GRAFFITAR A LITERATURA
Largo Rodrigues de Lima, nº 2, Cascais.
«a beleza da ruína é a própria ruína»
(Ruben A., Páginas V, 1967)
«Já foi uma casa. Portuguesa, de certeza», palavras do graffiter Add Fuel (o cascalense Diogo Machado, 1980) numa intervenção no Muraliza 2014: uma casa em ruínas, já sem telhado; a vegetação apossou-se dela e verte na parede traseira, no Beco dos Inválidos. O artista reanimou-a, prolongou-lhe a vida, com uma decoração que faz lembrar azulejos, de simetria geométrica, a azul e branco (no Muraliza de 2015, Add Fuel viria a ‘reproduzir’ elementos decorativos análogos em quatro caixas cinzentas de electricidade, esses monos urbanos com que a EDP desfeia vilas e cidades).
Casa, lugar antropológico por excelência, isto é, um lugar com história, relacional e identitário (segundo critérios de Marc Augé, 1992). Vitorino Nemésio, num outro registo, diz «A minha casa é concha» (poema “A concha”). Casa, local de segurança, de aconchego, de intimidade; onde nos sentimos bem.
A frase que Add Fuel inscreveu na parede principal desta decrépita casa associamo-la, inevitavelmente, à canção de Amália Rodrigues “Uma Casa Portuguesa” (letra de Reinaldo Ferreira, música de Vasco M. Sequeira e Artur Fonseca; original editado pela Columbia/Valentim de Carvalho, em 1953). Um poema que espelhava bem a ideologia da época, a do Portugal ‘pobrete mas alegrete’ que Salazar preconizava. Esses versos chave – «quando à porta humildemente bate alguém, (…) a alegria da pobreza, (…) no conforto pobrezinho do meu lar, (…) uma existência singela… é só amor, pão e vinho… e um caldo verde, verdinho» – pretendem dar-nos a ideia de uma ‘tipicidade’ lusitana. Nada mais falso.
Podemos contrapor-lhe uma outra variante: A Casa da Malta, novela do ciclo rural de Fernando Namora (1919-1989), escrita, em 8 dias, no ano de 1945. Numa das edições, chegou a ser ilustrada pelo neo-realista Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957), que viria a morrer de fome! (por não ter batido «à porta humildemente» de alguém?). Infelizmente, não disponho dessa edição mas de uma outra, revista e prefaciada pelo autor, comemorativa dos seus 50 anos de vida literária, com fotografia de Adelino Lyon de Castro na capa (Publicações Europa-América, livros de bolso, nº 500). O médico e escritor prolífico (hoje bastante esquecido), viria a dar o nome ao Prémio literário que a Sociedade Estoril Sol atribuí desde 1989.
«Estavam agora no largo do saguão da malta, casa de todo o ambulante, quando um homem aciganado os olhou um por um e fez alto com a sua mão morena. O Alves parou contrafeito e o cigano disse que dentro do casarão tinha a mulher a parir. Que lhe ensinassem uma entendida do sítio. (…)
– Agora não é hora de estarem aqui fedelhos.
O cigano acudiu a empurrar o ganapo para a rua.
– Vai à praça pedir fruta.
«Pedir ou roubar», pensou o velho.
O garoto, amuado, rosnando vinganças, repuxou as calças e saiu quando a mãe gritava como se tivesse o Diabo no corpo:
– Ai, que eu estoiro!
Ele sabia que as mulheres berravam para ter a canalha. Vira uma, certa vez, num pinhal, a rebolar-se no chão, mas essa lembrança esfumava-se no tempo. Agora era um homem e precisava de saber ao certo como um ganapo saía de uma barriga inchada. O velho enxotara-o, mas ele iria espreitar pelas frinchas do portão. (…)
A rapariga saltou ao portão a face linda de rubor:
– Nasceu um menino! Que pretinho que ele é!
Os homens descolaram do muro, e esquecendo o cigarro apagado, emocionados.
Ela convidou-os a entrar. A cigana estava pálida, quieta, meio adormecida; tinha os braços caídos e gastos ao longo da manta. Os homens não sabiam palavras para dizer. A criança pertencia um pouco a todos eles. (pp. 51, 69-70, 98)
Luís Souta
Sem comentários:
Enviar um comentário