quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Da Linguagem


por José Pais de Carvalho

Pelo que vivi e me pergunto - o que falo? - Reparo que a linguagem é uma expressão de como apercebo o mundo a partir de como sou, dos meus caracteres,  tendências e consciência, e revela-se pela acção na reciprocidade.
Esta acção encerra em si um poder expresso magnificamente num ditado que diz: “Quem com ferro fere com ferro será ferido”, ou seja, recebemos aquilo que damos. Esse poder subordina as causas, condições e mudanças a todos os níveis no ser humano. De alguma maneira, manifesta-se através da consciência.  Permite-nos, então, dizer que a consciência que tínhamos do mundo na adolescência, por exemplo, não é a mesma que, com a experiência adquirida na vida, temos na idade adulta. Portanto é visível como a consciência tem uma continuidade, sendo consequência do instante anterior.
Essa reciprocidade passa-se connosco a diferentes níveis, e também na linguagem. Somos seres que nos definimos através de processos de relação. As nossas identidades são impossíveis de se descreverem por si próprias, mas tão somente como forma de relação. A linguagem no seu sentido mais amplo é, pois, a forma de nos inter-relacionarmos. É o sistema que usamos para comunicar. A sua função expressa-se pela maneira como cada pessoa organiza consciente e inconscientemente a sua emocionalidade e escolhe, através da linguagem, a mensagem que quer transmitir.
Esta mensagem  pode ser expressa por diversos modos, quer por imagens, quer por palavras. É, então, num processo de relação, que a linguagem deve ser olhada, sendo o conceito (conteúdo da mensagem) a manifestação da expressão de uma  construção mental/emocional que, por sua vez, já  é uma representação individual ou coletiva, orientada pelas palavras ou imagens que o constituem. Concluindo, o conceito constituiu o objecto da representação da linguagem, e o que apreendemos é diferente do que é apercebido. Ou seja, é consequência do não reconhecimento da nossa identidade e das vicissitudes do puro acto de criação, portanto tem caráter ilusório, distante da Verdade.
O conceito, na sua maior abrangência, quer dizer: tudo o que se concebe. Como tal, deve ser compreendido como construção mental. Através  da palavra, da imagem ou outros transmite  a representação das qualidades e as características que o compõem.
O conceito, quando proferido, escoa-se por si só, quer pelo tempo, quer confrontado com outro conceito. E é esta a sua contradição e a sua brevidade.
Contradição, porque é sujeito a reformulações, senão antíteses; brevidade, porque não tem uma causa substancial.
Mas é na representação do conceito representado que a linguagem encontra as maiores dificuldades, porque, pela sua natureza, a representação também não tem existência própria, mas, antes, uma existência relativa. A representação, que, em si, é a expressão do que é já projectado (o conceito), funciona em relação a um ponto de referência externo, onde o conceito representado (construção mental) não é mais do que uma projecção daquilo que não é passível de se entender corretamente (consequência da visão dualista). Daqui o facto de ser discriminatório e estar sujeito a ser constantemente aceito ou rejeitado. E este é o paradoxo e o limite do pensamento lógico e dualista.
Esse pensamento induz-nos a dissociarmo-nos da nossa emocionalidade ao invés de nos dissociarmos das nossas emoções, e leva-nos à necessidade de estarmos permanentemente a analisar, a validar e a confirmar as nossas razões para justificar a existência,  criando uma falsa imagem do que tomamos por realidade  e  dando-nos uma versão fragmentada e individualista de nós e do mundo como consequência do não reconhecimento dessa força impulsionadora a que chamamos Vida. A linguagem, em sua linearidade, é, pois, o veículo do pensamento dualista, intelectual, e é incapaz de unificar.
Mas a linguagem vai além da fala e da escrita. Poderemos dizer que a percepção (que tem como significado: acto ou efeito de perceber; recepção) e a sensação são alguns dos aspectos que captamos e estão além da palavra, dos quais destaco dois possíveis de se reconhecerem por todos nós.
O 1º, como consequência da nossa experiência. O 2º, como consequência do poder expresso pela nossa consciência ou pela nossa visão particular.
No 1º caso, o que sei e o leitor sabe, pelo que vivemos e porque chegámos a uma mesma conclusão, fruto da nossa experiência, encontrámos a mesma verdade, e por isto nos é comum o seu reconhecimento. Não precisaremos de palavras para descrevermos a realidade. Basta-nos o silêncio quando, nós dois,  simultaneamente, deparamo-nos perante estas condições e situações externas específicas.
 No 2º caso, não pegamos num ferro em fogo porque sabemos que nos queimamos. Ao depararmo-nos com este facto, surge em nós uma neutralidade, até não consciente. Por fracções de segundos, ao olharmos o ferro, ficamos livres de qualquer juízo, sem algum conceito ou emoção, senão em silêncio.
É um momento de receptividade, nada nos leva a formular qualquer acção. Aceitámos a realidade com que nos confrontámos.
De idêntica maneira, o mesmo acontece-nos no dia a dia e, sem nos apercebermos, sem tomarmos posições de qualquer espécie, num repente, encontramos as coisas que nos preenchem, o êxito numa tarefa, um namorado novo ou namorada; quando menos o esperamos, o telefone a tocar no momento em que pensamos em alguém. E esse é o acto de criar. Manifesta-se pela satisfação - a satisfação interior -, a que não está sujeita à satisfação dos cinco sentidos e que os artistas conhecem bem e o público que aprecia as obras de arte reconhece.
A arte é, pois, esta expressão da criação e, a receptividade, a qualidade da percepção e da sensação. Quanto  mais livre da conceptualidade e das referências externas estiverem os nossos pensamentos e as nossas emoções, mais acessível será o nosso entendimento e comprensão, e maior é a expressão artística.
Compreendermos  como os dois casos descritos acima se inter-relacionam indissociáveis no nosso âmago permitem-nos enxergar como a mente intelectual, lógica e dualista, quando sobrevalorizada, tal e qual o fazemos nos nossos dias, acaba-se por tornar a semente das nossas ilusões. Dependerá o  entendimento do que foi dito, então, de um só aspecto: do nosso grau de discernimento.

José Pais de Carvalho
Sintra, 2015

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