quarta-feira, 4 de maio de 2016

Lembrança de Agostinho da Silva


Estivemos três vezes na companhia de Agostinho da Silva, três vezes trocámos com ele curtas mensagens por correio, três vezes fomos a casa de Maria Violante Vieira, várias vezes falámos com ela ao telefone. Certa vez veio ela, idade já avançada, de propósito aos Paços do Concelho da Câmara Municipal da Moita, a um Encontro que por aqui organizámos, onde estava também, creio, entre outros amigos, Eduardo Espírito Santo, com quem conversei presencialmente pela primeira vez com Agostinho, ou talvez seja mais correto dizer que o escutei, pois não me lembro de ter dito grande coisa. O meu amigo Eduardo, muitos anos antes e ainda hoje, vegetariano, Professor de Meditação Transcendental, muito dado aos estudos da “misteriosofia” (para utilizarmos termo que nos é familiar), tentava convencer o Professor das virtudes da Meditação, e lembro-me que ele dizia que sim, mas que não lhe dissesse isso a ele, antes fosse convencê-los lá em baixo… Estávamos no 3º andar do número 7, da Travessa do Abarracamento de Peniche, onde o Professor morava e na casa do lado vivia Ela. Na altura ainda não sabíamos que, em 1963, tinha viajado para o Japão, onde conversou e meditou em Universidades e Templos Zen com seus professores e monges.

Invariavelmente, ao telefone com Maria Violante, falávamos sobre os gatos e o Tomás, meu filhote, que ela chamava carinhosamente de Tomé, e sobre a desejável fundação da Associação Agostinho da Silva, na altura ainda em fase embrionária, lembrando-me, então, de termos participado numa ou outra reunião, para os lados do “Campo Pequeno”, com o grupo pioneiro dos seus fundadores, acompanhando a amiga Maria Eduarda da Rosa. Grata recordação de um dia com as duas amigas termos subido juntos, de braço dado, o Convento Velho da Arrábida para as comemorações de um Domingo de Pentecostes, até mesmo ao pé da ermida onde viveu os últimos anos da sua vida o poeta místico Agostinho da Cruz. Lá estava também o Professor Ilídio de Sousa, em sua graça imensa, o grande timoneiro do “Círculo dos Amigos do Agostinho” (CADA), vindo do Porto.

Sobre as visitas à casa de Agostinho, e com a ideia de que tinha como livro de mesa-de- cabeceira o “Tao Te King”, Livro do Caminho e da Virtude, de Lao Tse, que ele próprio traduziu diretamente do Chinês, lembramos que um dia pousado em cima de uma das cadeiras em que nos sentávamos para o escutar, estava o livro das “Crónicas de D. Dinis”, de Rui de Pina. Olhámos para o livro e pensámos que não estava ali por acaso. D. Dinis, sua mulher Isabel de Aragão, a Ordem de Cristo, o culto popular do Espírito Santo, o comunitarismo medieval português, a marinha e a Língua Portuguesa, eram, afinal, tópicos de partida para a conversa, sobre como os Portugueses e o ecumenismo lusíada partiram para o mundo, e não mais o deixaram, para cumprir a “pátria” de Fernando Pessoa. Ou talvez fosse melhor chamar-lhe de Fernando Vieira, dada a herança das suas ideias sobre o tal império que se designava por “quinto”. Afinal, o mesmo que dizer “culto popular do Espírito Santo”, ou “Ilha dos Amores”, equivalentes variáveis do que numa forma unificada podemos designar por “tradição espiritual lusíada”. Mas Agostinho da Silva, mais do que só lusíada, vai-lhe dar uma maior amplitude e pretende-a luso-brasileira, depois lusófona e, por fim, luso-castelhana. Afinal, numa breve expressão, a proposta de um império de paz, amor e serviço, de todos para com todos, assente em largo sincretismo religioso que junta ocidente e oriente, no tal “nada que é tudo”, ponto sem dimensão, procurada vida de sempre e para sempre, em que tempo e eternidade são coetâneos.

Agonizava Agostinho da Silva por volta de um Dezembro de 1993, regressado do hospital, já quase sem se mexer e sem falar, dado o acidente vascular cerebral, quando tivemos oportunidade de, entre alguns afagos, nos despedir dele. E já nos dirigíamos à porta para sair quando, depois de silêncio até ali absoluto, olhos enevoados, esforço impessoal, ergueu a cabeça e murmurou: “coisas pequenas… coisas pequenas…”, palavras que ainda hoje ecoam pelas portas da memória e nos fazem meditar. Talvez um mantra.

Luís Santos
10/4/2016


Boletim Raio de Luz, nº472, 29/4/2016, p.7

2 comentários:

Unknown disse...

Belo testemunho caro amigo. "Coisas pequenas" as pré- ocupações do ser humano na imensidade Cósmica. Grato amigo, um grande abraço !

luis santos disse...


Somos gratos, Amigo António.
"Coisas pequenas" jogam muito bem
com a imensidão cósmica.
Afinal, tudo e nada, longe e perto,
tudo ligado,
tudo lado a lado, como a amizade.
Como sempre, uma imensa preciosidade
as suas palavras.
Obrigado e Abraço-as.