quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Agostinho da Silva, Joaquim de Flora e a demanda do Divino


NOTA PRÉVIA

Sabemos hoje, pelos estudos de Anita Novinsky e da escola de estudos judaicos que criou na Universidade de São Paulo, que a construção do Brasil foi sobretudo obra de cristãos-novos fugidos à Inquisição. Bahia, Pernambuco, São Paulo são, desde muito cedo, pólos de proliferação marrana. A esta luz, creio eu, haverá que reequacionar a propagação do culto popular do Espírito Santo em solo brasileiro.
Falemos entretanto de gigantes. O grande Raposo Tavares, o maior dos bandeirantes, confessou matar em nome da lei de Moisés. Um antepassado de Fernando Pessoa andou por terras de Vera Cruz durante vinte e cinco anos e acabou reduzido a cinzas num auto-de-fé lisboeta. Anita Novinsky lembra, a propósito, que os versos de Álvaro de Campos ganham toda uma outra significação a esta luz.
Entre nós, apesar dos estudos de Moisés Espírito Santo, Jorge Martins ou Maria Helena Carvalho dos Santos, entre outros, muitos continuam a varrer o judaísmo português – e essa sua tão problemática como original metamorfose que foi e é o marranismo – para debaixo de um tapete. O Dicionário Essencial da Língua Portuguesa, denuncia Jorge Martins, não diccionariza a palavra judeu, mas não esquece os termos cristão e muçulmano. E o editor literário dos Apólogos Dialogais de Dom Francisco Manuel de Melo, fazendo quanto pode, ao abordar o Tratado da Ciência Cabala, para afastar o Melodino da pista judaica, cita inúmeras vezes a monumental biografia que Edgar Prestage dedicou ao seiscentista, mas esquece que a páginas 285 desse livro se refere a ascendência judaica do polígrafo, cristão-novo pelo lado materno.
O texto que agora se publica, desprovido de referências bibliográficas e passível de revisão em ordem à sua publicação, corresponde ao que disse no passado sábado na Sala dos Actos da Câmara Municipal de Alenquer, no decurso do Congresso Internacional do Espírito Santo. Como levo Agostinho da Silva bem a sério, há muito que interiorizei a velha máxima do seu alter ego Kertchy Navarro: só pode ser seu discípulo quem for contra ele. Não se trata, pela minha parte, de um propósito deliberado ou programático, mas tão-somente de manifestar franca e lealmente as discordâncias que mantenho com o Estranhíssimo Colosso no que respeita à sua visão do culto popular do Divino. Agostinho da Silva é porventura, a meu parecer, o mais complexo – e porventura o mais estimulante – caso de marranismo da cultura portuguesa do século XX, porque é aquele em que o dramatismo do ser dividido alcança o seu paroxismo, sempre em busca daquela síntese de que falava António Telmo e que o conduz a um novo e superior entendimento da religião. Não por acaso, na sua última entrevista de imprensa, frisava já o pensador, muito judaicamente, que o culto era “apenas” o culto da obra do Divino. Claro que isto pode brigar com a visão joaquimita que, nessa mesma entrevista, parece manter da festa do Império. Que o debate prossiga…   



Agostinho da Silva, Joaquim de Flora e a demanda do Divino
Pedro Martins           

1. Agostinho da Silva pode ser considerado um pensador neojoaquimita, inscrito n’a posteridade espiritual de Joaquim de Flora, tal como Henri de Lubac a entendeu na monumental obra homónima, por ter recolhido «a ideia fundamental que Joaquim havia retirado da sua exegese: a de um «terceiro estado» a vir, no tempo e sobre esta terra, que seria a Idade do Espírito». O portuense, para quem «só pela teologia se poderá compreender a História», vai consequentemente adoptar e adaptar a tripartição do movimento histórico do monge calabrês. Na reelaboração de Agostinho, os estados triádicos designam-se, correspondentemente, por Idade AntigaIdade Média e Idade Nova. A Idade Antiga termina quando a Igreja institucionalizada muda a face do Império, e isso basta para que a sua Idade Média se inicie muito depois da Idade do Filho de Joaquim, que começou a prosperar com a Encarnação e terá terminado em 1260. A Idade Média agostiniana ainda decorre.
Tal como os primeiros joaquimitas, Agostinho crê, expectante, na iminência da nova era.  Pressente-a pelos sinais, mas não sabe quando, ou onde, se iniciará, o que logo nos recorda a sua Vida de Lamennais, pós-joaquimita a quem Lubac consagra extenso capítulo no seu tratado. Posto que o trilho, fecundo, esteja inexplorado, não me alongarei na análise da influência que Agostinho, manifestamente, recebeu deste seu biografado. Assinalarei, somente, que das diversas fases da obra do francês colheu o português inúmeros contributos, incorporados na formação diacrónica do seu neojoaquimismo, pela revelação de uma experiência dramática com seu quê de comparável à evolução espiritual que irá viver, e que parece dar razão a Henry Corbin quando afirma que é no interior hierofânico de cada alma, e não na imanência do tempo histórico, que a Igreja de João sucede à de Pedro.

2. Nos escritos numerosos que, após o retorno a Portugal, em 1969, Agostinho dedica ao culto popular do Espírito Santo, não encontramos já a perspectiva crítica da heresia de Joaquim vigente na fase brasileira. Nesta, em que define e apura a estruturação principial, axiológica e cronológica das três Idades, não deixa o filósofo de censurar a audácia joaquimita. Repele-lhe o corolário do desaparecimento da Igreja institucional, à vista da injunção que, no rigor dogmático da teologia católica, determina a coeternidade das hipóstases trinitárias. No intuito de aproveitar a conveniente sedução do esquema joaquimita, surpreende-se o afã de Agostinho na reelaboração da “Terceira revelação”. Num escrito de Só Ajustamentos que a toma por título, fá-la refluir ao recesso psíquico da individualidade, resguardando-a de vicissitudes sociológicas, no que antecipa a abordagem angelológica, já aflorada, que Henry Corbin, no início dos anos 70, propõe do joaquimismo para o preservar da mácula imanente da mundanidade.
Posto que Lubac o omita a esse respeito, é possível incluir a leitura de Corbin nas interpretações «diversamente minimizantes», porém «dificilmente conciliáveis», do pensamento joaquimita que o cardeal agrupa pela comunidade do esforço com que buscam atenuar a «violenta interpretação» textual operada por Joaquim e «reconduzir a ideia da terceira idade a visões mais tradicionais». Encontramos, aliás, nestas palavras de Lubac uma síntese que se aproxima da tese de Corbin:

Para outros, sob a exterioridade de um desenvolvimento histórico, Joaquim teria simplesmente querido enumerar as etapas ascendentes da vida espiritual; as figuras do Liber Figurarum, considerado autêntico, sugeririam três fases místicas, mas somente duas idades históricas, antes e depois de Jesus Cristo.
  
Se bem que, pelo propósito operativo, transcenda a hermenêutica restritiva de Corbin, Agostinho, de alguma sorte, navega, por esses anos, nas mesmas águas. «A terceira revelação», escreve,

é a da íntima e profunda e secreta relação de cada um consigo próprio. Como poderia ela vir de fora com um pregador, um anunciador, um evangelista, que eu e os outros pudéssemos ver com os nossos olhos de carne e pudéssemos arquivar nos pobres e falíveis anais da nossa história? Cristo foi o mensageiro último de que os homens puderam ser testemunhas. O que não quer dizer que tivesse sido a última mensagem.

Ao dealbar a década de 60, em “Considerando o Quinto Império”, reformula essa revelação pelo anúncio «de que a criança deve ser o modelo de vida e que por ela se estabelecerá na terra o Reino do Espírito Santo». Por muito que se queira aproximar esta criança divinizada dos viri spiritualis de Joaquim, será forçoso reconhecer quão longe estamos já do visionário calabrês. Na recusa da heresia joaquimita desenha-se a invenção agostiniana.
Educação de Portugal, escrita logo em 1970, inaugura uma fase de reconciliação com o joaquimismo. Ainda quando assinala a heresia, Agostinho limita-se a identificar-lhe os termos, sem tomar outro partido que não seja o de se conformar com o bom abade. Compreende-se. No iter evolutivo do seu pensamento, já a Liberdade sobreleva a Fraternidade, afrouxando os ditames de submissão hierárquica que esta, sob pena de quebra, opressivamente predispunha.

3. Parte do que Agostinho afirma do culto popular do Espírito Santo levanta-nos problemas pelos seus frágeis fundamentos históricos e etnológicos. Afeiçoada a ciência dos factos aos prejuízos do profeta, só como recriação mítica poderemos considerar sem mácula a sua invenção poética. 
 A problemática concepção agostiniana, bem patente e insistente em escritos vários dos anos 80, mas já amplamente desenvolvida no artigo “Algumas considerações sobre o culto popular do Espírito Santo”, de 1967, advém do modo como relaciona o culto com o joaquimismo, supostamente chegado a Portugal no reinado de D. Dinis, pela mão de Isabel e dos franciscanos espirituais que a acompanharam.
Diz Agostinho que «logo que a nova rainha ocupou a vila de Alenquer, seu presente de noivado, surge em Portugal, espalhando-se rapidamente por todo o País, o culto popular do Espírito Santo ou do Divino». Diz também que,

na sua forma mais perfeita, consistia a Festa, celebrada por altura do Pentecostes, na coroação de um imperador do Império do Espírito Santo, geralmente uma criança, na celebração de um banquete ritual, gratuito para todos que o quisessem, e no libertarem-se presos da cadeia local.

E acrescenta:

Com a Contra-Reforma, de estrita ortodoxia, o culto declinou rapidamente em Portugal continental, dele só restando vestígios, mas algumas ideias fundamentais aparecem em escritores como Fernão Lopes, Camões, Vieira e Fernando Pessoa, e cerimónias populares são ainda vivas nos Açores, na Madeira e no Brasil.

No texto citado, “O homem e as civilizações”, embora reconheça, pensando talvez em Prisciliano, que se terão «agregado à concepção de Joaquim de Flora elementos de origem mais antiga que faziam parte da vivência do povo», Agostinho, como vimos, afirma que foi em Alenquer, e com a nova rainha, que o culto surgiu.
Moisés Espírito Santo, nas Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa, lembra, porém, que certas capelas beirãs do Espírito Santo já existiam quando Isabel nasceu; e que Rocha Beirante, no seu Santarém Quinhentista, «diz igualmente que o culto do Espírito Santo em Santarém é anterior à Rainha Santa». No mais, o autor sublinha uma evidência:

Os cultos populares não são, nem nunca foram, nem poderão ser, «instituídos» por decreto ou pela boa-vontade de uma pessoa, seja ela rainha, beata ou santa. Certos autores tomam as sociedades e as culturas por multidões descerebradas que se põem a cultuar um deus por ordem ou a pedido de um rei ou governante. É possível imaginar um dirigente ou monarca, ou as respectivas esposas, a decretar um ritual, a ordem das procissões, os dizeres dos pendões? Como se os povos precisassem das directivas dos dirigentes para fazer a sua festa! Os rituais, como as religiões, obedecem exclusivamente aos ditames e à dinâmica da cultura e sempre inseridos na tradição. Aquela paternidade é uma invenção de Frei Manuel da Esperança, cronista da Ordem franciscana. No «dia da fundação», em Alenquer, a Rainha Santa até teria cercado a vila com um «pavio de cera a arder, o qual, preso à igreja do Espírito Santo, dava a volta à vila»… (Invenção milagrosa! Como pode um pavio de cera arder nestas circunstâncias?) Os informantes do cronista teriam referido «um círio», não «um pavio»; um círio é a deslocação de uma povoação, atrás de um pendão, a um lugar santo em obediência a um voto antigo, podendo tomar a forma de uma procissão; o círio de Alenquer dava a volta à vila a partir da capela.   

Diferente será afirmar que o patrocínio régio possa ter contribuído para a institucionalização do culto popular, conferindo-lhe «um aparato nunca antes visto», como acentua Manuel J. Gandra. Nesta linha, admitamos, como hipótese de raciocínio, que com Dinis e Isabel se tenham insinuado laivos de joaquimismo no ritual da Festa do Império, ficando, porém, por averiguar, se, e em que medida, o culto assim afeiçoado irradiou em território nacional, notadamente por efeito da acção real.
A respeito do elo que supõe ligar o joaquimismo à festa do Império, Agostinho, de ordinário assertivo, denota cautela. Pelo menos nas “Dez Notas…” de 1985, onde começa por afirmar que «parece assente, sob o ponto de vista histórico, que o Culto Popular do Espírito Santo (…) tem sua origem no pensamento de Joaquim de Flora», para, mais à frente, não deixar de reconhecer que

da questão teológica não há, como era de esperar, nenhum vestígio no Culto Popular, a não ser que a Igreja, sobretudo depois de Trento, sempre fez todo o possível por eliminar o Culto. Mas nada nos garante que não haja entre essa ideia fundamental de Joaquim de Flora e as vivências do Povo de Portugal um elo da maior importância, que por outro lado se liga, ao que penso, ao problema da existência ou não existência de pensamento filosófico na Cultura Portuguesa, quer nos intelectuais quer no Povo.

Concluindo pela usual resposta negativa a esta sua velha questão, porque, «para o Português, o importante não é a Filosofia, é a Vida, com toda a sua variedade e todas as suas contradições, que pode não aceitar, mas corajosamente assume», o pensador atribui em seguida aos «certamente analfabetos portugueses» a façanha de resolverem, no contexto «concreto» em que se moviam, os «problemas de bem difícil contexto teológico e filosófico» em cuja solução não foram tão longe «os atilados, inspirados e eruditos teólogos».
Que solução foi essa? Uma «popular intuição»: «o estabelecer-se um Império do Espírito Santo» não «implicava o desaparecimento da Igreja de Cristo; Deus se revelaria sempre trino em cada uma das Pessoas que nele haveria que distinguir, tanto no Eterno como no Tempo, e até, talvez, haveria uma Divina Igreja cada vez mais se alargando no domínio dos fenómenos, cada vez abrangendo maior número de homens».
Fica por saber o que, sem o desaparecimento da Igreja de Cristo, resta afinal do problemático joaquimismo. Quando, em seguida, concretiza as feições da nova idade histórica tal como os portugueses a teriam visionado, depara-se-nos o intuito de, «sem quebra com a Igreja, ou as Igrejas, anteriores, levar esta última, verdadeiramente católica ou universal, ao todo da Ecúmena». Reincidindo nas ideias medievas da sua fase brasileira, Agostinho apresenta-nos um proselitismo de conversão mais paraclético do que cristológico, desta sorte favorecido pelo desvio da ênfase para a unidade essente do Espírito. 
Fica, sobretudo, por entender o prodígio dessa intuição, que não se vislumbra possível sem o conhecimento dos termos – filosóficos e teológicos – do problema a resolver. Na obra já citada, conta Moisés Espírito Santo como «Frei Bartolomeu dos Mártires deplorava a ignorância dos Minhotos que pensavam cair nas boas graças do bispo saindo ao seu encontro a gritar «Viva a Santíssima Trindade, que é irmã de Nossa Senhora!». E acrescenta:

Na região da Batalha, onde se celebra, pelo menos desde o século XV, um importante e imponente bodo de pão «contra as formigas», em honra da Santíssima Trindade, supõe-se que o ente a quem se dirige o culto é «uma santa mais importante do que as outras», pois é tratada no superlativo e tem um nome feminino. Na percepção religiosa dos Beirões, nem sequer está implícito que Deus seja eterno, porque se ouve dizer com a maior das canduras: «Isto já vem dos tempos antigos, ainda Deus não era nascido.» Jesus Cristo é a única expressão de Deus. Para dois mil anos de cristianismo, o balanço não é encorajador!

Ainda segundo o etnólogo, episódio convergente foi vivido por Jaime Cortesão, ao verificar ocasionalmente que, perante uma escultura da Santíssima Trindade, impropriamente chamada do Espírito Santo, os fiéis não identificavam este último

com a pomba, mas com o Ancião de barbas onduladas, coroado, e de semblante carregado, que sustém a cruz nas mãos. Jaime Cortesão apercebeu-se bem desse importante pormenor; notou o facto mas, segundo ele próprio diz, não entendeu a razão. A razão é esta: para os Judeus-secretos, o Espírito Santo equivale a Yaveh, que é o ancião da escultura.

Eis o motivo por que Agostinho não encontrou no culto popular do Espírito Santo vestígios da questão teológica suscitada pela heresia joaquimita: nunca ali terão estado presentes. Escreve Moisés Espírito Santo: «O culto vem directa e inteiramente da tradição hebraica». Acto contínuo, enfatiza: «O Espírito Santo dos cultos populares não é a terceira pessoa da Trindade Cristã». É, sim, conformemente àquela tradição, a força ou princípio vital que enforma, sustenta e renova o Universo, tão certo ser o judaísmo o culto que electivamente se dirige ao aspecto criador da Divindade: os Elohim que, no Genesis, proclamam a bondade da criação.
A argumentação do etnólogo é opulenta e tendencialmente exaustiva, como se verifica pela leitura do seu estudo, escorado no fundo conhecimento das religiões e da tradição etnográfica e num trabalho de campo desenvolvido na década de 80, sobretudo nas regiões de Leiria e da Beira Baixa, reconhecidos pólos de proliferação judaica onde, no terreno, registou fenómenos cultuais persistindo pelos séculos.
Não obstante, Agostinho, na mesma época, parece apenas levar em conta o culto do Divino nos Açores, de resto de origem beirã. É possível que esta redução influencie o erro de, em “O Império do Passado e do Futuro”, afirmar que «logo», isto é, desde a suposta criação da festa do Império pela Rainha Santa Isabel, o povo coroou «seu real monarca a genial imaginação da criança, sufocada por escola alguma», depois de, como se viu, ajuizar que isso sucedia «geralmente».
Não há notícia histórica da coroação de um menino nos primórdios do culto. Por longo tempo, coroaram-se adultos – homens do povo, gente de baixa condição – sem que se possa asseverar quando e por que razão surge a criança no centro da cerimónia. Segundo António Quadros, nas Festas do Penedo, em Sintra, ainda activas no século passado, «as coroas (feitas inicialmente para adultos), são grandes demais para os meninos Imperadores, pelo que há sempre pessoas que as seguram, simulando-se no entanto que estão colocadas nas cabeças das crianças».
Noutros lugares, como Alcabideche, onde as festas perduraram até ao princípio do século XX, continuaram os adultos a ser coroados. Em Nisa, no século XIX, o imperador era um mancebo. No litoral, como na Beira Baixa, Moisés Espírito Santo mostra ser regra a coroação de um «benfeitor» – um emigrante que enriqueceu, um homem próspero da aldeia – como imperador ou juiz.
Por que surge a criança coroada? Não se sabe. Mas parece insustentável a razão sugerida por Agostinho, na qual, aliás, suspeito existir anacrónica projecção da sua pedagogia.
Este intento parece tê-lo conduzido à perigosa inversão simbólica concretizada pela divinização da criança. Sempre Agostinho se mostrou pouco atreito ao sério código ocultista. Daí, a meu ver, a dificuldade do seu ecumenismo em superar os dogmas. Se assim se pode dizer, é um exoterismo sem esoterismo. A boa vontade, decerto louvável, é precária.
Vem a propósito o seu ensaio “De como os Portugueses retomaram a Ilha dos Amores”, onde emerge a figura, jocosa e dúbia, do estucador de Alpiarça, um pobre diabo que replica António Telmo. Não terá Camões, como pretende Agostinho, aludido a Zoroastro ou à Cabala (que implica sobretudo Fiama)? Com respeito àquele, e embora o tenha feito, por mais de uma vez, como Telmo mostrou, não precisaria sequer de o fazer. Bastava-lhe a insólita atenção à «matéria perigosa» do cristianismo gnóstico de Tomé, com a qual pôde Telmo, no Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, encontrar um elo de ligação entre a Pérsia e o priscilianismo.
Esqueceu-se Agostinho do que talvez soubesse por René Guénon: as verdades tradicionais não se escancaram. Revelam-se. Mostram-se para se ocultar. É da natureza das coisas: esotérico quer dizer interior. E Guénon adita razões de defesa: da doutrina e do iniciado. Se é preceito evangélico não dar pérolas a porcos, seria insânia oferecê-las aos monstros do Palácio dos Estaus. Agostinho passa como cão por vinha vindimada perante o labor probatório do discípulo, que, como o de Fiama, é plausível quando não é inequívoco.
Para ele tudo vem já do fundo cultural inato dessa improvável abstracção a que chamou Portugal, «como se tudo o atribuído a persas, indianos ou judeus fosse do tesouro, comum e nativo, dos portugueses de todos os tempos». Curiosamente, relançando antiga freima, reincide na sugestão de que Camões, na Ilha dos Amores, sofreu a influência de Joaquim de Flora, porque ali soube congraçar o tempo com a eternidade, «como se a nossa peça fundamental» – escreve – «embora com personagens diferentes, uns eternos, outros perituros, se representasse em dois palcos da mais exacta correspondência», com o que Camões daria expressão a um conceito «tão da natureza do povo de Portugal que imediato o inseriu em sua religião popular».
Colossal estranheza! Se realmente sabemos do encontro do tempo e da eternidade na Ilha, foi porque Telmo, vivendo a verdade do símbolo sob o signo de Hermes, o demonstrou numa leitura aguda e arguta, que reconduz o desenrolar da «peça» ao palco luminoso do mundus imaginalis, onde os espíritos se corporizam e os corpos se espiritualizam.
Desprovida daquela acuidade que só a exacção da letra, na extensão do texto e no contexto do entrecho, à vista de uma significação global, permite garantir, a leitura agostiniana da Ilha instituiu uma vaga alegoria: rochedo batido pelas ondas do providencialismo no oceano das ideias. Tudo isto é irónico em quem conviveu com Eudoro e recomendou a Telmo a leitura de Américo Castro e Henry Corbin…
Num ensaio que dediquei ao presumível marranismo de Agostinho, avancei a hipótese, congruente com o criptojudaísmo do culto, de a coroação do Menino traduzir a intromissão, no cerimonial, da figura de Metatron, o Anjo da Face da kabbalah que Telmo viu cifrado no Portal Sul dos Jerónimos. «Tal é a razão», ensina André Benzimra, «pela qual se lhe dá o nome de pequeno YHVH. E se ele é representado sob os traços de um adolescente, é para se significar que se trata de um Deus ainda na infância.» Intermediário celeste, mediador do Céu e da Terra e irmão-gémeo da Shekinah, responde ainda ao nome de Schadaï, que, na lição de Benzimra, é «o federador do Céu e da Terra, o grande Reconciliador de qualquer discórdia», e que, naquele seu outro aspecto a que melhor convém o nome de El-Schadaï, «será chamado a desempenhar um papel primordial nos tempos messiânicos». Numa perspectiva cristo-angelológica Metatron surge, assim, em correspondência com o Espírito Santo.
Aqui, importa de novo citar Moisés Espírito Santo, quando trata da figura do Imperador no culto do Divino: «Os Hebreus não faziam distinção entre Deus de Israel, Rei de Israel, «Anjo do Senhor» ou Enviado de Deus e Messias». Pouco adiante, acrescenta: «O Rei de Israel tanto era o «Anjo de Deus» como o próprio Deus, que toma a figura humana para executar as suas vinganças. Segundo a concepção religiosa dos Semitas, Deus desdobrava-se em personagens terrestres». Por fim, consigna:

É muito significativo que, da região de Leiria à do Fundão, se designe a personagem do imperador, do rei ou do juiz desta cerimónia como o «Espírito Santo», isto é, a sua incarnação ou representação terrestre. O imperador é um sósia ou um duplo do Espírito Santo, do Messias. O ritual constitui assim um anúncio, uma catequização e uma promessa desse evento.

Eis um dos inúmeros argumentos que o etnólogo aduz na demonstração de que o culto popular do Espírito Santo mais não é, entre nós, na sua essência profunda, que uma manifestação críptica das celebrações do Pentecostes judaico.
Esboço um sorriso, ao ler, em Reflexão à margem da Literatura Portuguesa, que

os judeus por seu turno não levantavam oposição alguma a assistir reverentemente a esse culto do Espírito Santo, o qual, como já foi dito, descera em novo Pentecostes sobre a nação portuguesa, sagrando-a para seu apostolado.

Não preciso de explicar por quê.
           
Alenquer, 17 de Setembro de 2016.


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terça-feira, 20 de setembro de 2016

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

REAL... IRREAL... SURREAL... (221)

Graffiti de Basquiat

Acusam-me de Mágoa e Desalento
Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.

Carlos de Oliveira, in 'Mãe Pobre' 


Selecção de António Tapadinhas

domingo, 18 de setembro de 2016

«CONTOS SECRETOS» DE ANTÓNIO TELMO CHEGAM ÀS BERTRAND E ÀS FNAC


Contos Secretos seguidos de A Goga, Volume V das Obras Completas de António Telmo, editado pela Zéfiro com o apoio institucional e científico do Projecto António Telmo. Vida e Obra, acaba de chegar às principais cadeias portuguesas de comércio livreiro. Prefaciado por Miguel Real, e com um posfácio de Antónhio Carlos Carvalho sobre a figura de Isaac Abravanel, este novo volume da opera omnia oferece ao leitor a publicação de duas peças de teatro inéditas, A Goga A Venda dos Painéis, esta última inacabada. Continua assim a ser reposto no mercado o cânone télmico publicado em vida do filósofo, ao mesmo tempo que do seu espólio vão sendo exumadas centenas de páginas que eram desconhecidas. Mais do que um compromisso com o passado, a perpetuidade de um autor é um olhar para o futuro, com espírito de serviço e sentido de responsabilidade. Porque um filósofo não é propriedade de ninguém.  

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sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Versículos


(Mantras)
As palavras são
a  vibração da vibração.
Verbo(s).


(Luz)
Um retrato é uma invenção…
maravilhosa.
Depende da regulação
da velocidade do disparo
da abertura do diafragma.
Luz e sombra,
impressão de Luz.


(arco-íris)
Pela estrada da vida
vamos
em busca do diamante eterno.
Luz.


Luís Santos

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

FILOSOFIA DA FELICIDADE


Neste início de Setembro quando muitos dos meus amigos já regressaram da felicidade das suas merecidas férias aqui fica uma sugestão que partilho convosco para continuar
a alimentar esse anseio de todos nós, A FELICIDADE, que poderão ver no poema formatado, neste link:

http://www.euclidescavaco.com/Poemas_Ilustrados/Filosofia_da_Felicidade/index.htm

Desejos duma semana repleta de FELICIDADE.

Euclides Cavaco
cavaco@sympatico.ca
www.euclidescavaco.com


quarta-feira, 14 de setembro de 2016

De Angola, algumas histórias


por Francisco Gomes Amorim

1.- História quase triste
A Crise do Congo ex-belga entre 1960-1966 foi um período de imensa agitação que terminou com a tomada do poder por Mobutu. A crise tomou várias formas, entre elas as lutas anticoloniais (de uma forma geral os belgas eram detestados), conflitos tribais, uma guerra separatista no Katanga, um descalabro, com uma onda de violência e de selvajaria assolando todo o país, que causou a morte a mais de 100.000 pessoas.
Os brancos que lá viviam, muitos deles desde nascença, tiveram que fugir de qualquer modo. A Bélgica mandou buscar os seus súbditos. Portugal parece que até hoje não sabe o que são súbditos!
Um grupo de cerca de uma dúzia de pessoas, em dois jeeps, um deles carregando uma metralhadora, que felizmente não foi utilizada, conseguiu atravessar por pequenas picadas até Angola.
Desse grupo fez parte um casal, com dois filhos pequenos. Ele dizia que tinha trabalhado numa fábrica de cerveja e foi pedir emprego na Cuca, onde foi admitido para um departamento que se criou, de estatística.
Calado, cumpridor, mas sempre um ar de infelicidade. Volta e meia não ia trabalhar. O seu abatimento psíquico não recuperava com facilidade. Tudo quanto tinham haviam perdido. Agora estavam mais tranquilos, vida a refazer-se, crianças na escola, apesar de em Angola ter já começado o “terrorismo” que não se fazia sentir em Luanda.
Um belo dia o Dias – era este o seu sobrenome – sentiu-se pior e foi internado na casa de saúde com quem a Cuca tinha convénio.
Fomos visitá-lo. Estava abatido e o médico, um coimbrão inveterado, tratava-o de transtornos psíquicos. Todos os dias procurávamos saber da sua saúde, sem receber nenhuma notícia de melhora.
Uma tarde, estava eu a entrar para o meu carro para seguir para Nova Lisboa (Huambo) o porteiro vem a correr dizer que a esposa do sr. Dias queria falar comigo e era muito urgente. Fui atender.
“Só para informar que vou levar o meu marido para casa. Assim ele morre ao pé da mulher e dos filhos.”
Fiquei aterrado! O que se passaria? Ela disse que o médico não o tratava, que ela estava a vê-lo definhar e via que ele ia morrer logo.
Pedi-lhe para não fazer nada. “Vou já para aí.”
Já não fiz a viagem para o sul. Pedi na Companhia que procurassem o médico dele e que corresse para a casa de saúde, onde fui encontrar o doente com um aspecto horrível: muito magro, cor acastanhada, sofrendo.
O médico não apareceu; entretanto entrou o diretor da clínica, um bom cirurgião, a quem contei o que se passava. Respondeu-me que era responsabilidade do médico dele.
“Não, não é, doutor. É sua. O senhor é o diretor da clínica, e pode ter a certeza que se acontecer alguma coisa vou processá-los.” Foi ver o doente, e eu ao lado a acompanhar.
Levantou o lençol e viu que a barriga do doente parecia de um defunto. Septicemia, grave. Pediu os exames que deveriam ter sido feitos, e a enfermeira disse que não havia exames!
“Quero os exames.... (uma porção deles) prontos em meia hora. Chame o anestesista, porque vamos ter que operar já. Depois virou-se para mim e disse: “Eu não toco neste doente sem que o médico dele esteja aqui. Porque se ele morrer durante a operação ele é quem vai assumir a culpa.”
Sai um batalhão de gente à procura desse coimbrão. A sala de operações pronta: cirurgião, anestesista, auxiliares, e nada de começar.
O dr. coimbrão avisado da gravidade do caso em vez de ir ver o doente foi ver o futebol! A Académica jogava nesse dia em Luanda contra um clube de Luanda.
Um colega da Cuca descobriu-o ali, agarrou-o por um braço e levou-o para a clínica. Mal entrou puseram-lhe uma máscara, o cirurgião mandou-o ficar num canto, quieto, dizendo-lhe que se acontecesse alguma coisa ele iria ser responsabilizado.
Demorou uma hora a operação e quem estava lá, como a esposa do Dias, e mais dois colegas da Cuca, num total silêncio. Por fim o médico que o operou sai, chama-me e diz: “Se tivesse sido feito na hora, era uma facadinha e dois pontos. Assim tivemos que cortar um pouco do intestino, limpar tudo, e agora as primeiras 48 horas são fundamentais. Se as vencer pode ser que se recomponha.
Vivemos essas horas num sobressalto. Passadas, o médico volta a dizer que fica mais uma semana na clínica e se tudo correr bem poderá ir para casa!
Santo Deus! Que alívio. O Dias estava fora de perigo. A mulher chorava de comoção e eu consegui seguir para Nova Lisboa.

***
Histórias alegres
2.- O telegrama
Lá por volta do final dos anos 40 ou 50 do finado século XX, foi quando Portugal reparou que tinha territórios excepcionais no ultramar, e começou devagarinho, e a medo, a abrir as portas à “emigração” sobretudo para Angola e Moçambique.
Chamar emigração dentro do mesmo país...
Há absurdos na história que, hoje contados, as pessoas pensam que é mentira, como por exemplo ser necessário para ir para Angola, uma “Carta de chamada”, obrigando-se o “chamador” – empresa – a responsabilizar-se por devolver o cidadão à metrópole em caso de... nem se sabe mais do que!
São histórias que pertencem não ao século findo, mas na verdade aos séculos muito passados!
Vale contar duas historinhas:
- Um jovem português sai do pátrio lar e decide ir para Angola. Os pais, chorosos pedem-lhe insistentemente que assim que lá chegue dê notícias. África ainda era o continente onde cobras e leões se passeavam nas ruas das pequenas cidades, as doenças tropicais grassavam e matavam sem que o doente disso se apercebesse, e o terror ficava na família que, junto à lareira, chorava de saudades à espera de notícias.
O emigrante, a quem chamaremos Nuno (porque precisa de um nome) nunca mais disse nada, e os pais sofriam. A todos os conhecidos e até desconhecidos que iam para aquela terra pediam, pelo amor de Deus e dos anjos, que lhes dessem notícias do filho e, sobretudo, que lhe pedissem para escrever aos pais.
Os portadores dessa incumbência se encontravam ou não o “fugitivo” também pouco ou nada diziam, mas alguns insistiam: “Deixa de ser preguiçoso. Escreve aos teus pais. Estão a ficar velhotes e sofrem muito com a falta de notícias.”
Nuno dizia a tudo que sim, que tinham razão e iria escrever. Mas... nada.  
Um dia, depois de muito instado, Nuno tomou uma atitude heroica, apesar de passados já uns três ou quatro anos depois que chegara a Luanda.
Foi aos correios e mandou um telegrama aos pais:
- CHEGUEI  BEM  STOP  NUNO.
***
3.- O casamento
Outro emigrante, mais ou menos da mesma época. Os pais menos preocupados com o recebimento de notícias, mas com o ambiente que o filho iria encontrar, advertiam:
- Meu filho, quando começares a ver que as mulheres negras afinal não são tão escuras, toma cuidado.
- Meu pai, não precisa se preocupar. Vejo muito bem e jamais irei confundir as cores das peles.
Não passou muito tempo, mas como o Nuno, André, o novo personagem, também não era dado a escritas.
Recebe uma carta do pai que volta a aconselhá-lo que tomasse atenção ao olhar para as mulheres, e... “se vires que estão a ficar mais claras...”
André encheu-se de coragem e respondeu:
“Pai: não precisas ficar preocupado comigo. Sei muito bem distinguir o que me pretendes avisar. Quando aqui cheguei vi milhares de mulheres negras, por todo o lado, o que muito me impressionou. Mas não sei o que passou nesta terra porque desde há algum tempo que não vejo a não ser uma ou outra bem velhinha. De resto, podem não ser louras, mas não encontro mais mulheres negras. Todas têm uma pele linda, clara, muito mais bonita que as trigueiras dessa nossa terra.
E olha pai: já estou casado com uma linda senhora desta terra, tenho um filho, e vivo entusiasmado, para não dizer excitado ao ver todas as outras com quem me cruzo nas ruas, ou encontro nas lojas.”

Era assim.... em Angola.
8 / 09 / 2016

terça-feira, 13 de setembro de 2016

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

Ah! Na tarde de Sábado, a família montou a árvore de natal e o presépio. 
Digo a família pois o pai que não é cristão e só é pai de cristãs por compromisso de casamento, o pai também colaborou na decoração do pequeno pinheiro que durante este mês comporá a nossa sala de estar. 


Manhã de brincadeiras. Enquanto isso, ao som do poeta Dylan, deixei que o almoço chegasse ao sabor da leitura. 



O ensino, sempre o ensino, 
da prioridade à paixão, 
com reformas e emendas 
                       e adendas em sucessão 
acabou fazendo o pino. 


Subscrevo as palavras da Professora Filomena Mónica. (1) 
Ou reformamos o nosso sistema de ensino ou ficaremos para trás em termos de desenvolvimento. 


Coloquemos uma pergunta: 
Qual(is) o(s) objectivo(s) que queremos para um sistema de ensino? 
A resposta genérica é fácil e simples. Dar conhecimento a uma população de forma a que aí se produza e reproduza sabedoria, aptidões e ainda a preparação para a vida activa. 
Como o conseguir é a questão. 
Temos dois modos para abordar este desafio. 
Um, o mais vulgar, passa por enumerar problemas, identificar os males e avançar palpites e soluções. Geralmente misturam-se items de ordem administrativa e organizacional com outros domínios estrictamente técnicos e científicos, sem jamais se abandonar o discurso e um modus operandi político e ideológico. 
Mas podemos ser mais frios e encarar esta problemática com mais distância, o mesmo é dizer como se se tratasse de um fenómeno do mesmo género daqueles que não dependem da nossa consciência ou capacidade de compreensão. É esta a outra via para resolver a pergunta fulcral, como criar um sistema de ensino que dê formação intelectual e preparação profissional aos portugueses. Neste caso os procedimentos devem estar mais de acordo com o manuseamento de instrumentos e técnicas de análise ao jeito operatório das ciências, o que se materializa na formulação de hipóteses e respectivas verificações empíricas com o que poderemos sair do simples palavreado opinativo. 
Com isto, está em aberto indagar se faz sentido este último ângulo de abordagem. Respondo pela afirmativa; embora a matéria com que lidamos seja de natureza cultural – produto da actividade humana – e, por isso, transformável por esse mesmo meio, com o que perde a qualidade de factologia científica, não me parece, ainda assim que algo haja que nos impeça de a encaramos segundo um modo científico de agir. 
Ora nesta perspectiva, há uma interrogação a que interessa previamente encontrar uma resposta. Coloquêmo-la da maneira seguinte: 
Há algum elemento que independentemente da nossa vontade ou consciência, possa ser considerado a parcela mínima num sistema de ensino? Isto é, há algum elemento que, independentemente de querermos ou não, possa ser considerado e isolado e sem o qual seja impossível falar de um sistema de ensino de tal forma que, se o anulássemos, puséssemos imediatamente entre parêntesis ou desarticulássemos, até, um qualquer sistema de ensino? 
Será a partir desse elemento mínimo que melhor poderemos identificar aquilo que é necessário para formar bem a população portuguesa e, em função disso, igualmente ponderar os aspectos orgânicos e organizacionais que isso implica. É aí que todas as nossas ideias, teorias e propostas devem ser verificadas. 
Consideremo-lo pois o nosso sistema de referência. 



E a maior homenagem ao nosso génio desperdiçador teve o seu pontapé de saída com o sorteio das equipas que foram apuradas que, desse modo, ficaram a conhecer os respectivos adversários.
Refiro-me ao Euro 2004, é bom de ver, o tal dos dez estádios que haverão de ficar às moscas e que respondem, justamente, àquilo que o país mais precisava neste momento. 

E só os lacaios conseguem um descaramento tão grande. 
O estado gastou menos com aquelas construções do que na casa da música, afirma uma pena de serviço com o que nem se chega a entender o que se pretende a partir daí. Certamente para não ficar para trás, também houve quem sugerisse que aquele evento pode muito bem vir a ser o motor da nossa retoma económica. 

Não corremos a tempo com esta gente 
e resta agora quem se lamente. 



E o Dr. Eduardo lá se despediu do Cardeal e, à altura do conjunto das cartinhas que escreveu, embora não vendo “(…) o interlocutor como um adversário de um jogo que seria preciso vencer (…)”, (2) não deixou de guardar para o fim os dardos repetidos e vulgares das posições da Igreja perante muitas manifestações da contemporaneidade que a estariam a ultrapassar devido ao conservadorismo da mesma. 
Talvez por isso se possa registar a curiosidade de lermos alguém que se vê como no mínimo agnóstico e que acusa aquela instituição de não ser capaz de compreender a evolução da sexualidade e da família, seja o mesmo que mais adiante afirma que ela “(…) tem de mostrar como intervir nestes problemas delicados para ajudar cada um no seu próprio caminho.” (3) Afinal em que ficamos? 
E o doutoral Professor parece nem entender que a família de que fala é um arquétipo que o século XIX criou e que por isso mesmo – a menos que fale da tradição judaica o que seria delicioso – teve uma expressão muito limitada no tempo e no espaço. 

Enfim, lusa sapiência, professoral… 

Mas não resisto a transcrever um período em que, cheio de humildade e referindo-se ao diálogo epistolar em causa, o génio dá largas ao pensamento. 
“(…) Espero que ele tenha contribuído para que cada um encontre na sua própria vida a razão profunda que lhe dá a força de querer viver. (…)” (4) 
Palavras, para quê? O homem não faz por menos. 



Chegou a vez de Manuel Monteiro ser levado ao colo na comunicação social. 



E o Dezembro faz com que a luz se escoe pela metade das dezassete horas. 



E neste planeta tão louco e tão belo, tão trágico e tão empolgante, ainda há espaço para que se descubra agora uma nova espécie de baleia. 


 Alhos Vedros 
   01/12/2003 


NOTAS 

(1) Mónica, Maria Filomena, CONTRA O ENSINO DA CONSPIRAÇÃO, p. 20 
(2) Prado Coelho, Eduardo do, A IGREJA CATÓLICA VIVE EM DISCURSO DUPLO, p. 8 
(3) idem, ibidem 
(4) idem, p. 9 


CITAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS 

Mónica, Maria Filomena, CONTRA O ENSINO DA CONSPIRAÇÃO, Entrevista a João Pombeiro, In “Grande Reportagem”, nº. 151, Ano XIII, 3ª. Série, de 29/11/2003 
Prado Coelho, Eduardo do, A IGREJA CATÓLICA VIVE EM DISCURSO DUPLO, In “Diário de Notícias”, nº. 49192, de 03/11/2003

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

REAL... IRREAL... SURREAL.. (220)

Rosa, Autor António Tapadinhas
Acrílico sobre Cartolina, 50x50 cm

Coroai-me de Rosas

Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade,
De rosas —

Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!

Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.

Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa
Selecção de António Tapadinhas

sábado, 10 de setembro de 2016

Crepúsculo, de Lucas Rosa

Essencialmente, Portugal é um país cristão e, neste sentido, os portugueses são "mensageiros" de cristo, da paz universal, do Amor. Quem não perceber isto, não percebe nada. Foi esta a ideia dominante que norteou a consolidação de Portugal como território independente, da mesma forma que o Projeto da expansão ultramarina portuguesa. O que não é contraditório com o facto de hoje nos constituirmos como um estado laico. A ideia de Cristo sobre a importância do Amor e de fraternidade universal entre a humanidade, é muito superior à ideia de luta de classes como motor da história, embora no fundo, bem lá no fundo, não sejam excludentes uma da outra. Essencialmente, ser cristão é o mesmo que ser socialista. Mas cremos que o marxismo é, em larga medida, uma insuficiente necessidade histórica, uma interpretação desviada do cristianismo primitivo, dados os erros do catolicismo inquisitorial, do desenvolvimento do protestantismo religioso e do maquiavelismo político. A inquisição católica ao segregar outros credos religiosos, outras lógicas, racionais ou não, de compreensão do universo, transviou-se. Ser católico, por definição, é ser universal e não se pode ser universal sem o reconhecimento do outro, da sua razoabilidade, da diversidade cultural que nos constitui. Por isso, é que enquanto marxistas, socialistas, anarquistas (e aqui relembrando Proudhon, Bakunin, etc, mas sem entrar no debate da diversificação da filosofia anarquista), não aprenderem a dar a mão a uma ideia religiosa, ecuménica, que os ultrapassa, mas que igualmente seja extensível a ateus, não poderão atingir uma proposta de organização social, de Vida, pouco mais que sofrível. Todos, cristãos ou islamitas, indús, budistas ou ateus, precisam de saber que as liberdades essenciais são valores absolutamente inalienáveis, a liberdade até de não ser livre. Os portugueses precisam não esquecer o essencial espírito ecuménico que sempre os caracterizou, pois que faz parte da sua primordial natureza cultural, criando etapas primeiras de uma ininterrupta expansão que já não (só) ultramarina. É a isto que, na senda de muitos outros, chamamos de "Quinto Império", em síntese, não hajam confusões, um império de amor e de serviço, pelo possível bem de todos, seja na terra, seja no céu.
(Conseguem ver o Cristo-Rei?) - Lucas Rosa

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

CRÍTICA

OS MISTÉRIOS DE JESUS
«Seria o Jesus Original» UM DEUS PAGÃO?
Por ABDUL CADRE
Na colecção PORTAS DO DESCONHECIDO, as Publicações Europa-América, em Janeiro de 2002 deram à estampa o livro de Timothy Freke e Peter Gandy  com o título acima reproduzido, que respeita literalmente o do original: The Jesus Mysteries – Was the original Jesus a pagan god?
Na contracapa pode ler-se: «Desvendar na vida de Cristo um ciclo de histórias míticas e arquetípicas, comuns a religiões pagãs, é a proposta desta obra. Ao contrário duma perspectiva literalistas que lê nos Evangelhos a vida real dum Deus nascido homem, os autores revelam-nos que as Sagradas Escrituras ocultam, na realidade, uma série de alegorias mitológicas herdadas do Paganismo: a vida de Cristo é a vida de Mitra, Osíris, Dionísio e outros deuses encarnados, nascidos de uma virgem, fazedores de milagres, mortos e ressuscitados. O que fica demonstrado sobre as verdadeiras origens do Cristianismo leva-nos a compreender a grande História dos Mistérios de Jesus Cristo
Tenho por hábito bastante rígido não comprar livros cujo título seja uma interrogação; se o autor não sabe nem se responsabiliza pelo que diz, por que carga de água nos pergunta? Quebrei o hábito porque precisamente a contracapa, como acima se constata, era aliciante e não interrogativa.
Os cristãos pouco indulgentes, quando ouvem falar de paganismo ficam um pouco arrepiados, embora sem razão para tal; etimologicamente falando, pagão designa o rural (conotado com o culto de Pã), sendo as suas crenças e práticas naturalmente mais plurais, menos sofisticadas e menos racionalizadas do que as urbanas, entre gregos e romanos.
Posto isto (e pela lei do menor esforço), sem perdermos o sentido do que dissemos, vamos usar o termo na acepção generalizada, pois serve bem o presente propósito.
Se tivesse cumprido o meu velho hábito, tinha ficado com a ideia de que os autores de Os Mistérios de Jesus nada nos queriam dizer sobre investigações suas e apenas jogavam forte na excitação comum de hipóteses assentes em não mais que imaginações desbragadas.
Acabei por constatar que o livro tem bastante interesse, embora não tanto quanto a contracapa promete. Vale sobretudo pelo que coordena e confronta, mas nada inova nem nada traz que já não tenha sido tratado por outros autores, que fazem remontar o cristianismo às práticas e mitos que o precederam. Os autores – todos os autores – não criam do nada e temos de entender que o processo ensaístico pressupõe que quem escreve submeta com mais ou menos rigor e honestidade o que vêem e o que estudam ao que previamente são e pensam, porque nem mesmo os grandes autores estão isentos dos condicionalismos das envolventes sociais, políticas, religiosas e intelectuais.
Timothy e Peter, de algum modo tocados pelo new age e objectivamente adeptos da mitificação das eras, daí a ênfase que dão a Aquário e o que pode fazer pelo homem, sem se interrogarem sobre o que o homem pode fazer independentemente do peso das eras. Os demasiados «ses» que colocam, parecendo lamentações sobre o que poderia ser e não foi, são deslocados em ensaística da história das religiões, porque todos os problemas são o que são e o «se» não se pode colocar como problema pelo simples facto de não ter sido; só o que é faz história. Mais do que isto é falarmos do anedotário popular, quando se diz que, se não tivesse morrido, a minha avó ainda era viva.
A grande lógica e lei de que o velho deve morrer para dar lugar ao novo aplica-se a tudo: aos seres vivos, às ideias, às crenças, aos sapatos… o que constitui – até parece um paradoxo – a perenidade desses seres vivos, desses sapatos (mesmo que outros), porque de todas essas coisas se vai transmitir a essência que alimenta a necessidade de viver, de pensar, de comungar, de possuir. E essa essência é em qualquer época o substrato de tudo, porque os tempos não são feitos de compartimentos estanques.
As chamadas correntes pagãs, pela pluralidade das crenças e dos mitos que integravam (ou integram) constituíam um todo complexo, uma matéria plástica e, como tal, permanente e continuamente moldável, capaz de receber qualquer aporte, de se adaptar e de conviver, inclusive com o paradoxo, coisa que aos centralismos ideológicos naturalmente repugna. Dentro do paganismo – vendo-o como corrente – cada elo mostra-se por si só um sincretismo religioso. Ora, não são assim as religiões ditas reveladas; nestas é o dogma do «para sempre» que conforma a crença e não o «desde sempre», que identificaria a razão de crer e a tradição. Ou seja, a obediência e a submissão substituem a convivência e a emulação, claramente observável no cristianismo e que podemos atribuir à sua cedência ao imperialismo romano, no seu casamento contra-natura.
De qualquer forma, as religiões dominantes dos nossos dias caracterizam-se pelo que excluem e por mutuamente se excluírem. Os seu declarados ideais salvíficos não se caracterizam pela inclusão das diferenças, mas pela sua eliminação, inclusive, em situações limite, pela eliminação física das diferenças.
É por isso que não podemos dizer, como dizem os autores, que «se o cristianismo reconhecesse a sua dívida para com os antigos Mistérios, voltaria a ligar-se à corrente universal da evolução da espiritualidade humana e tornar-se um parceiro, não um adversário de todas as outras tradições religiosas que classifica como “obra do Diabo”»
Estes «ses» não têm cabimento: o cristianismo tem em si próprio uma pecha mortal, que é intitular-se, não uma religião entre muitas outras, mas a única religião verdadeira. Quem não está com os seus dogmas será condenado, mesmo que seja uma criança inocente. Aliás, por vergonha, arranjaram para as crianças um inferno menos quente. O cristianismo não tem iguais nem tem parceiros e tudo justifica pela «palavra de Deus», que é a palavra dos mentores. O próprio apregoado ecumenismo do catolicismo, que a dada altura esteve de moda, para parecer bem, é promovido a contragosto e com várias tentativas de subordinação dos outros aos seus exclusivos dogmas. A relativa conciliação com a Igreja Ortodoxa não afasta o mal-estar de sempre, resquícios certamente das mútuas excomunhões ao longo da História.
E tudo isto, ao contrário do que querem os autores, não tem a ver com aquilo que eles designam por peso morto – o Antigo Testamento – e da sua «ciosa divindade tribal», tem a ver com o seu imperialismo romano e com alguns dos seus dogmas – precisamente os mais caracterizadores – inconciliáveis com o bom-senso, com o pluralismo, com a tolerância, com o espírito crítico e até com a caridade.
Abdicar desses dogmas implicaria ser outra coisa e não o que é e o que a sua hierarquia e os seus crentes militantes não querem que deixe de ser ou, dito de outra forma, deixaria um vazio… e bem sabemos que a natureza abomina o vazio.
Ainda bem para todos nós e ainda bem para os cristãos que o Antigo Testamento possa ser o tal peso morto, isto é, algo que dificulta o andamento, mas não impede o caminho, que o contrário – sim – seria terrível e medonho para os «gentios» a submeter à escravatura ou a passar a fio de espada pelos escolhidos perante a satisfação de Iavé, que os escolheu e a quem prometeu a terra, o leite e o mel – todo o planeta.
O calcanhar de Aquiles da obra de Timothy e Peter, se assim podemos dizer, está em que, submetendo-se a um título interrogativo, fazendo pressupor um encaminhamento para a investigação e para análise, os autores pedem desculpa a cada passo pelas constatações e demonstrações ao mesmo tempo que avançam propostas de salvação do «cadáver adiado que procria», que enquadram no seu proselitismo típico do New Age…
E nós não somos capazes do conveniente distanciamento. Quando nos lembramos desse movimento festivo, há uma imagem forte que nos invade sempre a mente: Jesus Cristo, com colares coloridos e outros penduricalhos, flores no cabelo, dedos em «vê» e a dizer arrastadamente: «Tá-se bem».

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

O Rio do Espírito


por Risoleta Conceição Pinto Pedro



Segundo informação amiga, que me enviou fonte fiável na qual depois tive oportunidade de eu própria confirmar o que vou dizer, o distintíssimo e historiador Jaime Cortesão é citado pelo inigualável (na sua área) investigador Moisés Espírito Santo a propósito de uma carta daquele ao beirão Lopes Dias. Neste estudo (“Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa”) Moisés Espírito Santo defende e prova que os judeus expressavam sempre o culto ao Divino perto de água, principalmente dos rios, pela convicção de serem estes fonte da expressão da divindade... naquela citada carta, Cortesão dizia que o rio Zêzere era o rio do Espírito Santo...
Porque, como diz Moisés Espírito Santo, “O culto do Divino prescinde dos templos e nem sempre se associa às capelas ou às esculturas que têm o seu nome.»
Segundo Cortesão, este culto terá sido, desde tempo remoto, muito popular nas cidades, vilas e aldeias sobretudo da Beira Baixa, destaca a larga difusão da imagem do Espírito Santo nos Concelhos de Santarém e de Portalegre e manifesta o sonho de fazer um inquérito pessoal na Beira Baixa e nas margens do Zêzere, onde o culto se manifestava de forma espontânea em «ramadas» e «cabanas». Não sei se chegou a fazê-lo.
Manuel Ferreira da Silva, num texto sobre os congressos do Espírito Santo que têm sido realizados, afirma, em consonância com o atrás dito: «[em 2001] Fizeram-se inquéritos por todo o país; e, sobretudo através das Misericórdias, apurou-se que as tradicionais e populares Santas Casas eram, na sua maioria, a memória e herdeiras da Confrarias, Impérios do Espírito Santo em todo o espaço lusitano, designadamente na Beira, ao longo do Zêzere até ao Tejo – e a propósito do que o historiador Jaime Cortesão chamava ao rio Zêzere o “Rio do Espírito Santo”»
Segundo o estudo citado, as dezenas de capelas ao Divino estão construídas junto ou muito próximas de cursos de água: rios e ribeiros. Não os havendo, abriam poços, para que a água estivesse presente.
«O Divino» é como os judeus e os beirões (deles herdeiros, tenham ou não disso consciência) designam o Espírito Santo.
Vem esta conversa a propósito da próxima realização, em Setembro, em Lisboa e Alenquer, de mais um Congresso sobre o Divino, o culto do Espírito Santo. Alenquer e Lisboa são para mim espaços de alimento do espírito: o meu espírito de criança, o meu espírito de adulta aí se alimentaram e continuam a alimentar. Como Ferreira do Zêzere. Quer possa ou não ir ao congresso, tentarei estar atenta ao que lá se passar e espero que aí seja evocado também este rio, transportador de beleza, sonhos e… do Divino. O Espírito Santo. Sempre senti que esta era uma terra abençoada. Compreendo agora que, pelo menos em parte, a bênção lhe vem do rio que lhe confere metade do nome.


Notinha: Este textinho, já publicado em "O Despertar do Zêzere", foi gentilmente cedido pela autora para publicação no Estudo Geral. 

terça-feira, 6 de setembro de 2016

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

VIVA O DESCANSO!

Ui que boa que está a ser esta folga. 

Ontem, ao fim da tarde, eu e a Luísa fomos ao cinema ver uma obra-prima de Clint Eastwood, “Mystic River”, uma viagem às profundezas da alma que nos faz pensar a lógica da vida. 
Sean Pen tem uma interpretação digna dos mais altos galardões. 


As miúdas ficaram com a Alexandra que lhes deu o jantar. 

São simpatias que os pais aproveitam para namorar. 

Quando regressámos estavam a jogar monopólio. 

De resto, além da catequese e da hora da natação, o fim-de-semana tem sido de brincadeira. 



E na sexta-feira foram lidas as sentenças no caso moderna. 

Cá para mim este processo foi encomendado à medida de manietar Paulo Portas. Os socialistas estavam no poder quando tudo começou, em noventa e nove e o actual ministro da defesa tomara conta do CDS que assim, palpita-me que no entendimento dos homens de Guterres, poderia ser facilmente neutralizado em termos de oposição. 
Com efeito, todos nós nos lembramos das ligações que os media, certos media, se esforçaram por estabelecer entre a dita personagem e o referido imbróglio. Ainda não há muitos meses e já com o homem no exercício das suas funções actuais, do PS chegou a pedir-se a sua demissão por ter sido chamado a depor – como testemunha, é bom recordá-lo – no julgamento. 

Fosse como fosse, a verdade é que caíram as acusações de associação criminosa, tráfico de armas e de carne branca e branqueamento de capitais e apenas um dos arguidos acabou condenado a uma pena efectiva de prisão que terá que cumprir; dos restantes condenados, uns já tinham cumprido as penas em encarceramento preventivo e outros viram as sentenças comutadas em pena suspensa, tendo acontecido quatro absolvições. 

É caso para dizer que a montanha pariu um rato. 


Pois eu acho que foi mais um caso das agruras da nossa partidocracia. 



O gato Serafim 
vai dormir a sesta ao Sol 
desliza no patim 
o amigo caracol. 

É tão ternurento ouvir a Matilde cantar e vê-la fazer os gestos correspondentes à letra. 

Pois foi uma das aprendizagens da aula de música, na sexta-feira. 

No resto do tempo, os alunos fizeram exercícios com os números aprendidos e a grafia dos mesmos. 



Enquanto as literaturas europeias evoluíram para a modernidade, na Península Ibérica e sem embargo de um importante contributo para o renascimento europeu, ficaram-se por um marcar passo que só o século XIX viria a alterar. (1) 

Eis uma das lições a reter do livro que acabei de ler. 



E no Iraque continuam as emboscadas terroristas. 
Ontem perderam a vida sete militares e dois diplomatas japoneses. 

O mundo livre não está a ser capaz de compreender que ali se joga, em grande medida, o futuro da sua liberdade. 



Noite fria depois de um dia com nuvens cheias de lágrimas. 


 Alhos Vedros 
   30/11/2003 


NOTA 

(1) Ibañez, Eduardo, HISTÓRIA UNIVERSAL DA LITERATURA, O RENASCIMENTO LITERÁRIO EUROPEU, Vol. III 


CITAÇÃO BIBLIOGRÁFICA 

Ibañez, Eduardo, HISTÓRIA UNIVERSAL DA LITERATURA, O RENASCIMENTO LITERÁRIO EUROPEU, Vol. III, Tradução de Serafim Ferreira, Círculo de Leitores, Lisboa, 2002

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

REAL... IRREAL... SURREAL... (219)

Madonna, Munch, 1894
Óleo sobre Tela, 90x68 cm

Presídio

Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo 
Que dizer do pescoço, às vezes mármore, 
às vezes linho, lago, tronco de árvore, 
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...? 

E o ventre, inconsistente como o lodo?... 
E o morno gradeamento dos teus braços? 
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne: 
é também água, terra, vento, fogo... 

É sobretudo sombra à despedida; 
onda de pedra em cada reencontro; 
no parque da memória o fugidio 

vulto da Primavera em pleno Outono... 
Nem só de carne é feito este presídio, 
pois no teu corpo existe o mundo todo! 

David Mourão-Ferreira

Selecção de António Tapadinhas

sábado, 3 de setembro de 2016

Poemas com Jazz


UM LUGAR

Lá na morada onde me mora o medo
Aceno um "Óla", acendo um cigarro e passo.

Discreto, sem que o coração me ajude ou a razão me processe,
Sem que um demónio ou um anjo intervenham na minha existência 
E me perguntem se quero fumar um charro ou simplesmente olhar o céu.

A última lembrança que tenho quando passei aqui
Foi um artifício de fogos descodificando flores murchas.
Velhas casas a oeste com as lamparinas ainda acesas 
E velhas cantando cânticos religiosos de um lado ao outro 
Da morada onde me mora o medo

Entro num café com um cigarro na boca,
A cinza cai e eu avanço sereno e a alma banhada em rosas,
Um homem sentado a uma mesa ri-se,
Ofereço-lhe um licor, sento-me e rio também 

Um piano toca e o sol doira lá fora,
Borboletas poisam e as flores saúdam-lhes,
O canto dos pássaros estende-se ao comprido nos galhos,
O mundo repousa sereno e estar vivo é um luxo.


NOTA: Clique no nome do autor para ouvir a música escolhida para este mês!!!

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

VERGONHA


Instado, por um fraternal amigo, a compor um texto sobre o sentimento vergonha, fiquei eu em pânico, pois vergonha, é um assunto um pouco estranho para mim. As minhas vergonhas são tão minhas e de mais ninguém, que não as divido com outros. Se fosse a minha ira, seria bem mais fácil, mas a vergonha é um sentimento internalizado na minha pessoa. Sou eu comigo mesmo. Mas sendo instado a decorrer sobre vergonha, eu posso dizer que nunca senti tanta vergonha de dizer que sinto vergonha como nos dias de hoje. Do congresso nacional, da grande mídia, dos batedores de panelas e marchadores verde amarelos, que por acaso, andam um pouco sumidos de cena. Vergonha da minha impotência diante do saque que os políticos promovem via Estado em cima das riquezas naturais da nação e em cima da algibeira do povo. Vergonha de boa parte da nossa elite atrasada, ignorante e conservadora. Vergonha da apatia e da preguiça do livre pensar da maioria do povo do meu país. Vergonha sim, mil vezes vergonha de sentir vergonha, pois a ira inconformista parece que evanesce em meios a tantos atos de covardia e baixeza. Vergonha dos grandes veículos de comunicação de massa, que massacram a opinião pública com tanta desfaçatez com falsas notícias, mil mentiras que o povo adora adorar. Vergonha e muita vergonha de ter vergonha do meu próprio povo, da minha gente humilde. Pode ser impressão minha, mas o povo do meu país perdeu a vergonha faz tempo.

Samuel da Costa é cidadão brasileiro
(in, Diálogos Lusófonos -
dialogos_lusofonos@yahoo.com.br )