quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Agostinho da Silva, Joaquim de Flora e a demanda do Divino


NOTA PRÉVIA

Sabemos hoje, pelos estudos de Anita Novinsky e da escola de estudos judaicos que criou na Universidade de São Paulo, que a construção do Brasil foi sobretudo obra de cristãos-novos fugidos à Inquisição. Bahia, Pernambuco, São Paulo são, desde muito cedo, pólos de proliferação marrana. A esta luz, creio eu, haverá que reequacionar a propagação do culto popular do Espírito Santo em solo brasileiro.
Falemos entretanto de gigantes. O grande Raposo Tavares, o maior dos bandeirantes, confessou matar em nome da lei de Moisés. Um antepassado de Fernando Pessoa andou por terras de Vera Cruz durante vinte e cinco anos e acabou reduzido a cinzas num auto-de-fé lisboeta. Anita Novinsky lembra, a propósito, que os versos de Álvaro de Campos ganham toda uma outra significação a esta luz.
Entre nós, apesar dos estudos de Moisés Espírito Santo, Jorge Martins ou Maria Helena Carvalho dos Santos, entre outros, muitos continuam a varrer o judaísmo português – e essa sua tão problemática como original metamorfose que foi e é o marranismo – para debaixo de um tapete. O Dicionário Essencial da Língua Portuguesa, denuncia Jorge Martins, não diccionariza a palavra judeu, mas não esquece os termos cristão e muçulmano. E o editor literário dos Apólogos Dialogais de Dom Francisco Manuel de Melo, fazendo quanto pode, ao abordar o Tratado da Ciência Cabala, para afastar o Melodino da pista judaica, cita inúmeras vezes a monumental biografia que Edgar Prestage dedicou ao seiscentista, mas esquece que a páginas 285 desse livro se refere a ascendência judaica do polígrafo, cristão-novo pelo lado materno.
O texto que agora se publica, desprovido de referências bibliográficas e passível de revisão em ordem à sua publicação, corresponde ao que disse no passado sábado na Sala dos Actos da Câmara Municipal de Alenquer, no decurso do Congresso Internacional do Espírito Santo. Como levo Agostinho da Silva bem a sério, há muito que interiorizei a velha máxima do seu alter ego Kertchy Navarro: só pode ser seu discípulo quem for contra ele. Não se trata, pela minha parte, de um propósito deliberado ou programático, mas tão-somente de manifestar franca e lealmente as discordâncias que mantenho com o Estranhíssimo Colosso no que respeita à sua visão do culto popular do Divino. Agostinho da Silva é porventura, a meu parecer, o mais complexo – e porventura o mais estimulante – caso de marranismo da cultura portuguesa do século XX, porque é aquele em que o dramatismo do ser dividido alcança o seu paroxismo, sempre em busca daquela síntese de que falava António Telmo e que o conduz a um novo e superior entendimento da religião. Não por acaso, na sua última entrevista de imprensa, frisava já o pensador, muito judaicamente, que o culto era “apenas” o culto da obra do Divino. Claro que isto pode brigar com a visão joaquimita que, nessa mesma entrevista, parece manter da festa do Império. Que o debate prossiga…   



Agostinho da Silva, Joaquim de Flora e a demanda do Divino
Pedro Martins           

1. Agostinho da Silva pode ser considerado um pensador neojoaquimita, inscrito n’a posteridade espiritual de Joaquim de Flora, tal como Henri de Lubac a entendeu na monumental obra homónima, por ter recolhido «a ideia fundamental que Joaquim havia retirado da sua exegese: a de um «terceiro estado» a vir, no tempo e sobre esta terra, que seria a Idade do Espírito». O portuense, para quem «só pela teologia se poderá compreender a História», vai consequentemente adoptar e adaptar a tripartição do movimento histórico do monge calabrês. Na reelaboração de Agostinho, os estados triádicos designam-se, correspondentemente, por Idade AntigaIdade Média e Idade Nova. A Idade Antiga termina quando a Igreja institucionalizada muda a face do Império, e isso basta para que a sua Idade Média se inicie muito depois da Idade do Filho de Joaquim, que começou a prosperar com a Encarnação e terá terminado em 1260. A Idade Média agostiniana ainda decorre.
Tal como os primeiros joaquimitas, Agostinho crê, expectante, na iminência da nova era.  Pressente-a pelos sinais, mas não sabe quando, ou onde, se iniciará, o que logo nos recorda a sua Vida de Lamennais, pós-joaquimita a quem Lubac consagra extenso capítulo no seu tratado. Posto que o trilho, fecundo, esteja inexplorado, não me alongarei na análise da influência que Agostinho, manifestamente, recebeu deste seu biografado. Assinalarei, somente, que das diversas fases da obra do francês colheu o português inúmeros contributos, incorporados na formação diacrónica do seu neojoaquimismo, pela revelação de uma experiência dramática com seu quê de comparável à evolução espiritual que irá viver, e que parece dar razão a Henry Corbin quando afirma que é no interior hierofânico de cada alma, e não na imanência do tempo histórico, que a Igreja de João sucede à de Pedro.

2. Nos escritos numerosos que, após o retorno a Portugal, em 1969, Agostinho dedica ao culto popular do Espírito Santo, não encontramos já a perspectiva crítica da heresia de Joaquim vigente na fase brasileira. Nesta, em que define e apura a estruturação principial, axiológica e cronológica das três Idades, não deixa o filósofo de censurar a audácia joaquimita. Repele-lhe o corolário do desaparecimento da Igreja institucional, à vista da injunção que, no rigor dogmático da teologia católica, determina a coeternidade das hipóstases trinitárias. No intuito de aproveitar a conveniente sedução do esquema joaquimita, surpreende-se o afã de Agostinho na reelaboração da “Terceira revelação”. Num escrito de Só Ajustamentos que a toma por título, fá-la refluir ao recesso psíquico da individualidade, resguardando-a de vicissitudes sociológicas, no que antecipa a abordagem angelológica, já aflorada, que Henry Corbin, no início dos anos 70, propõe do joaquimismo para o preservar da mácula imanente da mundanidade.
Posto que Lubac o omita a esse respeito, é possível incluir a leitura de Corbin nas interpretações «diversamente minimizantes», porém «dificilmente conciliáveis», do pensamento joaquimita que o cardeal agrupa pela comunidade do esforço com que buscam atenuar a «violenta interpretação» textual operada por Joaquim e «reconduzir a ideia da terceira idade a visões mais tradicionais». Encontramos, aliás, nestas palavras de Lubac uma síntese que se aproxima da tese de Corbin:

Para outros, sob a exterioridade de um desenvolvimento histórico, Joaquim teria simplesmente querido enumerar as etapas ascendentes da vida espiritual; as figuras do Liber Figurarum, considerado autêntico, sugeririam três fases místicas, mas somente duas idades históricas, antes e depois de Jesus Cristo.
  
Se bem que, pelo propósito operativo, transcenda a hermenêutica restritiva de Corbin, Agostinho, de alguma sorte, navega, por esses anos, nas mesmas águas. «A terceira revelação», escreve,

é a da íntima e profunda e secreta relação de cada um consigo próprio. Como poderia ela vir de fora com um pregador, um anunciador, um evangelista, que eu e os outros pudéssemos ver com os nossos olhos de carne e pudéssemos arquivar nos pobres e falíveis anais da nossa história? Cristo foi o mensageiro último de que os homens puderam ser testemunhas. O que não quer dizer que tivesse sido a última mensagem.

Ao dealbar a década de 60, em “Considerando o Quinto Império”, reformula essa revelação pelo anúncio «de que a criança deve ser o modelo de vida e que por ela se estabelecerá na terra o Reino do Espírito Santo». Por muito que se queira aproximar esta criança divinizada dos viri spiritualis de Joaquim, será forçoso reconhecer quão longe estamos já do visionário calabrês. Na recusa da heresia joaquimita desenha-se a invenção agostiniana.
Educação de Portugal, escrita logo em 1970, inaugura uma fase de reconciliação com o joaquimismo. Ainda quando assinala a heresia, Agostinho limita-se a identificar-lhe os termos, sem tomar outro partido que não seja o de se conformar com o bom abade. Compreende-se. No iter evolutivo do seu pensamento, já a Liberdade sobreleva a Fraternidade, afrouxando os ditames de submissão hierárquica que esta, sob pena de quebra, opressivamente predispunha.

3. Parte do que Agostinho afirma do culto popular do Espírito Santo levanta-nos problemas pelos seus frágeis fundamentos históricos e etnológicos. Afeiçoada a ciência dos factos aos prejuízos do profeta, só como recriação mítica poderemos considerar sem mácula a sua invenção poética. 
 A problemática concepção agostiniana, bem patente e insistente em escritos vários dos anos 80, mas já amplamente desenvolvida no artigo “Algumas considerações sobre o culto popular do Espírito Santo”, de 1967, advém do modo como relaciona o culto com o joaquimismo, supostamente chegado a Portugal no reinado de D. Dinis, pela mão de Isabel e dos franciscanos espirituais que a acompanharam.
Diz Agostinho que «logo que a nova rainha ocupou a vila de Alenquer, seu presente de noivado, surge em Portugal, espalhando-se rapidamente por todo o País, o culto popular do Espírito Santo ou do Divino». Diz também que,

na sua forma mais perfeita, consistia a Festa, celebrada por altura do Pentecostes, na coroação de um imperador do Império do Espírito Santo, geralmente uma criança, na celebração de um banquete ritual, gratuito para todos que o quisessem, e no libertarem-se presos da cadeia local.

E acrescenta:

Com a Contra-Reforma, de estrita ortodoxia, o culto declinou rapidamente em Portugal continental, dele só restando vestígios, mas algumas ideias fundamentais aparecem em escritores como Fernão Lopes, Camões, Vieira e Fernando Pessoa, e cerimónias populares são ainda vivas nos Açores, na Madeira e no Brasil.

No texto citado, “O homem e as civilizações”, embora reconheça, pensando talvez em Prisciliano, que se terão «agregado à concepção de Joaquim de Flora elementos de origem mais antiga que faziam parte da vivência do povo», Agostinho, como vimos, afirma que foi em Alenquer, e com a nova rainha, que o culto surgiu.
Moisés Espírito Santo, nas Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa, lembra, porém, que certas capelas beirãs do Espírito Santo já existiam quando Isabel nasceu; e que Rocha Beirante, no seu Santarém Quinhentista, «diz igualmente que o culto do Espírito Santo em Santarém é anterior à Rainha Santa». No mais, o autor sublinha uma evidência:

Os cultos populares não são, nem nunca foram, nem poderão ser, «instituídos» por decreto ou pela boa-vontade de uma pessoa, seja ela rainha, beata ou santa. Certos autores tomam as sociedades e as culturas por multidões descerebradas que se põem a cultuar um deus por ordem ou a pedido de um rei ou governante. É possível imaginar um dirigente ou monarca, ou as respectivas esposas, a decretar um ritual, a ordem das procissões, os dizeres dos pendões? Como se os povos precisassem das directivas dos dirigentes para fazer a sua festa! Os rituais, como as religiões, obedecem exclusivamente aos ditames e à dinâmica da cultura e sempre inseridos na tradição. Aquela paternidade é uma invenção de Frei Manuel da Esperança, cronista da Ordem franciscana. No «dia da fundação», em Alenquer, a Rainha Santa até teria cercado a vila com um «pavio de cera a arder, o qual, preso à igreja do Espírito Santo, dava a volta à vila»… (Invenção milagrosa! Como pode um pavio de cera arder nestas circunstâncias?) Os informantes do cronista teriam referido «um círio», não «um pavio»; um círio é a deslocação de uma povoação, atrás de um pendão, a um lugar santo em obediência a um voto antigo, podendo tomar a forma de uma procissão; o círio de Alenquer dava a volta à vila a partir da capela.   

Diferente será afirmar que o patrocínio régio possa ter contribuído para a institucionalização do culto popular, conferindo-lhe «um aparato nunca antes visto», como acentua Manuel J. Gandra. Nesta linha, admitamos, como hipótese de raciocínio, que com Dinis e Isabel se tenham insinuado laivos de joaquimismo no ritual da Festa do Império, ficando, porém, por averiguar, se, e em que medida, o culto assim afeiçoado irradiou em território nacional, notadamente por efeito da acção real.
A respeito do elo que supõe ligar o joaquimismo à festa do Império, Agostinho, de ordinário assertivo, denota cautela. Pelo menos nas “Dez Notas…” de 1985, onde começa por afirmar que «parece assente, sob o ponto de vista histórico, que o Culto Popular do Espírito Santo (…) tem sua origem no pensamento de Joaquim de Flora», para, mais à frente, não deixar de reconhecer que

da questão teológica não há, como era de esperar, nenhum vestígio no Culto Popular, a não ser que a Igreja, sobretudo depois de Trento, sempre fez todo o possível por eliminar o Culto. Mas nada nos garante que não haja entre essa ideia fundamental de Joaquim de Flora e as vivências do Povo de Portugal um elo da maior importância, que por outro lado se liga, ao que penso, ao problema da existência ou não existência de pensamento filosófico na Cultura Portuguesa, quer nos intelectuais quer no Povo.

Concluindo pela usual resposta negativa a esta sua velha questão, porque, «para o Português, o importante não é a Filosofia, é a Vida, com toda a sua variedade e todas as suas contradições, que pode não aceitar, mas corajosamente assume», o pensador atribui em seguida aos «certamente analfabetos portugueses» a façanha de resolverem, no contexto «concreto» em que se moviam, os «problemas de bem difícil contexto teológico e filosófico» em cuja solução não foram tão longe «os atilados, inspirados e eruditos teólogos».
Que solução foi essa? Uma «popular intuição»: «o estabelecer-se um Império do Espírito Santo» não «implicava o desaparecimento da Igreja de Cristo; Deus se revelaria sempre trino em cada uma das Pessoas que nele haveria que distinguir, tanto no Eterno como no Tempo, e até, talvez, haveria uma Divina Igreja cada vez mais se alargando no domínio dos fenómenos, cada vez abrangendo maior número de homens».
Fica por saber o que, sem o desaparecimento da Igreja de Cristo, resta afinal do problemático joaquimismo. Quando, em seguida, concretiza as feições da nova idade histórica tal como os portugueses a teriam visionado, depara-se-nos o intuito de, «sem quebra com a Igreja, ou as Igrejas, anteriores, levar esta última, verdadeiramente católica ou universal, ao todo da Ecúmena». Reincidindo nas ideias medievas da sua fase brasileira, Agostinho apresenta-nos um proselitismo de conversão mais paraclético do que cristológico, desta sorte favorecido pelo desvio da ênfase para a unidade essente do Espírito. 
Fica, sobretudo, por entender o prodígio dessa intuição, que não se vislumbra possível sem o conhecimento dos termos – filosóficos e teológicos – do problema a resolver. Na obra já citada, conta Moisés Espírito Santo como «Frei Bartolomeu dos Mártires deplorava a ignorância dos Minhotos que pensavam cair nas boas graças do bispo saindo ao seu encontro a gritar «Viva a Santíssima Trindade, que é irmã de Nossa Senhora!». E acrescenta:

Na região da Batalha, onde se celebra, pelo menos desde o século XV, um importante e imponente bodo de pão «contra as formigas», em honra da Santíssima Trindade, supõe-se que o ente a quem se dirige o culto é «uma santa mais importante do que as outras», pois é tratada no superlativo e tem um nome feminino. Na percepção religiosa dos Beirões, nem sequer está implícito que Deus seja eterno, porque se ouve dizer com a maior das canduras: «Isto já vem dos tempos antigos, ainda Deus não era nascido.» Jesus Cristo é a única expressão de Deus. Para dois mil anos de cristianismo, o balanço não é encorajador!

Ainda segundo o etnólogo, episódio convergente foi vivido por Jaime Cortesão, ao verificar ocasionalmente que, perante uma escultura da Santíssima Trindade, impropriamente chamada do Espírito Santo, os fiéis não identificavam este último

com a pomba, mas com o Ancião de barbas onduladas, coroado, e de semblante carregado, que sustém a cruz nas mãos. Jaime Cortesão apercebeu-se bem desse importante pormenor; notou o facto mas, segundo ele próprio diz, não entendeu a razão. A razão é esta: para os Judeus-secretos, o Espírito Santo equivale a Yaveh, que é o ancião da escultura.

Eis o motivo por que Agostinho não encontrou no culto popular do Espírito Santo vestígios da questão teológica suscitada pela heresia joaquimita: nunca ali terão estado presentes. Escreve Moisés Espírito Santo: «O culto vem directa e inteiramente da tradição hebraica». Acto contínuo, enfatiza: «O Espírito Santo dos cultos populares não é a terceira pessoa da Trindade Cristã». É, sim, conformemente àquela tradição, a força ou princípio vital que enforma, sustenta e renova o Universo, tão certo ser o judaísmo o culto que electivamente se dirige ao aspecto criador da Divindade: os Elohim que, no Genesis, proclamam a bondade da criação.
A argumentação do etnólogo é opulenta e tendencialmente exaustiva, como se verifica pela leitura do seu estudo, escorado no fundo conhecimento das religiões e da tradição etnográfica e num trabalho de campo desenvolvido na década de 80, sobretudo nas regiões de Leiria e da Beira Baixa, reconhecidos pólos de proliferação judaica onde, no terreno, registou fenómenos cultuais persistindo pelos séculos.
Não obstante, Agostinho, na mesma época, parece apenas levar em conta o culto do Divino nos Açores, de resto de origem beirã. É possível que esta redução influencie o erro de, em “O Império do Passado e do Futuro”, afirmar que «logo», isto é, desde a suposta criação da festa do Império pela Rainha Santa Isabel, o povo coroou «seu real monarca a genial imaginação da criança, sufocada por escola alguma», depois de, como se viu, ajuizar que isso sucedia «geralmente».
Não há notícia histórica da coroação de um menino nos primórdios do culto. Por longo tempo, coroaram-se adultos – homens do povo, gente de baixa condição – sem que se possa asseverar quando e por que razão surge a criança no centro da cerimónia. Segundo António Quadros, nas Festas do Penedo, em Sintra, ainda activas no século passado, «as coroas (feitas inicialmente para adultos), são grandes demais para os meninos Imperadores, pelo que há sempre pessoas que as seguram, simulando-se no entanto que estão colocadas nas cabeças das crianças».
Noutros lugares, como Alcabideche, onde as festas perduraram até ao princípio do século XX, continuaram os adultos a ser coroados. Em Nisa, no século XIX, o imperador era um mancebo. No litoral, como na Beira Baixa, Moisés Espírito Santo mostra ser regra a coroação de um «benfeitor» – um emigrante que enriqueceu, um homem próspero da aldeia – como imperador ou juiz.
Por que surge a criança coroada? Não se sabe. Mas parece insustentável a razão sugerida por Agostinho, na qual, aliás, suspeito existir anacrónica projecção da sua pedagogia.
Este intento parece tê-lo conduzido à perigosa inversão simbólica concretizada pela divinização da criança. Sempre Agostinho se mostrou pouco atreito ao sério código ocultista. Daí, a meu ver, a dificuldade do seu ecumenismo em superar os dogmas. Se assim se pode dizer, é um exoterismo sem esoterismo. A boa vontade, decerto louvável, é precária.
Vem a propósito o seu ensaio “De como os Portugueses retomaram a Ilha dos Amores”, onde emerge a figura, jocosa e dúbia, do estucador de Alpiarça, um pobre diabo que replica António Telmo. Não terá Camões, como pretende Agostinho, aludido a Zoroastro ou à Cabala (que implica sobretudo Fiama)? Com respeito àquele, e embora o tenha feito, por mais de uma vez, como Telmo mostrou, não precisaria sequer de o fazer. Bastava-lhe a insólita atenção à «matéria perigosa» do cristianismo gnóstico de Tomé, com a qual pôde Telmo, no Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, encontrar um elo de ligação entre a Pérsia e o priscilianismo.
Esqueceu-se Agostinho do que talvez soubesse por René Guénon: as verdades tradicionais não se escancaram. Revelam-se. Mostram-se para se ocultar. É da natureza das coisas: esotérico quer dizer interior. E Guénon adita razões de defesa: da doutrina e do iniciado. Se é preceito evangélico não dar pérolas a porcos, seria insânia oferecê-las aos monstros do Palácio dos Estaus. Agostinho passa como cão por vinha vindimada perante o labor probatório do discípulo, que, como o de Fiama, é plausível quando não é inequívoco.
Para ele tudo vem já do fundo cultural inato dessa improvável abstracção a que chamou Portugal, «como se tudo o atribuído a persas, indianos ou judeus fosse do tesouro, comum e nativo, dos portugueses de todos os tempos». Curiosamente, relançando antiga freima, reincide na sugestão de que Camões, na Ilha dos Amores, sofreu a influência de Joaquim de Flora, porque ali soube congraçar o tempo com a eternidade, «como se a nossa peça fundamental» – escreve – «embora com personagens diferentes, uns eternos, outros perituros, se representasse em dois palcos da mais exacta correspondência», com o que Camões daria expressão a um conceito «tão da natureza do povo de Portugal que imediato o inseriu em sua religião popular».
Colossal estranheza! Se realmente sabemos do encontro do tempo e da eternidade na Ilha, foi porque Telmo, vivendo a verdade do símbolo sob o signo de Hermes, o demonstrou numa leitura aguda e arguta, que reconduz o desenrolar da «peça» ao palco luminoso do mundus imaginalis, onde os espíritos se corporizam e os corpos se espiritualizam.
Desprovida daquela acuidade que só a exacção da letra, na extensão do texto e no contexto do entrecho, à vista de uma significação global, permite garantir, a leitura agostiniana da Ilha instituiu uma vaga alegoria: rochedo batido pelas ondas do providencialismo no oceano das ideias. Tudo isto é irónico em quem conviveu com Eudoro e recomendou a Telmo a leitura de Américo Castro e Henry Corbin…
Num ensaio que dediquei ao presumível marranismo de Agostinho, avancei a hipótese, congruente com o criptojudaísmo do culto, de a coroação do Menino traduzir a intromissão, no cerimonial, da figura de Metatron, o Anjo da Face da kabbalah que Telmo viu cifrado no Portal Sul dos Jerónimos. «Tal é a razão», ensina André Benzimra, «pela qual se lhe dá o nome de pequeno YHVH. E se ele é representado sob os traços de um adolescente, é para se significar que se trata de um Deus ainda na infância.» Intermediário celeste, mediador do Céu e da Terra e irmão-gémeo da Shekinah, responde ainda ao nome de Schadaï, que, na lição de Benzimra, é «o federador do Céu e da Terra, o grande Reconciliador de qualquer discórdia», e que, naquele seu outro aspecto a que melhor convém o nome de El-Schadaï, «será chamado a desempenhar um papel primordial nos tempos messiânicos». Numa perspectiva cristo-angelológica Metatron surge, assim, em correspondência com o Espírito Santo.
Aqui, importa de novo citar Moisés Espírito Santo, quando trata da figura do Imperador no culto do Divino: «Os Hebreus não faziam distinção entre Deus de Israel, Rei de Israel, «Anjo do Senhor» ou Enviado de Deus e Messias». Pouco adiante, acrescenta: «O Rei de Israel tanto era o «Anjo de Deus» como o próprio Deus, que toma a figura humana para executar as suas vinganças. Segundo a concepção religiosa dos Semitas, Deus desdobrava-se em personagens terrestres». Por fim, consigna:

É muito significativo que, da região de Leiria à do Fundão, se designe a personagem do imperador, do rei ou do juiz desta cerimónia como o «Espírito Santo», isto é, a sua incarnação ou representação terrestre. O imperador é um sósia ou um duplo do Espírito Santo, do Messias. O ritual constitui assim um anúncio, uma catequização e uma promessa desse evento.

Eis um dos inúmeros argumentos que o etnólogo aduz na demonstração de que o culto popular do Espírito Santo mais não é, entre nós, na sua essência profunda, que uma manifestação críptica das celebrações do Pentecostes judaico.
Esboço um sorriso, ao ler, em Reflexão à margem da Literatura Portuguesa, que

os judeus por seu turno não levantavam oposição alguma a assistir reverentemente a esse culto do Espírito Santo, o qual, como já foi dito, descera em novo Pentecostes sobre a nação portuguesa, sagrando-a para seu apostolado.

Não preciso de explicar por quê.
           
Alenquer, 17 de Setembro de 2016.


Ler mais: http://www.antonio-telmo-vida-e-obra.pt/news/universo-telmico-41/

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