-A Fé é algo que existe dentro de si. Existe ou não, tão simples como isso. É o sentimento, se é que a expressão tem algum significado, é aquilo que você sente dentro de si e que o impele a ir ao encontro Dele. A Fé é isso, é esse reconhecimento interior. É viver justamente no reconhecimento dessa centelha que é precisamente a marca de sermos Seus filhos. Pois bem, neste sentido já deve estar a perceber porque digo que não é algo em que se possa acreditar, antes algo que se reconhece que se sente e se reconhece e que acaba por nos guiar nos nossos passos. Veja que não pretendo que todas as pessoas sintam ou vivam com a Fé, pelo menos da maneira como a estou a explicar. Mas não temos como negar que um tal apelo seja algo que não possa acontecer a qualquer pessoa, a qualquer ser humano. Se quiser, numa síntese, podemos dizer que viver com Fé é viver no desejo de O encontrar na eternidade.
-Mas você vai ter que me perdoar a insistência. Mas não continuamos a falar de crença?
-Não, de modo algum. Trata-se, como disse, do reconhecimento. Você sente e reconhece esse apelo e reconhece esse princípio e muito simplesmente vive de acordo com isso.
-Mas eu tenho que insistir. Não se poderia dizer o mesmo quanto à crença, isto é, você muito simplesmente acredita nisso e vive em conformidade.
-Se me permitem e sem querer estar a melindrar o senhor, vocês vão deixar-me introduzir aqui uma pequena observação, pois parece-me que o nosso amigo não está a alcançar completamente o que tu estás a querer dizer. Sou o primeiro a reconhecer e a admitir que pode ser subtil, mas há uma diferença fundamental que possivelmente se entenderá melhor se conseguirmos colocar o problema desta forma. Ora vejamos.
Se nós colocarmos a questão no plano da crença, nesse caso não teremos como escapar ao problema da prova e em última instância, seremos sempre forçados a admitir que, por isso, serão as vicissitudes do desenrolar da vida que irão determinar os princípios segundo os quais alguém conduz o seu comportamento no dia-a-dia. Quer dizer que nós tomamos como verdadeiro aquilo que conseguimos provar e nessa linha só tomaremos como bom aquilo que consigamos provar. Podemos depararmo-nos com situações em que consigamos provar algo que estabeleça princípios que ponham em causa outros que anteriormente tomávamos como bons. Podemos portanto mudá-los ao sabor das circunstâncias.
Ora não é isso que se passa. Quer dizer, não deve ser a vida que determine os nossos valores, somos nós, de acordo com estes que deveremos conduzir as nossas vidas.
A Fé é esse reconhecimento anterior em função do qual aceitamos os princípios segundo os quais procuraremos conduzir as nossas vidas. É por isso que se pode dizer que a Fé é uma revelação.
-Ai muito obrigado pela achega. Mas não te sabia tão atento a este género de questões.
-É, eu sou uma verdadeira caixinha de surpresas, já devias saber isso muito bem.
Mas agora o senhor já entende melhor a diferença de que ela estava a falar?
-Sim, estou a entender a diferença que estabelecem entre o acreditar e a Fé, tal como falam dela, mas para mim que não sendo propriamente dito ateu, sou, desse ponto de vista, digamos assim, agnóstico, é um tanto ou quanto difícil partilhar essas vossas convicções, se assim me posso referir a elas.
-Nem com toda a certeza estaria aqui alguém a pretender convertê-lo ao que quer que fosse. Estamos no domínio de uma troca de ideias e mais uma vez manifesto a opinião de que está a dar lugar a uma conversa cheia de interesse.
-Subscrevo o que diz sobre o interesse da conversa e é claro que também não estava de modo algum a pensar em que estivesse aqui alguém a querer converter-me. Nem isso faria qualquer sentido, é como diz, estamos a ter uma troca de ideias.
-Claro.
-Mas o ateísmo, meu caro amigo, permita-me que lhe diga que não passa de uma infantilidade.
-Ena, voltas a surpreender-me.
(…)
-Mas o problema continua de pé. Pessoalmente continuo sem perceber como é que se pode afirmar a existência de Deus, como é que se pode sustentar que Deus existe.
-Lá está, a revelação da Fé…
-Mas da maneira como vocês abordam a questão, isso da Fé não seria algo que teria que suceder quer dizer, algo que deveria estar presente em todos os seres humanos? Não teria que se observar essa, digamos assim, universalidade?
-Não necessariamente.
-Tal e qual. Veja que essa obrigatoriedade de haver essa revelação em todos os seres humanos não decorre imediatamente de se dizer que ela é algo susceptível de ser observada em qualquer membro da nossa espécie. Aquilo que eu defendi é que esse apelo interior pode ocorrer em qualquer pessoa, não quer dizer que necessariamente assim venha a ser. Não é, digamos assim, um estado de espírito estranho à inteligência da nossa espécie, é, pelo contrário, algo absolutamente natural; toda e qualquer pessoa nasce com a capacidade de sentir esse apelo e também nasce com todos os mecanismos cognitivos que lhe permitam fazer esse reconhecimento. Foi isto que afirmei, por outras palavras, mas o que quis dizer foi isto. Ora apesar de nascermos com essa potencialidade não implica isso que tenhamos que a materializar, isto é, que a Fé tenha que revelar-se obrigatoriamente em todo e qualquer indivíduo. Veja até que a revelação da Fé acontece mais frequentemente por via da educação, é, podemos dizê-lo, a forma mais habitual por que isso sucede. Isto sem que nos esqueçamos que ela também pode acontecer por via da mística, isto é, àqueles a quem Deus se revela. Aliás e num aparte, por exemplo, é por isso que para mim não faz qualquer sentido o proselitismo.
-Fico espantada contigo. Deixas-me de boca aberta, muito embora ache discutível aquilo que dizes sobre o proselitismo. Mas acredita que me deixas de boca aberta.
-Não tem nada de mais. Afinal nunca falámos sobre estes assuntos, pois não?
(continua)
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