quinta-feira, 8 de setembro de 2016

CRÍTICA

OS MISTÉRIOS DE JESUS
«Seria o Jesus Original» UM DEUS PAGÃO?
Por ABDUL CADRE
Na colecção PORTAS DO DESCONHECIDO, as Publicações Europa-América, em Janeiro de 2002 deram à estampa o livro de Timothy Freke e Peter Gandy  com o título acima reproduzido, que respeita literalmente o do original: The Jesus Mysteries – Was the original Jesus a pagan god?
Na contracapa pode ler-se: «Desvendar na vida de Cristo um ciclo de histórias míticas e arquetípicas, comuns a religiões pagãs, é a proposta desta obra. Ao contrário duma perspectiva literalistas que lê nos Evangelhos a vida real dum Deus nascido homem, os autores revelam-nos que as Sagradas Escrituras ocultam, na realidade, uma série de alegorias mitológicas herdadas do Paganismo: a vida de Cristo é a vida de Mitra, Osíris, Dionísio e outros deuses encarnados, nascidos de uma virgem, fazedores de milagres, mortos e ressuscitados. O que fica demonstrado sobre as verdadeiras origens do Cristianismo leva-nos a compreender a grande História dos Mistérios de Jesus Cristo
Tenho por hábito bastante rígido não comprar livros cujo título seja uma interrogação; se o autor não sabe nem se responsabiliza pelo que diz, por que carga de água nos pergunta? Quebrei o hábito porque precisamente a contracapa, como acima se constata, era aliciante e não interrogativa.
Os cristãos pouco indulgentes, quando ouvem falar de paganismo ficam um pouco arrepiados, embora sem razão para tal; etimologicamente falando, pagão designa o rural (conotado com o culto de Pã), sendo as suas crenças e práticas naturalmente mais plurais, menos sofisticadas e menos racionalizadas do que as urbanas, entre gregos e romanos.
Posto isto (e pela lei do menor esforço), sem perdermos o sentido do que dissemos, vamos usar o termo na acepção generalizada, pois serve bem o presente propósito.
Se tivesse cumprido o meu velho hábito, tinha ficado com a ideia de que os autores de Os Mistérios de Jesus nada nos queriam dizer sobre investigações suas e apenas jogavam forte na excitação comum de hipóteses assentes em não mais que imaginações desbragadas.
Acabei por constatar que o livro tem bastante interesse, embora não tanto quanto a contracapa promete. Vale sobretudo pelo que coordena e confronta, mas nada inova nem nada traz que já não tenha sido tratado por outros autores, que fazem remontar o cristianismo às práticas e mitos que o precederam. Os autores – todos os autores – não criam do nada e temos de entender que o processo ensaístico pressupõe que quem escreve submeta com mais ou menos rigor e honestidade o que vêem e o que estudam ao que previamente são e pensam, porque nem mesmo os grandes autores estão isentos dos condicionalismos das envolventes sociais, políticas, religiosas e intelectuais.
Timothy e Peter, de algum modo tocados pelo new age e objectivamente adeptos da mitificação das eras, daí a ênfase que dão a Aquário e o que pode fazer pelo homem, sem se interrogarem sobre o que o homem pode fazer independentemente do peso das eras. Os demasiados «ses» que colocam, parecendo lamentações sobre o que poderia ser e não foi, são deslocados em ensaística da história das religiões, porque todos os problemas são o que são e o «se» não se pode colocar como problema pelo simples facto de não ter sido; só o que é faz história. Mais do que isto é falarmos do anedotário popular, quando se diz que, se não tivesse morrido, a minha avó ainda era viva.
A grande lógica e lei de que o velho deve morrer para dar lugar ao novo aplica-se a tudo: aos seres vivos, às ideias, às crenças, aos sapatos… o que constitui – até parece um paradoxo – a perenidade desses seres vivos, desses sapatos (mesmo que outros), porque de todas essas coisas se vai transmitir a essência que alimenta a necessidade de viver, de pensar, de comungar, de possuir. E essa essência é em qualquer época o substrato de tudo, porque os tempos não são feitos de compartimentos estanques.
As chamadas correntes pagãs, pela pluralidade das crenças e dos mitos que integravam (ou integram) constituíam um todo complexo, uma matéria plástica e, como tal, permanente e continuamente moldável, capaz de receber qualquer aporte, de se adaptar e de conviver, inclusive com o paradoxo, coisa que aos centralismos ideológicos naturalmente repugna. Dentro do paganismo – vendo-o como corrente – cada elo mostra-se por si só um sincretismo religioso. Ora, não são assim as religiões ditas reveladas; nestas é o dogma do «para sempre» que conforma a crença e não o «desde sempre», que identificaria a razão de crer e a tradição. Ou seja, a obediência e a submissão substituem a convivência e a emulação, claramente observável no cristianismo e que podemos atribuir à sua cedência ao imperialismo romano, no seu casamento contra-natura.
De qualquer forma, as religiões dominantes dos nossos dias caracterizam-se pelo que excluem e por mutuamente se excluírem. Os seu declarados ideais salvíficos não se caracterizam pela inclusão das diferenças, mas pela sua eliminação, inclusive, em situações limite, pela eliminação física das diferenças.
É por isso que não podemos dizer, como dizem os autores, que «se o cristianismo reconhecesse a sua dívida para com os antigos Mistérios, voltaria a ligar-se à corrente universal da evolução da espiritualidade humana e tornar-se um parceiro, não um adversário de todas as outras tradições religiosas que classifica como “obra do Diabo”»
Estes «ses» não têm cabimento: o cristianismo tem em si próprio uma pecha mortal, que é intitular-se, não uma religião entre muitas outras, mas a única religião verdadeira. Quem não está com os seus dogmas será condenado, mesmo que seja uma criança inocente. Aliás, por vergonha, arranjaram para as crianças um inferno menos quente. O cristianismo não tem iguais nem tem parceiros e tudo justifica pela «palavra de Deus», que é a palavra dos mentores. O próprio apregoado ecumenismo do catolicismo, que a dada altura esteve de moda, para parecer bem, é promovido a contragosto e com várias tentativas de subordinação dos outros aos seus exclusivos dogmas. A relativa conciliação com a Igreja Ortodoxa não afasta o mal-estar de sempre, resquícios certamente das mútuas excomunhões ao longo da História.
E tudo isto, ao contrário do que querem os autores, não tem a ver com aquilo que eles designam por peso morto – o Antigo Testamento – e da sua «ciosa divindade tribal», tem a ver com o seu imperialismo romano e com alguns dos seus dogmas – precisamente os mais caracterizadores – inconciliáveis com o bom-senso, com o pluralismo, com a tolerância, com o espírito crítico e até com a caridade.
Abdicar desses dogmas implicaria ser outra coisa e não o que é e o que a sua hierarquia e os seus crentes militantes não querem que deixe de ser ou, dito de outra forma, deixaria um vazio… e bem sabemos que a natureza abomina o vazio.
Ainda bem para todos nós e ainda bem para os cristãos que o Antigo Testamento possa ser o tal peso morto, isto é, algo que dificulta o andamento, mas não impede o caminho, que o contrário – sim – seria terrível e medonho para os «gentios» a submeter à escravatura ou a passar a fio de espada pelos escolhidos perante a satisfação de Iavé, que os escolheu e a quem prometeu a terra, o leite e o mel – todo o planeta.
O calcanhar de Aquiles da obra de Timothy e Peter, se assim podemos dizer, está em que, submetendo-se a um título interrogativo, fazendo pressupor um encaminhamento para a investigação e para análise, os autores pedem desculpa a cada passo pelas constatações e demonstrações ao mesmo tempo que avançam propostas de salvação do «cadáver adiado que procria», que enquadram no seu proselitismo típico do New Age…
E nós não somos capazes do conveniente distanciamento. Quando nos lembramos desse movimento festivo, há uma imagem forte que nos invade sempre a mente: Jesus Cristo, com colares coloridos e outros penduricalhos, flores no cabelo, dedos em «vê» e a dizer arrastadamente: «Tá-se bem».

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