Hoje, a Margarida trouxe para casa um jogo novo.
Deve dizer-se que é um hábito familiar os momentos de brincadeira com a pardalada que vão desde as pura e simples diversões em torno de uma dança, por exemplo, às leituras de histórias que o pai conta antes da deita, passando pelas sessões de uno ou monopólio e outros entreténs que o acaso vai proporcionando. Ultimamente, começaram as competições de carácter didáctico em que a Matilde, por motivos óbvios, participa apenas enquanto ajudante de algum dos progenitores.
Trata-se de uma forma descomplexada e sem qualquer carga anímica de puxarmos por elas e, simultaneamente, de cimentarmos os laços e a confiança familiar e de criarmos uma cultura de comunicação e convívio que temos por imprescindível para que os nossos amorzinhos cresçam dentro de um quadro de referências e aí possam construir as suas pessoas para que venham, um dia, a ser donas do seu destino e capazes de acrescentarem mundos à Humanidade.
É deste estado de carinho que, pessoalmente, nos vem a autoridade que nos permite orientar a enculturação das filhas, mas também vem daí a consciência de que os pais, não se substituindo aos amigos que, de facto, não são, são antes aqueles dois seres disponíveis para abrigar e ajudar nas tempestades, quaisquer que sejam.
Assim se torna evidente que o amor, entre nós, não tem que ser discutido pois ele está no nosso seio, permanentemente, até que a morte nos separe.
Daí que um dia, tanto o piolhinho como o pardalito partirão para os respectivos futuros. Contudo, isso se fará justamente a partir do gregarismo em que, até lá, tal convivência vai evoluindo e, na verdade, a regra geral é que a família partilhe a vida que começa depois do trabalho; por exemplo, viajamos, fazemos férias e passeamos juntos.
Fazemo-lo cheios de alegria, mas tanto eu como a Luísa estamos cientes que este é o nosso papel de pai e de mãe.
E na nossa incomensurável pequenez, só pedimos a Deus que nos ilumine com a sua infinita sabedoria.
Seja como for, voltemos ao assunto inicial, o jogo que a mais velha aprendeu esta tarde, com a filha da Professora.
Consiste o mesmo em alguém acrescentar uma palavra relacionada com aquela que um determinado jogador diz. Só se pode dizer um vocábulo e a participação faz-se de forma ordenada, perdendo aquele que se engane ou não consiga efectuar o seu contributo para aquela cadeia de sinónimos e associações.
Comecei eu pela palavra leão a que a Margarida retorquiu Sporting, a partir do que acabámos por tergiversar para temas tão díspares como o sistema solar, plantas e meios de transporte, entre muitos outros tópicos. Durou a parte final do jantar e a fase de arrumar a cozinha no que se estendeu por uma boa vintena de minutos.
E não é que a Margarida e a Matilde tinham sempre uma palavra adequada na ponta da língua?
Só tenho pena que a vida absorvente a que o trabalho me força não me deixe mais tempo para contemplar o crescimento destas duas parcelas do meu coração.
Com efeito, o meu trabalho é um cúmulo de actividades que muitas vezes me deixam mais morto que vivo e sabe Deus o esforço que desenvolvo para, apesar de tudo, manter estas linhas em dia. Eu tenho a responsabilidade de pagar salários e impostos e ainda a de gerar lucros e esse é um compromisso que não deixa alternativa.
Contudo, por muito que seja o cansaço, com tamanha ternura, como é que eu posso deixar de explodir no céu da felicidade?
E depois o carro voa
e nós voamos
agora nos plátanos que se acastanham
à medida que o mar se deixa cascatear dos seus ramos.
É o conflito israelo-palestiniano uma ameaça para a paz mundial?
Sem dúvida alguma.
Não por causa dos israelitas que dão corpo a uma sociedade democrática e capaz de se integrar pacificamente no convívio e cooperação entre as nações e ao mesmo tempo no jogo concorrencial das relações tecno-económicas e financeiras ao nível dos mercados globais.
Antes por causa do terrorismo integrista da Al-Qaeda e afins que usam aquele conflito como um dos álibis para a sua violência mais fanática, com os quais deixam esconsos os seus espírito e desiderato de cruzada – salvo seja a expressão – e sem os quais nada mais têm para apresentar à opinião pública mundial para além da sua ortodoxia fundamentalista que os leva a querer dominar o mundo para o que o martírio é uma das vias mais dignas de entrar no Paraíso.
Ora é um dado adquirido que os homens dominam hoje armamentos capazes de provocarem um apocalipse.
E o onze de Setembro está aí para nos provar que todos nós somos alvos, não por o ataque ter sido desferido contra um determinado país, mas pelo facto de essa data da infâmia deixar a nu que ninguém está a salvo, pois ficou provado que muito dificilmente haveria defesa para massacres perpetrados com certos tipos de armas de destruição massiva e que, se por absurdo se gerasse uma escalada que fugindo do armamento convencional resultasse, por fim, em disparos atómicos ou nucleares, muito provavelmente o mundo seria envolvido por um manto de morte e destruição de que a espécie humana poderia vir a ser uma vítima irreversível.
E claro que a guerra israelo-palestiniana deve ser resolvida, em primeiríssimo lugar para que se coloque um ponto final ao sofrimento dessas populações. Isso é evidente.
Esquecer o perigo que representa para a paz mundial é que pode vir a revelar-se como uma imprudência suicidária.
Mas já que estamos pelo Médio Oriente registemos o que resultou da irresponsabilidade de um punhado de jornalistas, para a qual não existe, não é possível que exista uma qualquer explicação razoável.
É que o jornalismozinho do “espreme e deita sangue” que temos só podia ter um desenlace destes, precisamente com sangue e muita sorte por não termos que falar em funerais.
Certamente para cobrir a missão do batalhão da GNR que ontem rumou para o Iraque, um punhado daqueles profissionais de comunicação social acompanhou os nossos militares até ao Koweit. Uma vez aí, sabiam que a nossa logística militar não lhes garantiria transporte até ao local de alojamento das nossas tropas já em território iraquiano. A isto nem deve ser estranho o pequeno pormenor – digamos assim, para ironizarmos alguns comentários que logo pulularam na nossa praça – de o quartel que seria o destino original, por causa do atentado de quarta-feira, ter sido destruído.
Então não é que os nossos heróis dos media não decidiram seguir sozinhos, por sua conta e risco, mesmo depois de alertados para os perigos que corriam e sem que algum entre eles soubesse uma única palavra em árabe ou de qualquer outro dialecto da região?
Meia hora depois de transposta a fronteira, lá tiveram eles uma resposta à altura da sua imprudência.
Foram abalroados, assaltados e espoliados, uma jornalista foi ferida a tiro e outro raptado, por quem os bandidos pedem agora um resgate de cinquenta mil dólares.
É assim quando a inconsciência se sobrepõe a tudo o que é razoável.
Tenho a certeza é que haveremos de ler reportagens empolgantes e emocionadas sobre a aventura que mereceria um valente puxão de orelhas se não estivéssemos num país de opereta.
E a ironia, de tão negra, facilmente substitui o riso pelo pranto.
Os jornalistas portugueses que era suposto estarem lá para darem as notícias começaram por ser, eles próprios, a notícia dos trabalhos que foram dar às forças aliadas.
E o batalhão alfa que deveria preocupar-se com a segurança dos iraquianos, recebeu assim o baptismo com a preocupação de defender a integridade física daqueles belos exemplares do ímpeto lusitano.
Ora o sindicato dos jornalistas já veio pedir responsabilidades às autoridades que organizaram o transporte dos militares.
Damos de barato que tudo poderia ter sido mais bem preparado e até podemos omitir o atentado da véspera da partida.
Mas como podemos deixar de responsabilizar adultos que deveriam estar conscientes dos perigos que corriam?
Na aula de hoje, para além dos exercícios com os derivados das palavras menino e menina que voltaram a compor o trabalho de casa, os alunos trabalharam novamente a matéria de Estudo do Meio, a propósito da qual foram convidados a desenhar os colegas e o seu auto-retrato.
“-Ganhei um concurso.” –Disse a Matilde, toda satisfeita, quando a mãe lhe perguntou se o dia tinha corrido bem. “-Era a ver quem é que enchia uma página com as palavras que já demos e eu fui a única a escrever uma página toda.”
A noite arrefeceu mas, para cá das janelas, há um calor tão envolvente.
Alhos Vedros
14/11/2003