O SANGUE DOS INOCENTES
Passam hoje sessenta anos sobre o dia em que as tropas Aliadas, à custa de milhares de vítimas de ambos os lados, invadiram as praias da Normandia e, a partir daí, conseguiram estabelecer uma nesga de território que lhes serviu de ponta de lança para a libertação da Europa do jugo nazi.
A dívida que temos para a memória desses rapazes é impagável e só a recordação que persista nas gerações do futuro longínquo os poderá compensar pelo eterno repouso em que se entregaram tão prematuramente.
O que seria deste mundo se os norte-americanos tivessem abandonado os ocidentais e tivessem convivido e negociado com Hitler?
Pois é tão bizarra e perturbante a ingratidão que predomina nos nossos dias para com aqueles que então nos ajudaram em nome de um ideal de vida que tão pouco merece àqueles que teimam em escamotear a agressão de que os norte-americanos foram vítimas em onze de Setembro.
Agora são os nossos vizinhos transatlânticos que necessitam do nosso auxílio e como resposta oferecemos-lhes os protestos de rua e as negaças dos governantes.
Como é que é possível conceber-se a derrota da Al-Qaeda e afins sem que se resolva previamente o conflito israelo-árabe?
Bem, diga-se num aparte que nem me passa pela cabeça que alguém possa pensar em negar o direito de Israel à existência.
Em conformidade, como o conseguir se não tivermos na outra parte regimes empenhados na paz e na coexistência com aquele estado?
Ora quanto a mim é nesta lógica que avalio a invasão do Iraque e o derrube do regime de Saddam Hussein, sem dúvida um dos suportes e instigadores do terrorismo entre as facções palestinianas mais radicais que detêm os instrumentos de poder naquela sociedade e com isso, por um lado imprimem determinadas características quanto aos métodos utilizados na luta pela independência e, por outro lado, impedem o aparecimento e expressão de correntes mais moderadas.
Um estado de direito no interior das fronteiras iraquianas e uma economia aberta e estabilizada, um poder respeitador das liberdades e apoiante activo da paz entre israelitas e palestinianos, é um elemento fundamental para um equilíbrio geo-estratégico favorável à harmonia entre os povos de tão conturbada região do globo.
E há governantes europeus, como os franceses e os alemães, que agem como se tudo isto fossem questões sem a mínima relevância ou, no pior dos casos, sem razão de ser.
No fim de tudo é a civilização democrática que está em jogo e é o alvo preferencial do fanatismo dos seguidores de Bin Laden.
Curiosamente, a democracia acaba por ter tão poucos defensores.
Terá sido em vão que há sessenta anos a espuma tenha lambido com sangue aqueles areais do litoral francês?
A Matilde entrou definitivamente no estádio da leitura.
Na sexta-feira, depois de almoço, leu toda a história da gata borralheira e hoje dei com ela a ler uma história de jornal.
“-Ena, pardalito, muito bem!”
E o sorriso satisfeito foi um beijo no peito, lá isso foi e eu estremeci, mas com asas, pelo ar do momento.
Morreu Ronald Reagan, o Presidente norte-americano que declarou que o seu principal objectivo seria derrotar o império do mal que identificou com a União Soviética, mas que acabou por apertar a mão ao seu chefe supremo e com ele assinar a paz que pôs termo à guerra fria e também por causa da qual, em parte, resultou o fim do bloco comunista e a queda daqueles regimes.
Dele se pode dizer que foi o último grande líder do mundo ocidental e em conjunto com Margaret Thatcher, primeira-ministra inglesa à época, encabeçou e estimulou a reacção conservadora à agitação das esquerdas das duas décadas anteriores.
E a verdade é que depois dos seus dois mandatos, a economia capitalista deixou de ter alternativa credível à escala mundial e a aspiração democrática pelo menos em teoria e no discurso, surgiu no horizonte como o único paradigma desejável para o desenvolvimento dos povos.
E a sua vida representa ainda por excelência o ideal americano, ou seja, a crença que um homem comum pode atingir a mais alta posição a partir do seu esforço e capacidades pessoais.
O depreciativo do presidente cowboy com que a esquerda e a intelectualidade europeia da época e ainda hoje o apodam é no mínimo a expressão de um ponto de vista cínico e snob.
Afinal escamoteia o facto de um simples cidadão ter chegado à cadeira presidencial por nada mais que os seus méritos pessoais e depois, se o desenvolvermos a fundo, parte do princípio que o poder é para ser exercido por determinadas estirpes de homens, certamente as elites dentro de cada país.
É uma doçura, esta esquerda, que nem mesmo é capaz de compreender que há um século e meio atrás, Marx felicitou o povo americano por ter eleito um “(…) filho honesto da classe operária (…)” (1), Abraham Lincoln, para o cargo de Presidente, precisamente por ser uma garantia (sic) de uma época socialmente mais justa.
Tarde de praia para culminar um fim-de-semana de repouso de que tanto eu estava a precisar e ainda por cima com a companhia póstuma de Stephen Jay Gould.
É claro que os patos da família caíram dentro de água como as abelhas no mel, isto apesar da brisa fresca que se fazia sentir cá fora.
E agora o silêncio do cair da noite.
Vou esticar-me no sofá.
Devo apenas registar que na sexta-feira os alunos deram a palavra peixe para além das aulas de música e moral e religião.
E não é que a turma da Matilde participou na gravação de um CD com cantigas infantis e que assim resume o trabalho desenvolvido pelo Professor e alunos naquela área?
A felicidade faz-se de tão pouco e pode ser tão grande.
Alhos Vedros
06/06/2004
NOTA
(1) Marx, Karl, A ABRAHAM LINCOLN PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, p. 18
CITAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
Marx, Karl, A ABRAHAM LINCOLN PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, Tradução de Barata-Moura, In “Obras Escolhidas”, Vol. II, de Karl Marx e Friederich Engels, Edições Avante-Edições Progresso, Lisboa, Moscovo, 1983