António Justo
“Segundo estimativas de especialistas, os militares
egípcios, com pessoal em uniforme e civil, são hoje os maiores dadores de
emprego no país”, como descreve a notável revista alemã “Cicero”, August 2012,
num artigo sobre o Egipto. O negócio dos generais cifra-se entre 10 e 40% da
economia egípcia, refere ainda a revista.
Agora, com o islamista Mohammed Mursi na presidência,
os militares perderam influência no aparelho do Estado. Apesar disto, Mursi (que vem do seio da radical
Irmandade Muçulmana), terá de se moderar nas suas pretensões de maior
islamização do país, se pretende conseguir impulsionar a economia que só será
viável num clima de estabilidade política e social. Também não poderá renunciar
às receitas do turismo, outro factor modernizador a domar o zelo e a fúria
inicial de forças islamistas que pretendiam irradiar da cultura egípcia o que
não fosse islâmico.
Também a rivalidade vigente, entre o Tribunal
Constitucional, Militares e Presidente, pode revelar-se como factor moderador
das intenções do Presidente e impedir confrontações. Entretanto os islamistas, com a sua maioria
parlamentar, demonstraram que não tinham soluções para os problemas do país:
alimentação, escola e hospital. Até setembro terá de ser elaborada uma nova
constituição a ser aprovada por plebiscito.
“O Islão não oferece soluções” disse Amr Mohammed
Musa, Ministro dos Negócios Estrangeiros do Egipto em entrevista a “Cícero”.
Amr Musa foi escolhido para ministro das Relações Exteriores, a desejo
dos militares, para indicar uma certa continuidade pró-ocidental e que a
política anti-israelita não será o caminho da política externa.
O ministro dos meios de comunicação social (estatais)
é Salahedin al Maksud, também ele, membro eminente da Irmandade Muçulmana. O
programa de promoção do islamismo encontra-se assim em boas mãos. Uma
inovação da TV estatal egípcia revelou-se no facto de o noticiário passar a ser
apresentado, depois de 50 anos, por uma jornalista com véu islâmico na cabeça.
Esta inovação foi exibida como sendo uma “vitória da Revolução de 25 de
Janeiro”. A agenda da “Irmandade Muçulmana” é longa; agora que se encontra
no poder, exercê-lo-á com decretos, não precisando, para já, de recorrer à
violência física. Entretanto a censura acentua-se e a insegurança nas
comunidades não muçulmanas também. O objectivo declarado da Irmandade
Muçulmana fundada em 1928 é estabelecer uma ordem social subjugada à moral do
Corão e à jurisprudência da Sharia islâmica.
Informação estrutural
enganosa ou factual descontextuada
Nos sistemas muçulmanos, a formação de uma oligarquia
militar corresponde, por vezes, por muito contraditório que pareça, a um
elemento diferenciador duma sociedade de cunho religioso monolítico e
hegemónico onde perspectivas seculares civis se tornam difíceis. Os militares,
tal como na Turquia, formam como que uma pequena nobreza, que se tem revelado
como elemento correctivo do islamismo absorvente e omnipresente. Ao
contrário da democracia ocidental que favorece a alternância dos partidos mais
fortes no governo, o sistema hegemónico muçulmano favorece o fenómeno dual: dum
lado os militares e do outro, os imames (cabeças das mesquitas: o seu poder de
mobilização política pode verificar-se nas demonstrações organizadas e
realizadas às sextas-feiras logo a seguir às orações nas mesquitas) e a revolta
terrorista. Por muito estranho que pareça os militares têm-se revelado como
parceiros mais sérios em relação ao estrangeiro atendendo aos interesses
comuns. De lembrar, neste contexto o ataque sistemático dos grupos islâmicos radicais
contra a formação de exércitos e a organização policial estatal, no
Afeganistão, Iraque, etc.
Se aos países ocidentais, o que mais os une é o
sistema liberal capitalista (competição em torno do trabalho/consumo), aos
países muçulmanos/árabes une-os a religião muçulmana que é ao mesmo tempo
programa de vida e ideal político…
Nas sociedades muçulmanas não se tem revelado possível
o desenvolvimento duma cultura cívica/secular (possibilitadora duma democracia
aberta) por razões teológicas, antropológicas e sociológicas. Enquanto o ocidente se orienta pela fórmula cristã
“dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César” (princípio de distinção
entre realidade secular e realidade religiosa: Homem por um lado como ser
divino e por outro como ser secular), as sociedades de cunho árabe não conhecem
esta dualidade deixando tudo para Deus, sem nada para o Homem numa atitude de
súbdito e, consequentemente, de ser definido e controlado apenas pela religião.
A mitologia ocidental ao conceber o Homem como filho de Deus reconhece no
Homem os genes divinos e consequentemente o direito do Homem à individuação e à
personalização. No Islão não há o conceito de Homem como filho de Deus nem
tão-pouco o Homem pode ter comunhão com Alá tanto no aquém como no além.
Isto ocasiona diferentes antropologias e diferentes sociologias, com as
consequentes maneiras de estar no mundo e de se compreender o Homem e a
política. Se nos países de influência cristã o Homem é concebido como ser
autónomo, anterior ao religioso, nos países de influência islâmica o Homem é
concebido como súbdito, só tendo sentido dentro do religioso, da Uma (a grande
comunidade islâmica). Aqui, o ser humano individual não tem consistência
pessoal, só grupal. Daí o facto de, quando se fala em democracia, assim como
quando se fala em direitos humanos, os ocidentais e os árabes compreenderem
coisas totalmente diferentes.
Geralmente, os jornalistas e os políticos ocidentais,
quando avaliam os acontecimentos nos estados árabes e quando falam de
integração de estrangeiros equivocam-se porque julgam que as palavras e as
manifestações públicas duma cultura são equivalentes às da outra, quando,
muitas vezes expressam precisamente o contrário do que se diz delas. Enquanto
o Ocidente aposta sobretudo na força militar e na expansão económica os países
de influência árabe apostam tudo na religião e na expansão da procriação.
O entusiasmo e optimismo dos meios de comunicação
ocidental nas notícias sobre o Norte de África e outros conflitos
internacionais leva o público a avaliações não aferidas à realidade meramente
factual.
A informação publicada, além de ser equacionada em
perspectivas políticas condicionadas pela própria localização política, sofre
do equívoco de falar de realidades que, muitas vezes, não passam de projecções
da própria mundivisão sobre a dos outros. Temos assim uma informação estrutural
do satus quo enganosa ou factual descontextuada.
Por vezes tem-se a impressão de se viver no século V
do império romano, assolado, ao mesmo tempo, interna e externamente. Os tempos
que se aproximam para o norte de África e para a Europa pressagiam muita
instabilidade! Todos terão de mudar muito a nível de mentalidades e de
estratégias de poder!
António da Cunha Duarte Justo