quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Benguela e arredores, Anos 50


por Francisco Gomes Amorim


Vamos começar 2016 com recordações, de tempos passados, estas com mais de sessenta anos, antes que esqueça! Os neurónios estão muito gastos, e o HD dos miolos... cansado, com uns quantos bugs. Máquina com muito uso, folgas mecânicas e apagões sensoriais, tirar dela coisas “velhinhas” tem que ser quando, como por encanto, surgem.
Tarde de uma sexta feira aparece na Lusolanda, na velha e morena cidade, um agricultor pedindo assistência técnica a uma máquina agrícola que tinha na sua fazenda, no interior, lá para as bandas de Quilengues, a cerca de duzentos quilômetros da linda (e muito saudosa) Benguela.
Era preciso lá ir, sempre acompanhado do indispensável ajudante, cujo nome, infelizmente está esquecido, mas não o seu afável caráter e sempre boa disposição.
Avisar em casa que ia passar uma ou duas noites fora, embarcar naquele velho e incómodo furgão Renault Savane, já o sol a esconder-se na Praia Morena, aí vão os três, o ajudante, o agricultor e o técnico.
Pouco depois de sair da cidade tinha que se atravessar uma zona, grande, um areal com alguns poucos quilômetros, onde todos os motoristas preferiam abrir uma pista nova para não roçarem com a barriga do carro no chão, rodando nas pistas já abertas na areia. Havia dezenas de pistas e cada um escolhia aleatoriamente uma que lhe “parecesse” a melhor para não se enterrar, e que o levasse ao destino.
No Sul de Angola só havia uma amostra de estrada asfaltada entre as cidades de Benguela e Lobito. Tudo mais eram picadas. Umas razoáveis outras... Deus sabe.
Daquele areal saíam duas picadas: uma que um pouco adiante virava para o interior e outra que seguia para o sul, para a Baía Farta, e Dombe Grande.
Já noite era preciso muita atenção para não entrar no caminho errado, que foi exatamente o que aconteceu!
Desconfiado por sentir que não tinham virado para Leste, onde já deviam estar a começar a subir para o planalto, mas não querendo correr o risco de andar para trás e para diante até se perder de todo, o melhor foi seguir em frente até encontrar alguém ou alguma coisa que identificasse onde se estava.
Continuaram um pouco mais para Sul até que viram três homens que caminhavam em fila, com aquela paz que só os africanos eram capazes de imprimir ao seu ritmo de vida.
Pararam. “Boa noite” – “Boa noite” – “Esta picada vai para Catengue ?” – “Sim senhor, patrão. ” A resposta não agradou porque estavam certos de se terem enganado. Mas...
“E não vai para o Dombe ?” – “Sim senhor, patrão.”
Difícil! O “sim senhor, patrão” significava simplesmente que tinham ouvido a pergunta. Como quem fala no rádio e responde à comunicação de outros: “Roger, roger”, que quer dizer “ouvi”!
Pergunta a seguir, meio idiota, para quem falava com africanos simples do interior: “E até ao Dombe é longe? ” - “Sim, patrão”. Deviam ser uns vinte quilómetros! “Mas não é perto? ” - “É pelto sim, patrão.”
“Então? ” – “Aha, é pelto, mas é longe. ” 
Tiveram que interpretar aquele filosófico diálogo. Primeiro, como calculavam, estavam no caminho errado. Pura dedução. Mas o “é perto, mas é longe” envolve uma mensagem admirável: “Para quem vai de carro, é perto, para quem caminha é longe. ” Brilhante. Grande lição.
Depois disto, voltaram para trás e apanharam então a saída certa e não tardou a aparecer a subida da serra.
Chegaram ainda a horas de comer um belo jantar em Catengue, onde as estradas-picadas de dividiam: uma sempre para leste, a outra para o sul onde estava o ambicionado Quilengues.
Catengue era um posto de abastecimento de lenha para os comboios do Caminho Ferro de Benguela, que faziam Lobito até Teixeira de Sousa, hoje Luau, um total de 1344 quilómetros, e que depois segue pelo Congo, etc. até chegar a Moçambique.
Já com um clima agradável, a um pouco mais de 600 metros de altitude, ali havia uma casa comercial com uma pequena pensão, um restaurante onde se comia bem e bom, e o dono tinha, além de bastante gado que pastava por larga terra que não faltava, dentro de forte cercado de madeira, feito com toros grossos, um enorme búfalo macho, recolhido quando filhote. O bicho era lindo, enorme, e quando alguém se aproximava do cercado ele ia encostar-se à cerca para que lhe fizessem festas naquele forte e grande corpanzil. Chamava-se Bonifácio.

Um parente do Bonifácio

O dono dava-lhe comida suficiente e o bom do Bonifácio vivia tranquilo, sem perturbar ninguém.
Mas, depois de adulto, todo o ano em época certa, ele começava a alargar as narinas e a ficar mais nervoso. Pelo ar chegava-lhe, de quão longe nunca alguém apurou, o cheiro de fêmeas no cio.
Bonifácio não era macho para que alguma fêmea botasse defeito e ele devia saber isso bem.
No momento que considerava próprio, uma pequena marrada no “fortíssimo cercado”, abria uma saída e sumia. Ia ter com as beldades da sua espécie. Ficava ausente uns quantos dias e depois de ter cumprido as suas obrigações de macho forte e bonitão, regressava ao tranquilo lar do cercado. Vinha um pouco abatido, mais magrito, mas certamente deixara o seu gene nalgumas bonitonas.
A seguir o dono do posto tinha que reparar o “forte cercado”!
Comia-se bem no simplório restaurante de Catengue. Não faltava nada.
Alguns anos mais tarde novamente jantar em Catengue, desta vez fazendo cabo a Benguela, um francês como pouco mais do que carona, que se viria a revelar um f.... Poucas mesas e clientes no restaurante, portas abertas para fora, para que entrasse, e corresse, aquele fresquinho maravilhoso.
O francês a 90° graus da porta e o “cicerone” bem de frente para a dita.
O jantar com certeza era bom, acompanhado da indispensável garrafa de vinho, tinto, apesar de ambos estarem em serviço da Cuca.
Os copos cheios, ou a mais de meio, com vinho, de repente entra voando em velocidade quase super sónica, uma cigarra ou um grilo ou até um matrindindi, que bate com força na testa do “cara” da Cuca! Até doeu. Com o ricochete o bichinho cai dentro do copo de vinho, vibra intensamente, as asas ou o abdômen, de tal forma que, até esgotar o vinho e morrer bebedíssimo, com a vibração estridente espalhou o vinho por todo o lado.
Em cima da mesa, nos pratos do saboroso bife com batatas fritas e sobretudo sobre os dois comensais de camisas brancas, que levaram um chuveiro de vinho tinto!
Pobre cigarra ou matrindindi. Deve ter morrido feliz. As camisas foram depois para lavar.
Perdeu-se um bom copo de vinho, mas ganhou-se uma história que sessenta anos depois só amarga pela saudade!

01/01/2016

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