos e ferrolhos cerrados.
Até que uma noite de chuva houve um casal que viu um enorme vulto branco a erguer-se do interior da última morada e dali sair em direcção ao centro do povoado. A mulher urinou-se e o homem ficou gago e só por isso não eram capazes de pormenorizarem o rumo daquele mau encontro. Mas depois aquilo repetiu-se e outros olhos confirmaram a versão, até que o povoléu pôde estabelecer que o fantasma desaparecia no terraço das traseiras da casa do meu avô.
Ao princípio ainda houve um ou outro criado de atalaia, mas como nenhum deu com o que quer que fosse, rapidamente a família remeteu o assunto para o domínio da crendice popular e despreocupou-se com aquilo que designava muito simplesmente por um disparate. Diz o meu pai que apenas ele, o tio João e a tia Mimi, justamente os mais novinhos, deixavam que a cabeça descaísse para baixo dos cobertores. Contudo, o evento tornou-se habitual e, digamos assim, padronizado; primeiro escutavam-se as pancadas e uma algazarra que se assemelhava a um misto de gritos e uivos e depois lá se elevava a brancura que, bamboleante, demandava o destino que já se sabe. Num clube que era mais frequentado pelas famílias dos industriais de cortiça e os outros que a si se viam como os mais abastados, chegou a dizer-se que era o fantasma do Senhor Ezequiel, um admirador de Hitler, recentemente falecido que queria amaldiçoar aquele meu avô que não escondia as suas preferências anglófilas. Mas não era nada disso.
Um dia veio a saber-se que, afinal, tudo não tinha passado de um arranjinho entre uma das criadas do meu avô e o seu amante que assim conseguiam impor às más línguas o recato que lhes permitia abraçarem-se no seu segredo. Era ele quem produzia os ruídos e que sobre as andas se agigantava, não só para amedrontar, mas também para alcançar a altura do ninho de amor.
O plano chocou numa bebedeira alheia que, não dando conta dos ziguezagues, acertou em cheio no pedestal do fantasma que acabou por partir uma perna.
Amieira, 11 de Maio de 1998
3 comentários:
A estória de fantasmas de João Sorumenho está bem contada e tem graça.
Fez-me recordar os serões em casa de uma tia (ainda viva), que contava estórias de terror a pedido dos meus irmãos e primos, em que os mais crescidos também participavam. Contos bem suculentos com fantasmas, cemitérios, lobisomens, virgens e outros animais, mais ou menos mitológicos, em que todos tremíamos como varas verdes, em frente da lareira...
Nunca me interroguei durante a minha infância de onde surgiam tantos factos que ela dizia terem acontecido próximo de nós, para que sentíssemos o sopro do vento maléfico das almas penadas que nos rodeavam. Só mais tarde, vim a saber, que ela as inventava enquanto cumpria os inúmeros afazeres domésticos que a ninhada de filhos lhe proporcionava.
Claro que estes serões só foram possíveis porque não havia televisão...
Boa noite... sem fantasmas!
:)
Abraço,
António
Mentalidades de outros tempos de outros mundos, mundos que pura e simplesmente desapareceram, ainda que, tal como o narrador sustenta em outro quadro -"A Seta do Tempo" se a memória nãso me falha- muitos dos seus aspectos físicos observáveis permançam os mesmos.
É pois a mentalidade, as alterações na cosmovisão de uma população que implicam as alterações sociais ou, pelo contrário, são as alterações nas contigências materiais que condicionam as modificações qwue se observam naquela maneira de entender o mundo? Ou, em alternativa, será uma mistura de ambos os factores ou acções?
Longa seria a conversa que poderíamos desenvolver a partir de tais perguntas. Longa seria pois a reflexão que a partir deste fantasma poderíamos tecer.
Assim, mesmo com fantasmas, a noite seria seguramente produtiva e daí se conclui que os fantasmas sempre terão a sua utilidade e não tenho a menor dúvida que muitíssimo mais proveitosa que a da televisão que temos.
Aquele abraço, companheiro
Luís
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