75º Congresso Espanhol de Esperanto
Herrera del Duque
Mais uma vez o Esperanto constituiu o motivo próximo que nos
permitiu viajar, conhecer, conviver e aprender … aprender sempre.
Provavelmente, a maior parte dos leitores jamais ouviu falar
de Herrera del Duque, escasso povoado perdido na Sibéria. Atenção que nos
estamos referindo a uma comarca sita na Extremadura Espanhola, no extremo
nordeste da Província de Badajoz. É a região menos povoada do país e daí talvez,
a origem do nome por similitude, mais psicológica do que física, com a extensíssima
Sibéria Russa. A pequena cidade que terá no máximo uns 4 mil habitantes é, no entanto,
dotada de tudo o que é necessário para se poder considerar uma povoação com boa
qualidade de vida: estabelecimentos comerciais, escolas, centro de saúde,
hotéis (ou hostales), palácio da cultura, tranquilidade q.b. e gente simpática
e acolhedora. Em nossa modesta opinião, andou bem a Federação Espanhola de
Esperanto ao escolher este local para a realização do seu 75º congresso. Foi
uma forma inteligente de divulgar uma região turisticamente pouco conhecida mas
cheia de surpreendentes encantos.
O Congresso
O magnífico Palácio da Cultura, muito confortável e espaçoso,
acolheu os 150 participantes oriundos de toda a Espanha mas também da Alemanha,
Bélgica, Brasil, Congo, Croácia, EUA, França, Holanda, Lituânia, Luxemburgo,
Polónia, Roménia, Rússia, Senegal, Sérvia … e seis de Portugal. De 30 de junho
a 4 de julho foi um desfilar incessante de novidades e agradáveis surpresas, um
banho de cultura, um convívio inesquecível onde a poesia, a música, o canto e a
dança tiveram lugares privilegiados. Não foi possível, por falta de ubiquidade,
estar em todos os eventos, visto que alguns aconteciam em simultâneo. Mencionemos
alguns de forma breve e sucinta:
- Com grande pompa, a sessão solene de inauguração do Congresso
e o seu encerramento tiveram a presença das autoridades locais e regionais que
receberam (e ofereceram) prendas e elogios pelos apoios concedidos.
- Apresentação de uma edição em esperanto de “Don Quixote de
la Mancha”, incluindo uma versão informática, no ano em que se comemora o IV Centenário
da morte de Cervantes.
- Leitura de poemas de Jorge Camacho que foi, na altura,
homenageado, e descrição de romances do profícuo esperantista russo, Mikael
Bronsxtein.
- Palestra proferida pelo professor José Salguero sobre as
influências recebidas pelo castelhano falado na Extremadura: leonesa a norte,
andaluza a sul e portuguesa a oeste.
- Conferência sobre literatura esperantista pelo professor
doutor Duncan Charters que apresentou uma brilhante argumentação, clara e
concisa, sobre as vantagens do uso do idioma internacional. Pena foi que o
tempo fosse insuficiente para ler e refletir sobre os vários quadros “power
point” que projetou, todos de inegável interesse.
- Mesa redonda sobre a origem e o percurso da chamada “Ibera
Skolo” com os escritores Jorge Camacho, Miguel Fernandez, António Valén, Javier
Romero, António del Barrio e outros. Como curiosidade, destaque-se a referência
elogiosa ao nosso compatriota Gonçalo Neves.
- Palestra do nosso jovem amigo do Brasil, Lucas Barbosa, sobre
os idiomas tupi e guarani, a qual encantou os participantes sequiosos de
curiosidades linguísticas.
- Espetáculos de grande nível apresentados no auditório do
Palácio da Cultura. Destaque para as atuações de Jomo, Jxomart kaj Natasxa,
Sepa kaj Asorti, orquestra ligeira de jovens locais e para a peça de teatro “la
Kredito” pelos atores Georgo e Sasa.
Visita a Guadalupe
Remotamente, já tínhamos ouvido falar do santuário mariano de
Guadalupe mas não suspeitávamos das ramificações portuguesas deste local
medieval de culto e peregrinação. Parece que foi no século XIV que a virgem
apareceu a um boieiro (guardador de bois e de vacas, entenda-se). Tal episódio
encheu de vaidade este modesto escriba com o mesmo apelido que antes se
convencera que a santa só aparecia a inocentes pastorinhos. Segundo apreendemos,
a citada deusa tornou a surgir várias vezes pelo que o local foi consagrado com
a construção do “Real Monasterio”. Para além da virgem, outras figuras ilustres
vieram aqui para orar e pedir favores. O nosso rei D. Sebastião também aqui
esteve antes da desgraçada batalha de Alcácer-Quibir, mas o pedido não foi
aceite por eventual burocracia divina e foi o desastre que se soube. Isabel, a
Católica, visitava o santuário, amiudadas vezes (consta-se que foram 26) e
parece que resultou. No átrio da entrada principal lá está o seu busto e a
designação “Monumento de la Hispanidad”.
Nos claustros, único local em que se pode tirar fotografias,
encontram-se diversas pinturas das quais se destaca a da batalha do Salado em
que o rei D. Afonso V, o Africano, veio dar uma ajuda preciosa ao rei
castelhano e, juntos, derrotaram o exército sarraceno. A presença portuguesa
está bem patente numa das capelas que ostenta vários brasões lusos, no túmulo
da Duquesa de Aveiro, Dona Maria de Guadalupe de Lencastre, nascida em Azeitão
no ano de 1630, na pintura dedicada a Fernando de Pinha, cavaleiro e cronista
da corte do rei de Portugal ao qual a virgem apareceu por três vezes (que
sorte!).
Depois de percorrermos os espaços museológicos dedicados aos
paramentos religiosos bordados a ouro e prata, casulas e quejandas, os enormes
livros “miniados”, a parte das pinturas dos famosos Zubarán e el Grieco, a sacristia,
os relicários, a capela de São Jerónimo, fomos almoçar a um dos restaurantes da
Hospedaria del Monasterio, antiga hospedaria real, construída nos finais do
século XV.
E sobre o mosteiro não se acrescenta nada mais, visto que nos
folhetos e livros turísticos há informação bastante para quem queira aprofundar
a temática.
Concerto do Grupo
Acetre
Após o lauto almoço na Hospedaria do Mosteiro, recebemos
detalhadas informações históricas de Guadalupe, que em árabe significa “rio
escondido”, fornecidas pelo incansável professor de Don Benito, José Salguero.
Seguiu-se uma atuação musical de Mikaelo Bronsxtejn. Voltando aos autocarros, excursionámos
pelas imediações de Talarrubias e Valdecaballeros e parámos numa das muitas
barragens do Guadiana. Foi no Embalse de Garcia de Sola, em cuja praia
adjacente deu (a quem a isso se dispôs) tomar uma banhoca com água
agradavelmente tépida. Sempre divisando planos de água, seguimos para Peloche,
localidade de apenas 600 habitantes que dista 8 km de Herrera. Foi aí que
tivemos uma noite memorável proporcionada pelo grupo Acetre (6 homens e três mulheres)
proveniente de Olivença, a que se juntou episodicamente a famosa cantora de
Herrera, Célia Romero.
Com uma excelente orquestração baseada em instrumentos
tradicionais a que nem faltou o adufe e melodiosas vozes, o grupo
surpreendeu-nos não só pela qualidade artística mas também porque a maior parte
das canções tinham origem portuguesa. A sua atuação, que, a pedido do público,
terminou com dois “encore”, durou mais de duas horas e foi fabulosa. Iniciaram
com a “Senhora do Almurtão” a quem se recomendava, como diz a respetiva letra,
“para virar costas a Castela e não querer ser castelhana”. Emocionaram-se os
quatro portugueses presentes e vibraram os espetadores locais e visitantes que
encheram o anfiteatro natural da praça principal da povoação.
A vegetação da Sibéria
Estremenha
Entre os raios da roda de uma carroça disposta na horizontal
em cima de uma mesa baixa, a ornamentar um dos vestíbulos do hostal, podia-se
ver as plantas, já secas, típicas da região: olivo (oliveira), quejigo
(carvalho-cerquinho), acacia (acácia),
lentisca (lentisco), encina (azinheira), jara (esteva), madroño (medronheiro),
arrijanera (aroeira), pino (pinheiro),
arbulaga (tojo), romero (alecrim), tomillo
(tomilho), berezo (urze), alcornoque (sobreiro), álamo negro (choupo-negro), coscoja (carrasqueiro). Eis pois a
síntese da flora de influência mediterrânica que aqui existe.
Na digressão efetuada a Guadalupe as únicas plantas
abundantemente floridas neste mês de julho eram os loendros, se excetuarmos,
obviamente a vegetação ripícola dos ribeiros e das lagoas originadas pelos vários
“embalses” do Guadiana, cuja etimologia é simplesmente “rio” em versão dupla (ana – “rio” na linguagem primitiva e guad – “rio” em árabe). As azinheiras,
em povoamentos pouco densos e irregulares, constituíam a principal espécie que
resistia à canícula que rondava os 40 graus. Viam-se também extensos olivais,
alguns sobreiros e pinheiros mansos e bravos. Na vegetação rasteira abundavam
as estevas (curiosamente são também conhecidas como jaras na região de Portalegre), os silvados ainda a querer florir,
as giestas já sem flor, as milfuradas já sem flor, os catacuzes secos …
Irrigados por canais ladeados por tabuas (atenção não são tábuas mas tabuas, espécies lacustres) divisavam-se
arrozais e milheirais. A subir a encosta xistosa para o Mosteiro podiam-se ver
alguns castanheiros e frutíferas (ameixeiras, pessegueiros, vinhas).
A viagem e a companhia
Viajar com pessoas espirituosas e inteligentes ajuda a
exercitar o cérebro e a, tendencialmente, sermos como elas, inteligentes.
Apesar das altíssimas temperaturas que se fizeram sentir numa
região que se diz ter 6 meses de inverno e 6 meses de inferno (alguém
convencionou que o inferno seria terrivelmente quente), foi muito agradável a
viagem. No regresso aproveitámos para visitar dois teatros romanos: um em
Medellín e outro, obviamente em Mérida. Foram lições vivas de História,
suscetíveis de agilizar compreensões sobre o evoluir da Humanidade.
Uma breve referência ao almoço do derradeiro dia no
restaurante “El Mosquito”, em Medellín, numa das margens do Guadiana. Num
pequeno cartaz estava descrita uma pequena e espirituosa fábula do famoso
escritor castelhano, Quevedo:
“Le dijo el mosquito a la rana: mas vale morrir en el vino que vivir en
el agua”.
Ao jovem Lucas Barbosa, notável linguista apesar dos seus
escassos 19 anos, que connosco conviveu ao abrigo do “Pasaporta Servo”, ao Rui
Vaz Pinto, à Alexandrina Timóteo e à Manuela (minha esposa), as homenagens e
agradecimentos deste cronista de meia tigela.
Julho de 2016
Miguel Boieiro