Pintura de fundo da capa: "Flor do Lácio", gentilmente cedida por Kity Amaral.
SANTOS, Luís Carlos dos (2015) Agostinho da Silva: Filosofia e Espiritualidade, Educação e Pedagogia (Conclusão, tese de doutoramento). Vila Nova de Gaia: Euedito, pp.307-325)
Conclusão
1.
Depois de uma sólida formação no ensino secundário,
Agostinho da Silva inicia o seu percurso académico no ensino superior na
Faculdade de Letras do Porto. Começa por fazer estudos em Românicas, mas acaba
por mudar para Filologia Clássica, sendo nesta área que vai consolidar a sua
formação científica.
Tendo concluído a sua formação inicial com
irrepreensível êxito, inscreve-se logo em seguida no Curso de Doutoramento
fazendo a sua investigação no domínio das civilizações clássicas, numa reflexão
crítica a Spengler, em tese intitulada O
Sentido Histórico das Civilizações Clássicas. Quando termina a sua tese, em
1929, com 23 anos de idade, Agostinho da Silva tinha adquirido uma formação
sólida nas culturas e autores clássicos, o que vai determinar a sua produção
científica pós-tese.
Embora desde muito jovem, ainda antes de ingressar no
ensino superior Agostinho tenha manifestado gosto pela produção literária e
política que ia publicando pelo jornal Comércio
do Porto, depois de ter entrado para a Faculdade começa a publicar textos
de cariz mais científico, sendo de registar, sobretudo, a participação que
começa a ter nas revistas estudantis Acção
Académica e Porto Académico, mas
muito particularmente em A Águia,
revista do Movimento da Renascença Portuguesa, onde estão grandes nomes da
cultura portuguesa como Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, António Sérgio,
Leonardo Coimbra, Fernando Pessoa, entre muitos outros.
Durante esta fase, entre o início e o fim da sua
frequência universitária, acabámos por dar mais destaque no nosso trabalho às
principais influências que foram deixadas, por um lado, por alguns dos seus
professores, por outro, pelas matérias que foi estudando e produzindo.
Entre os seus Professores, Agostinho da Silva destaca,
principalmente, três nomes que mais o terão influenciado, Teixeira Rego,
Hernâni Cidade e Leonardo Coimbra, este último numa fase inicial mais pela
negativa, porque para lá da eminência académica e política, entre outros
atributos, já tinha sido Ministro da Instrução Pública de Portugal, fundador e
diretor da própria Faculdade, antes do nosso autor ser seu aluno, mas o que é
verdade é que ele não gostava das suas aulas, tendo até desistido de as
frequentar. Ora, como Leonardo lecionava Filosofia, esse terá sido, pelo menos,
um dos motivos que fez com que o nosso autor recusasse a aproximação e o gosto
por esta ciência, coisa que durou muitos anos. No entanto, através da Filologia
Clássica acabou por desenvolver sólida formação nas culturas e autores
clássicos e, indiretamente, forte conhecimento dos filósofos gregos, cujo
pensamento muito influenciou a sua formação como, de resto, se pode testemunhar
ao longo de toda a sua vida pela forma como amiúde se lhes vai referindo.
Em Sócrates encontra o livre-pensador aliado a uma
rígida disciplina. Um filósofo que ousou pensar para lá do que permitia a
democracia ateniense que, todavia, tinha limites na sua tolerância filosófica,
pois que não deixou de o condenar a um trágico fim. Mas o que mais interessa
reter em Agostinho sobre Sócrates, Mestre de Platão, é a sua determinante
filosofia na busca da verdade através da fina ironia que usava com os seus
interlocutores sofistas e a sua “demagógica” sabedoria de então. Para lá da boa
capacidade de elaborar um apurado pensamento lógico, a Sócrates interessava-lhe
sobretudo o apuramento da verdade. Ou melhor, que cada um pudesse extrair a
verdade de dentro de si, cumprindo a famosa frase inscrita no Templo de Delfos
“conhece-te a ti mesmo”. Igualmente, foi esta forma de verdade que cada um pode
extrair de dentro de si que Agostinho foi perseguindo ao longo da vida.
Depois o idealismo de Platão. A importância do mundo
das ideias, das essências, tão queridas à Filosofia, colocando-as acima de um
mundo a cujo conhecimento se possa aceder através dos sentidos. A inteligência
acima dos sentidos. O inteligível que permite o discernimento, a sabedoria, com
que se deve governar a cidade. A ideia de que no topo de uma pirâmide
hierárquica política capaz de melhor governar as gentes deve estar o Filósofo
capaz de liderar uma “sofiocracia”. Quer dizer, o poder pelo saber, como o
modelo político mais adequado de organizar a cidade. Ou, melhor dizendo, o
município, o país, o mundo, para se adequar melhor à terminologia política de
Agostinho.
Por outro lado, essa inteligibilidade que melhor nos
permita aceder aos destinos do homem e do mundo, à imortalidade da alma, o que
torna indispensável uma organização social que melhor aceda aos mistérios da
religião, uma sociedade que permita um rumo iniciático e salvífico aos homens.
Uma sociedade que se pretenda perfeita, a “cidade bela” como propunha Platão,
terá de se organizar de acordo com as características da alma humana,
condição indispensável para que através da sabedoria, da racionalidade, se
garanta a justiça, a sua maior virtude.
Agostinho da Silva, amiúde, ao longo da sua obra,
ia-se inspirando nalgumas das ideias de Platão, tendo também elogiado alguns
dos pensadores neoplatónicos, como Plotino ou Pseudo-Dionísio. Mas de forma
alguma desprezou a filosofia do aluno mais famoso da sua Academia. De tal maneira, que para dar maior completude ao
“idealismo” de Platão, juntava-lhe o “realismo” de Aristóteles. Uma solução a
que se quisesse chegar a partir da filosofia grega não podia ser exclusivamente
encontrada a partir de uma explicação inteligível da realidade, era necessário
que também a própria realidade, a relação entre os fenómenos, as pessoas,
pudessem participar numa melhor racionalização dos fins a atingir. Portanto, o
caminho não deve ser feito unicamente das ideias para as pessoas, as próprias
relações entre as pessoas também deverão determinar as melhores ideias.
Para além de Sócrates, Platão e Aristóteles, Agostinho
da Silva investigou e escreveu sobre outros autores clássicos greco-latinos.
Por exemplo, “Pérsio”, texto de 1929, onde Agostinho se refere à relação entre
as civilizações grega e romana, ou na razão que se encontra entre a supremacia
cultural dos primeiros e a superioridade bélica dos segundos. Ou seja, como
embora pela força das armas se consegue construir um imenso império, mas como
pela força da filosofia e das artes, se consegue preservar a cultura e
colonizar o mais poderoso dos adversários. Por outras palavras, se a força das
armas permitiu aos romanos a conquista de um imenso território, no plano das
ideias, na cultura, no ensino e na religião, a hegemonia cultural dos gregos
manteve sempre largo domínio.
Na vastidão do Império a religião grega vai-se
sobrepondo à religião romana. Ao poder do amor (Eros) entre Zeus e Afrodite vêm
juntar-se uma infinidade de deuses e deusas que constituem o panteão grego.
Na Grécia Antiga, tal como
acentua Agostinho, o culto das divindades era igualmente feito pela
coletividade inteira. Era fundamental que se estabelecesse contacto com os
deuses. Nos oráculos, pela adivinhação ou pela profecia, nas festividades em
honra de Elêusis ou Dioniso, procurava-se a purificação ritual de toda a
coletividade. Processo de iniciação em que se pretende almejar beleza e
alegria, onde se contemplam os deuses e se acede ao segredo da vida. Supremo
objetivo, amor dos deuses, amor aos homens.
Esta relação entre
organização social e organização religiosa é fundamental no pensamento de
Agostinho. E em 1930, quando escreve “Religião Grega”, o nosso autor
influenciado pela cultura helénica revela um pendor marcadamente neoclassicista
em que o religioso e o social se fundem, princípio que dá como fundamental
para uma ideal organização política.
Mas regressando às
influências filosóficas que Agostinho trás da Faculdade talvez tenha sido
Leonardo Coimbra o que, entre todos os seus professores, mais profundamente
tenha marcado a sua obra. Quando Agostinho no início da década de 40 escreve
dois ensaios, “Cristianismo” e “Doutrina Cristã”, onde faz a apologia do
cristianismo primitivo que lhe valeu forte polémica com alguns dos
representantes da Igreja e, por consequência, aumentando a antipatia da classe
política dominante, e até do próprio Salazar, é certamente no autor de “A Dor,
a Alegria e a Graça”, onde se podem encontrar as maiores correspondências
ideológicas com esses dois textos. E quando enaltece o espírito dessa prática
cristã e a liga aos movimentos libertários, anarquistas, da época, e, algum
tempo depois, quando assume uma postura mais próxima do catolicismo, é
certamente em muitas das linhas escritas por Leonardo que o nosso autor se
revê.
Um outro filósofo que
também muito terá influenciado Agostinho da Silva foi António Sérgio. Quando o
nosso autor deixa de colaborar com A
Águia e passa a colaborar com a Seara
Nova, corria o ano de 1928, vai reencontrar este filósofo português na
direção da Revista, começando a partir desta altura uma crescente aproximação
entre os dois, até que se estabelece profícua amizade durante muitos anos, pelo
menos, até que Agostinho da Silva parta para o Brasil. Na Seara Nova, em Madrid, em Paris, nas sessões aos sábados na casa de
Sérgio, sempre os encontros entre eles se foram multiplicando, muitas vezes
debatendo ideias, outras vezes congeminando organizada oposição à ditadura
política estabelecida em Portugal.
De alguma forma, o
“racionalismo-idealista” de António Sérgio também está presente em Agostinho,
sobretudo, nesta fase da vida do nosso autor. As ideias de Platão e Descartes
são fonte de inspiração para os dois, tal como a força da razão também é
partilhada como via indispensável no acesso ao conhecimento da realidade. Mas
não nos parece que, como sustentam alguns autores, se tenha estabelecido algum
tipo de discipulado de Agostinho em relação a Sérgio. Isso mesmo é várias vezes
repetido pelo nosso autor, até pelas imensas oposições que encontramos
entre as suas ideias.
Antes de mais, o nosso
Professor nunca se considerou um filósofo propriamente dito, mesmo que a
determinada altura se torne visível uma grande aproximação à Filosofia. A sua
formação de base em Filologia sempre foi constituindo uma barreira nesse
sentido. A forma livre, solta, com que ele pensa a realidade e vai construindo
as suas ideias, sempre foram um pouco avessas ao seu aprisionamento dentro de
categorias científicas, políticas, ou religiosas. No entanto, cremos que se
pode dizer que o racionalismo e a mística são categorias entre as quais mais
podemos situar o seu pensamento.
Depois, encontramos em
António Sérgio uma filiação europeísta que nunca existiu em Agostinho. A forma
displicente com que o filósofo se relacionava com a cultura portuguesa era algo
de muito criticável para o nosso autor. Todo o movimento de Reforma que se
estabelece no ocidente com o Renascimento, sobretudo no que toca a
desenvolvimento político muito à moda das ideias de Maquiavel e à ascensão do
capitalismo na sua relação com o protestantismo, é coisa que Agostinho nunca
deixa de criticar.
É nesta fase da colaboração
com o movimento seareiro que se começa a afirmar em Agostinho uma nova ideia de
Deus, onde bem e mal se tornam inseparáveis, e onde a ideia de Paraíso Divino
não é algo a conquistar depois da morte física, antes é obra que os homens
devem realizar na terra. Neste sentido, é neste período que uma postura, até
aqui, neoclássica de Agostinho, defensora de ideais helénicos, começa a ser
substituída por uma maior valorização do amor cristão que ele não encontra
entre os gregos.
Assim, muito embora as
diferenças entre os dois pensadores sejam muito substanciais, cremos, todavia,
terem existido fortes influências de Sérgio no nosso autor, até pela diferença
de idades e pelo natural domínio que o estatuto do filósofo exercia sobre ele.
Essas influências, porém, acabam por ser mais nítidas em relação ao ideário
pedagógico, onde aí sim, e continuando situados neste período antes da ida de
Agostinho para o Brasil, se encontram profundas semelhanças entre os dois. Toda
a sólida formação e consequente ação que Sérgio desenvolve na área da
Pedagogia, e muito concretamente no Movimento
da Educação Nova, chegando a liderar o Movimento em Portugal e, por via,
disso chegando a Ministro da Instrução do país, não deixará de muito
influenciar o nosso Professor. E quando reparamos no percurso de Agostinho,
desde que frequenta a Escola Normal Superior de Lisboa até à intensa dinâmica
do Núcleo Pedagógico Antero de Quental que ele próprio criou, toda a investigação
e publicação que faz na área da inovação pedagógica realça com muito clareza a
procura e a defesa dessa Educação Nova,
revelam óbvios pontos de contacto entre os dois.
Ambos seguem na esteira de
Jean-Jaques Rousseau, o filósofo que mais inspira Pestalozzi e Tolstoi, autores
que levam à prática as suas ideias. Por sua vez, na esteira destes vem todo um
conjunto de pedagogos, como Claparède, Cousinet, Ferrière, Montessori, Freinet,
entre muitos outros, a melhor geração pedagógica de sempre no dizer de António
Nóvoa, que acabam por construir o Movimento Internacional da Educação Nova.
É no espírito deste movimento pedagógico da Educação Nova que os nossos autores vão avançando, no que diz
respeito aos seus projetos educativos. E mesmo quando o Estado Novo
praticamente consegue silenciar o Movimento em Portugal, perseguindo, prendendo
e torturando, alguns dos seus líderes, Agostinho da Silva encontra-se entre os
que na década de 40 ainda resistem, embora também ele acabasse por ser preso e,
por consequência, acabasse por abandonar o país.
2.
Agostinho da Silva deixa Portugal em 1944, mas só fixa residência no
Brasil em 1947. No país irmão, Agostinho sente-se liberto da pressão que a
ditadura em Portugal exercia sobre si e, como ele próprio diz, tudo muda,
torna-se outro. Ao chegar ao Brasil, depois de começar a lecionar no ensino
superior tudo começou a acontecer, como se o Brasil precisasse de alguém que
entrasse na onda da implementação da rede de universidades que era preciso ser
criada no país. Durante 15 anos, até perto do início da ditadura militar em
1964, o nosso autor percorre vários Estados do Brasil, e vai lecionar em outras
tantas Faculdades, tal como participa na criação de algumas universidades. Rio
de Janeiro, Paraíba e Pernambuco, Santa Catarina, São Salvador da Bahia,
Brasília e Goiânia, são cidades onde Agostinho leciona e nalguns casos
participa na instalação da Universidade, mas também a criar centros de
investigação, como são os casos do Centro de Estudos Afro-Orientais, do Centro de
Estudos Portugueses, do Centro de Estudos Brasileiros, respetivamente, nas
Universidades Federais da Bahia, Brasília e Goiás. É verdadeiramente
impressionante, em período relativamente curto, a obra que Agostinho desenvolve
no Brasil
Mas recuemos ao período em
que fixa residência no Brasil e passa a lecionar na Faculdade Fluminense do Rio
de Janeiro. Neste período colabora também com Jaime Cortesão na Biblioteca
Nacional.
Como sabemos Agostinho já conhecia Cortesão de
Portugal. Ambos colaboraram com A Águia
e a Seara Nova, estiveram juntos em
Paris e cruzaram-se nos Encontros de Sábado em casa de António Sérgio, um
percurso de vida, de facto, com muitos pontos de contacto. Por fim, no Brasil
quando se encontram no Rio de Janeiro, para lá da convivialidade e dos estudos,
como vimos, ganham também laço familiar.
Jaime Cortesão encontra-se entre os autores que muito
terá influenciado Agostinho da Silva, nomeadamente na sua admi- ração pelo
espírito franciscano e na sua prorrogativa filosófica de valorização do ser em detrimento do ter, mas, sobretudo, pela dimensão
altamente significativa que reconhece na organização da sociedade medieval
portuguesa.
Sempre o comunitarismo medieval português é colocado
acima dos novos tempos renascentistas, considerando estes associados ao triunfo
de um liberalismo político e à índole de uma economia capitalista que a seu
ver, em vez de libertar acabam por escravizar, ambos fonte de dura exploração
da mão-de-obra humana e, logo, de pobre dimensão fraterna de vida. Tal como o
culto popular do Espírito Santo, instituído no país no século XIII, com seu
ideário divino de total abrangência, seja para diferentes credos ou pessoas, em
que deuses e homens se sentam juntos à mesa, constitui o exemplo ideal do
futuro desejável para o país, para o mundo. Um Deus a que todos podem aceder e
onde todos cabem, ou não se pensasse que Deus não é mais que o mundo sendo, não
só o homem, pois que Agostinho não subscreve a ideia de um mundo
antropocêntrico, em que o homem pode dispor a seu belo prazer dos elementos
naturais, desde logo a começar pelos animais.
Numa “Idade do Ouro”, categoria que Agostinho acolhe
da filosofia grega para designar um período mais longínquo do mundo, os homens
não se alimentavam dos animais. Isso só acontece com a queda, quer dizer, de acordo com o Antigo Testamento, a expulsão do
homem do paraíso divino, tempo do mundo em que a humanidade se caracterizava
ainda pelo nomadismo e por uma alimentação essencialmente herbívora e
frugívora.
Num período mais recente, em que o homem declara
guerra à natureza e aos animais, designa Agostinho por “Idade do Ferro” e
corresponde já a uma fase de sedentarização humana, em que a agricultura e a
pecuária haveriam de trazer a escravização dos animais, mas também da mulher e
da criança, onde a educação formal e as organizações religiosas ganham espaço,
mas paradoxalmente se vai assistindo à diminuição do sentido do “sagrado”, ao
fim de uma anterior “unidade primordial” entre homens e Deus. E muito embora, a
perca dessa “unidade primordial” se relacione com o desenvolvimento do mundo,
da ciência e da técnica, há-de ser por esse mesmo desenvolvimento que se
readquirirá essa perdida dimensão de “sagrado”, sob pena da humanidade se
perder por completo se não conseguir lá chegar.
De resto, como sustenta o nosso autor, com o processo
de cristianização que o mundo ocidental conheceu na Idade Média voltámos de
novo a uma plena intenção de sacralização universal das sociedades humanas,
coisa que não era verificável no mundo clássico. Com a expansão ultramarina do
século XV e XVI, os portugueses e os espanhóis levam o cristianismo ao mundo, e
essa ideia que a princípio dizia unicamente respeito ao ocidente estende-se a
todo o planeta. Foi, de facto, um projeto “católico”, ou seja, sagrado e
universal, de acordo com o étimo da palavra, esse que os povos peninsulares
realizaram.
Mas esta ideia “católica” haveria de ser travada pelo
espírito europeu renascentista, protestante e capitalista, a norte, maquiavélico
e liberal, a sul. Aqui, a partir da ciência política, ali, a partir da
reformada religião que aprova o lucro e dá oportunidade à exploração económica
do homem pelo homem. Embora considerando todo este espírito renascentista
como uma inevitabilidade histórica,
indispensável para o avanço da humanidade, Agostinho não deixa de ser
radicalmente crítico dos resultados a que chegámos e mantém acesa a esperança
de que o projeto medieval peninsular, então interrompido, avance de novo.
Aliás, de acordo com Agostinho, esse espírito
peninsular medieval ter-se-á reaberto de novo em Portugal no século XX,
sobretudo, centrado em dois movimentos simultaneamente com- plementares e
opostos, como foram a Renascença Portuguesa,
e os Seareiros, o primeiro, sobre o
signo da saudade, o segundo, sobre o signo da ação.
Por outro lado, essa ideia de “sacralização” do mundo
que se desenvolve em Portugal com a Expansão Ultramarina está bem marcada
nalguns autores portugueses, como são, particularmente, os casos de Luís de
Camões em “Os Lusíadas” e do Padre António Vieira com a sua ideia de “Quinto
Império”, ideia essa que é retomada por Fernando Pessoa com renovados
contornos.
Como diz Fernando Pessoa, um Império que será o
“quinto”, porque fundirá os outros quatro que anteriormente existiram (grego,
romano, cristão e europeu), de dimensão mundial e universal, com uma nova
religião que sairá do cristianismo, mas que o transcenderá, e que o poeta
designa de Paganismo ou Politeísmo Supremo, para utilizar a expressão do nosso
autor.
Eis, então, a proposta essencial a que Agostinho chega
no Brasil, algures durante a década de 50, que vai defender e desenvolver vida
fora. O Império enaltecido na “Ilha dos Amores” dos Lusíadas, preconizado por
Vieira e por Pessoa, será um império “católico”, universal, e caracteriza-se
pelo advento da Idade do Espírito Santo, o consolador da esperança humana, tal
como profetizou o evangelista S. João. Em síntese, o “quinto império”, o
império do Espírito Santo, que é de servir e não de mandar, onde se é dos outros
em vez de se fazer dos outros seus.
E a esperança é muito forte. Como ele diz, tudo o Consolador com suas línguas de fogo
queimará. Tudo se consumirá, capitalismo, socialismo, propriedade, partidos
autocratas e escolas. Seremos crianças à solta, plenos de criatividade e
perfeitos como Deus, o criador supremo. E, sendo criança perfeita, a todos
educará.
Este Deus consolador é
aquele que Cristo revela, a quem Agostinho reza na igreja, mas que não é o Deus
das igrejas, antes que as junta todas e paira acima de todas. É um Deus a que
podemos chegar se atingida a verdade, se formos perfeitos. Um Deus íntegro,
total, paradoxal, tudo e nada, imanência e transcendência, que junta tempo e
eternidade, sem separação de bem e mal, de homens e animais, de tudo o que
existe. Um Deus que é, antes de mais, inefável e é silêncio, que é alogos e não logos, onde ciência e filosofia, “saudades disfarçadas em raciocínio”,
devem ajudar a atingir, mas não podem definir.
Como diz Romana Valente Pinho, “É a vivência do Brasil
que permite ao nosso autor conceber um ideal ecuménico, afinal, é lá que se
reconcilia com o catolicismo, que apreende o candomblé, que redescobre o culto
do espírito santo, que aprofunda o cristianismo primitivo, que reinterpreta
Confúcio e Lao-Tse, que reaviva, ao lado de Eudoro de Sousa, o sentimento
universal dos gregos antigos, que incentiva, com Vicente Ferreira da Silva, uma
vivência religiosa denominada “Alcorão”.”
Indo ao encontro do conceito de “luso-tropicalismo”,
de Gilberto Freyre, o Brasil torna-se, em Agostinho, o contemporâneo parceiro
ecuménico por excelência daquele Portugal medieval que proclamava o Reino do
Paráclito, até porque depois da proibição e, com o tempo, da quase completa
extinção do culto no país, passa a ser o Brasil a sua principal sede de
ritualização. O nosso autor chega mesmo a considerar que não podendo Portugal,
como “rosto da Europa”, liderar o Projeto, talvez venha a ser o Brasil o seu
porta-estandarte. De qualquer maneira, tal como defende no IV Colóquio de
Estudos Luso-Brasileiros, 1959, realizado em São Salvador da Bahia, deveria, e
deverá, caber à comunidade luso-brasileira a missão de condução desse projeto
ecuménico ao mundo.
3.
A ditadura militar que triunfa no Brasil, em 1964, vem
trazer sérios problemas à Universidade de Brasília onde o Professor trabalhava.
Com o desenrolar dos acontecimentos, avesso a ditaduras, resolve regressar a
Portugal. Este novo período da sua vida no país que o vira nascer, será
marcado pelo retomar de algumas velhas questões que tinham ficado para trás,
mas agora de uma forma mais amadurecida. Tratava-se, agora, de renovar e
divulgar alguns dos temas que foi desenvolvendo ao longo da vida, até porque os
novos ventos da liberdade já se iam anunciando pelo país.
Não foram, no entanto, tempos fáceis, até porque a
revolução da liberdade que foi o “25 de Abril” trouxeram o país dividido entre
vários liberalismos e marxismos. De maneira que, divulgar a “Mensagem” de
Fernando Pessoa, ou melhor pô-la em ação, não era tarefa fácil num país que
transbordava de mercantilismos vários entre arrufos autocráticos, mas na sua
maioria todos, ou quase, muito avessos a uma mensagem de cariz espiritualista,
como era a “velha” história “quinto-imperial” de Vieira e de Pessoa que punha
muito pelo meio a palavra religião, tanto mais que Agostinho da Silva trazia
uma expressão carregada de suspeita como era a do “culto popular do Espírito
Santo”, da descida à Terra da Jerusalém Celeste, ou da (re)instauração do Reino
do Paráclito, disfarçado em saudosista mensagem de suspeitas “Renascenças
Portuguesas”.
Mas Agostinho, já estava mais à frente, que é simultaneamente estar mais atrás, e ao “catolicismo” de Vieira e ao “Paganismo
Superior” de Pessoa, propunha que se lhe acrescentasse o budismo. Cristianismo
e budismo, a desejável fusão que dará, de novo, “novos mundos ao mundo” (e aqui
para não deixarmos de fora Luís de Camões e a sua “Ilha dos Amores”), duas
doutrinas, porventura, uma mais religiosa, outra mais ateia, ambas capazes de
produzir uma ideia de Deus que não é pertença de nenhuma religião em concreto,
antes que as soma a todas e a tudo, simultaneamente tudo e nada, bem e mal,
ponto sem dimensão.
Portanto, uma nova ideia de religião, onde caibam
todas as religiões, mas também ateus e agnósticos, que saiba construir na terra
um reino divino, ou seja, uma organização social que se caracterize por uma
dimensão de serviço do bem comum, onde todos possam velar por todos e não pelo
desenrasca de só alguns. Um país que possa afirmar-se como uma fraternidade
espiritual que erga o estandarte da Paz, cuja missão inclua a consolidação do
pacifismo entre os homens.
Essa nova ideia
do divino, afinal, para que se possa bem exemplificar com a realidade, tem
equivalências com o culto do divino Espírito Santo que entrou em Portugal no
século XIII, e com alguns aspetos da organização da sociedade medieval
portuguesa, de economia comunitária, onde todos os estratos sociais e todas as
religiões se sentavam à mesma mesa, culto esse que acabou por ser proibido por
uma hegemonia religiosa que se pretendeu “católica”, expulsando mouros e
judeus. Por isso, proibido em Portugal, acabou por ter de rumar a outros
lugares, sendo que atualmente mais se comemora nos Açores e no Brasil.
Ao regressar
do Brasil, em 1969, onde, como vimos, desenvolveu uma obra notável, Agostinho
da Silva vai retomar algumas ideias que já tinha desenvolvido, no nosso país,
sobre “Educação Nova”. Ele que, nos primeiros anos da década de quarenta, tinha
tido uma importância decisiva na resistência deste movimento ao Estado Novo, de
novo sem recuar perante a política fascista, conservadora, que o levou ao
autoexílio vai escrever “Educação de Portugal”, em 1970, um livro onde recupera
alguns dos ideais daquele movimento pedagógico, livro que, no entanto, por
falta de editor, só viria a ser publicado em 1989.
Mas a sua
produção escrita, neste período, sobre a “Educação Nova”, não se resumiria à
“Educação de Portugal”. Durante os dois anos seguintes, 1971 e 1972, vai
coordenar e escrever temas sobre educação na Revista Mundial, onde novamente
vai abordar a temática da “Educação Nova”, revelando o autor, mais uma vez, uma
certa militância com o movimento.
Mas é sem dúvida no seu livro “Educação de Portugal”
que Agostinho da Silva desenvolve as suas teorias educativas, onde se parte, é
certo, de alguns enunciados dessa nova educação, mas sem que o autor se fique
por eles e desenvolva todo um projeto educacional para Portugal.
Começando por deixar claro que não domina a
bibliografia do que se tem feito no país em matéria de educação, mas com
certeza imaginando que a evolução durante o período em que esteve ausente não
terá sido facilitada pelo regime político do Estado Novo, o início deste livro
é claro quanto à matriz ideológica do autor em matéria de educação. Utilizando
a insubstituível prosa de Agostinho da Silva, “Creio, primeiro, que o mundo em
nada nos melhora que nascemos estrelas de ímpar brilho: Nada na vida vale o
homem que somos; homem algum pode substituir a outro homem. (...) Não sou eu,
por conseguinte, que tem de refletir por ele, não sou eu quem sabe o que é
melhor para ele, não sou eu quem tem de lhe traçar o caminho; com ele só tenho
um dever que é o de ajudá-lo a ser ele próprio. (...) Acreditando, pois, que o
homem nasce bom, o que significa para mim que nasce irmão do mundo, não seu
dono e destruidor, penso que a educação, em todos os seus níveis, formas e
processos, não tem sido mais que o sistema pelo qual esta fraternidade se
transforma em domínio (...) Pelos tempos fora, temos querido que a escola, seja
fundamentalmente uma fábrica de fortes para vencermos na vida. O grave de tudo
isto é que nos lembramos sempre da criança que fomos e que por nossas mãos
matamos.”
Cerrando fileiras, Agostinho critica de forma dura o
funcionamento das escolas tradicionais desenvolvidas durante o Estado Novo e
explicita qual deverá ser o espírito de uma nova escola. Sustenta ele que, a
escola tradicional é um lugar para onde um menino é levado, onde lhe dão um
mestre especializado numa educação que trata, não de deixar que o futuro homem
se desenvolva na sua plenitude, mas de o levar a que sirva com utilidade e
respeito, aqueles que, já eles, não se desenvolveram. “Escolas que
melancolicamente ensinam o que fazem os outros, com alunos que apenas disputam
diplomas e professores a que só o título interessa. (...) Educar não é levar
ninguém a ser isto ou aquilo, não é tentar influir de qualquer modo em sua orientação
futura, mas dar meios de expressão à sua capacidade criadora e de comunicação,
quer ela se exerça lendo e escrevendo, quer manualmente num ofício e sem que
se separe uma atividade da outra.”
Em Janeiro de 1990, já muito perto do fim da sua vida,
a coerência do seu pensamento mantém-se, como podemos comprovar através de uma
mensagem que o Professor envia para um debate sobre o tema “Escola Cultural”,
realizado na Escola Preparatória de Fernão Lopes que reproduziremos na íntegra:
“A Escola agora deverá ser transformada completamente. Ainda vai levar um
tempinho até chegarmos lá, mas vai mudar e vai mudar no seguinte sentido: a
criança vai dirigir-se à escola, não porque tem de fazer um exame para obedecer
à lei geral do país – escolaridade obrigatória. Por exemplo, ela irá à Escola,
à escola que lhe apetece e quando lhe apetece, para aprender aquilo que
corresponde à sua vocação íntima. E é o que já hoje acontece com pequenos
grupos de gente, em atividades livres da escola, com clubes, com coisas
semelhantes. A criança está aprendendo um meio de expressão daquilo que é
realmente nela o artista criador – o poeta que nasceu. (…) Essa escola vai
avançar. Todas essas obrigações de inovação educativa e não pedagógica estão
indo muito bem. É por esse caminho que se vai ter de ir e toda a gente está
interessada no desenvolvimento psicológico, no desenvolvimento dos homens,
para eles cumprirem aquilo para que têm vocação que é de serem artistas e
criadores. Toda essa gente só tem que dar os parabéns pelo avanço que já temos
e por todos os passos que se derem porque serão sempre, haja o que houver,
passos em frente, embora às vezes pareça que há recuos. Mas são recuos apenas
como que para uma pessoa descansar, para haver uma pausa, porque depois a
sinfonia continua.”
É clara, portanto, sem possibilidades de engano, e o
próprio autor o menciona, que as principais diretrizes do seu projeto educativo
emanam das teorias da “Educação Nova”. O único trabalho satisfatório, refere
Agostinho, é aquele de que somos plenamente responsáveis, seja para os
professores, seja para os alunos, e em todas as escolas não deveria ser de
outra maneira, como ensaiaram com tanto êxito o Plano Dalton, ou as escolas de
Winnetka, ou as diretivas de Cousinet, sem que se esqueçam a liberdade criadora
que Tolstoi introduziu em Isnaia Poliana, ou o convívio de fraternidade e
discussão que representa o melhor de Summerhill.
Mas o nosso autor não se fica, simplesmente, por
enunciar os princípios dessa educação, vai passá-los para o futuro e acreditar,
pleno de fé, que o futuro lhes pertencerá: “Resumindo, diria pensar que a
natureza humana, mais do que boa, é excelente; que a sociedade, e nela a
educação, ajudando o homem a sobreviver, o tem limitado, e muito, no melhor do
que é o seu ser livre; mas que o pior passou e que todo o sofrimento e toda a
treva serão apenas pesadelos finalmente em paz e luz desfei- tos.”
É a “educação nova” no seu melhor de regresso a
Portugal. Mas, como dissemos, o projeto educativo de Agostinho vai passar muito
além das conceções da “Educação Nova” e das escolas experimentais que se
constituíram com o seu desenvolvimento. Agostinho da Silva pretende contribuir
para a criação de um projeto educativo para Portugal, ele que, entretanto, já
tinha adotado dupla nacionalidade com a sua vivência de vinte e cinco anos no
Brasil, mas que não deixa de procurar as especificidades culturais do seu país
de origem. Homem de ampla cultura, Agostinho da Silva defende que qualquer
teoria de educação terá de nascer dum pensamento filosófico teologicamente
fundado. Quer dizer, a sua visão do mundo parte de uma ação fraterna entre os
homens que, através da livre criatividade da pessoa, permita a realização de um
reino do divino na Terra, mas sem que reconheça a necessidade de qualquer
igreja instituída. À frente das múltiplas referências ao divino, no entanto,
sempre aparece referenciado o culto popular do espírito santo, tal como se
desenvolveu no Portugal medieval e se foi espalhando pelo mun- do português.
Assim, à valorização da natureza da criança e à
prática de uma educação pela liberdade, princípios filosóficos de que Agos- tinho
da Silva nunca abdicará, vão-se juntar determinantes religiosas, católicas,
universais, que fazem com que a educação de Portugal seja, ao mesmo tempo, a
educação de todos os mundos.
É no culto popular do Espírito Santo, como vimos, onde
radicam com mais força as suas ideias religiosas, misturadas com as profecias
“quinto-imperiais” do Padre António Vieira e de Fernando Pessoa, dando-se aqui
continuidade a um espírito messiânico do destino português.
Mas, mais do que Portugal, é a Língua Portuguesa o seu
principal referencial, e todos os lugares onde ela se fala, como são as
inúmeras comunidades de emigrantes, e outras, espalhadas pelo mundo. Agostinho
da Silva é um dos precursores da conceção de um Projeto Lusófono que junte
países e comunidades, ideia que, como sabemos, em certa medida, acabou por se
materializar, em 1996, com a criação da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa. Sustenta o Professor, com alguma ironia à mistura, que deveria ser
junto destas comunidades onde se deveriam instalar as primeiras “escolas novas”
a haver, para que todos eles soubessem que são portadores do Espírito e que, a
tal facto, está inerente um determinado espírito de missão, não só Português
mas Lusófono, a partir do qual se deve fazer mediação do Projeto para o mundo.
Agostinho, porém, não se fica exclusivamente pela
Língua Portuguesa. Como ela é irmã do Castelhano, Galego, Andaluz, Basco e
Catalão, há que partir para uma Confederação Ibérica que partilhe objetivos
comuns dando, assim, maiores possibilidades ao Projeto.
Importa, então, organizar o sistema educativo para que
a utopia se generalize e o Projeto ganhe uma real dimensão prática. No Ensino
Superior deve-se, antes de mais, formar um exército de técnicos que tenda a
suprimir as necessidades básicas para de seguida se desenvolver as tecnologias
de modo a substituir a mão-de-obra humana pelas máquinas, emancipando o homem
do trabalho abrem-se as portas para uma plena libertação. Serão, então, as
Artes e a Filosofia que ganharão primazia nas apren- dizagens escolares a
fazer. No Ensino Secundário e Primário tudo se direcionará para que o ato de
educar consiga preservar a criança que connosco um dia nasceu, porque o mundo
em nada, nunca, suplantará o Espírito dessa natureza que um dia encarnou.