No passado dia 18 deste mês de Julho do Ano da Graça de 2014
completaram-se 599 anos do falecimento da malograda Rainha D. Filipa de
Lencastre.
Sob o efeito de indescritível sofrimento, Sua Alteza, el-Rei
D. João, o Primeiro, vai despedir-se de sua amada esposa.
Os filhos aconselham-no a abalar, para não ser vítima da
malfadada pestilência.
O Conselho Régio aprova a partida.
Em essa mesma data, Sua Alteza aporta à Vila de Alhos
Vedros.
«Senhor, porque
semtimos que a senhora Rainha he era tall pomto, que em breue tempo fará fim de
sua uida, pareçenos que he bem i5 que uossa merçee sse parta daquy pêra alguúa
parte, porque o mall nom aja rrazom de seer mayor, sobreuimdouos alguíía gramde
emfirmidade pollo aazo de uosso gramde nojo. O quall com menos pena semtirees
nom teemdo amte os olhos a força do caso, porque o auees de semtir.
E bem uos parece,
rrespomdeo elRey, que eu aja de desemparar a ssemelhamte tempo huíja molher,
com que tam lomgamente niamtiue companhia, por certo hi sse pode seguir
quallquer caso que a Deos aprouuer, mas eu per nehuú modo nom partirey dapar
delia, em cuja companhia me Deos faria merçee de me leuar pêra o outro mundo.
Porque querees uos senhor, disseram os Iftamtes aazar dous muy gramdes malles
por uossa estada sem esperamça de nehuú proueito. O primeyro, que semtimdo-uos
a Rainha açerqua de ssi, acreçemtarlhees mayor trabalho, quamdo lhe lembrar que
ja uos mais nom ha de ueer. Ca posto que a sua uoomtade seia comforme aas
cousas do outro mundo, em quamto a alma esta na carne, he necessário que a
humanidade rrequeyra o que he de sua natureza. O segumdo he que uos estamdo
aqui, he necessário que estees a todos seus offiçios, que a ueiaaes depois de
fimda. A quall uista uos trazera aa comsijraçom mujtas cousas, cuja nembramça
acreçemtara o uosso gramde nojo, de que sse uos depois pode seguir alguúa
emfirmidade que será mujto peor. Porem uos pedimos por merçee, que uos nom
apartees daquello que sempre husastes .s. rrezam e comsselho, mayormente sobre
cousa tam assijnada.
Pois que assj' he,
rrespomdeo elRey comtra o Iftamte Duarte, uos mamdaae chamar todollos do
comsselho que aqui ssom, e fallaae com elles, e o que acordardes que he bem que
eu faça, isso farey.
E breuemente o
comsselho feito, determinaram que todauia elRey se deuia partir dalli, e sse
passar aalem do Tejo a huú luguar que chamam Alhos Vedros, como sse de feito
partio. Mais daquelle triste espidimento que elle fez da Rainha sua molher,
quamdo a foi ueer amte que sse partisse, nom posso eu fallar tamto como deuia,
porque a força das lagrimas me embarguam a uista, que nom posso escpreuer,
comsijramdo em cousa tam triste, ca sse me apresemta amte a jmagem do emtemder,
como o uerdadeiro e leall amor he mais forte cousa daquellas que a natureza em
este mundo jumtou. Do quall Sallamam disse no camtar dos camtares que era forte
como a morte.»
in CRÓNICA DA TOMADA DE GEUTA POR EL REI D. JOÃO I,”COMPOSTA
POR GOMES EANNES DE ZURARA”,
PUBLICADA POR ORDEM DA ACADEMIA DAS SCIENCIAS DE LISBOA,
SEGUNDO OS MANUSCRITOS N.ºs 368 E 355 DO ARQUIVO NACIONAL. FRANCISCO MARIA
ESTEVES PEREIRA
Recolha feita por Francisco José Noronha dos Santos