terça-feira, 20 de julho de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
XV

Os solavancos de um voo directo a uma aterragem entre o verdume das folhas. O chamamento sem resposta, uma e outra vez e as asas coloridas voltaram a abrir-se para um lançamento sob um dos arcos do muro.

-Você diz-se agnóstico, mas tinha dito que o Fernando Pessoa é uma das suas referências o que, a este nível, me leva a concluir que abarca o panteísmo de que ele se reclamou a propósito do que, entre outros aspectos, viria a caracterizar o super-homem.
-Bem, desculpe-me interrompê-la, mas vamos lá a ver isso. Agora sou eu que tenho que fazer um reparo de pormenor. Parece-me que o próprio Pessoa quando colocou a tónica no panteísmo não o terá feito do ponto de vista de quem pensava que essas diferentes entidades, de alguma maneira, regulam as manifestações da realidade no mesmo sentido que os gregos antigos atribuíam aos seus deuses do Olimpo; eu tenho para mim que o Fernando Pessoa falou de panteísmo antes por pensar que esses deuses são uma, digamos assim, uma criação do homem e que precisamente por causa disso é esse mesmo que os contem dentro de si. Quer dizer com isso que é o próprio homem que contem em si o poder e as genialidades dos deuses. Quer-me parecer que foi por aí que ele foi quando divagou por essas águas do panteísmo.
-Isso é verdade.
-Sim, também concordo que o Pessoa vai nesse sentido. Ele é muito complexo e é até muitíssimo curioso verificar que apesar do que aqui se disse de ele ser, de alguma forma, anti-científico, reparemos que ele até acaba o “Ultimatum” justamente a proclamar a criação científica, a expressão, tanto quanto me recordo, é mesmo esta, ele afirma que proclama a criação científica do super-homem e já não estarei tão certo de que aqui ele esteja a assimilar o termo ciência à metafísica como sustentei anteriormente. Aliás, toda a cosmovisão que ele construiu, a sua metafísica ou, se quisermos, a sua visão metafísica do mundo, é, ela própria, uma mistura de referências filosóficas e não só ocidentais; estou convencido que, por exemplo, ele terá lido as “Upanishades” ou pelo menos, algumas delas, provavelmente em número significativo, mas digo isto pelas referências que amiúde perpassam ao nível das ideias marcadas por esses sistemas filosóficos do oriente. A visão metafísica do Fernando Pessoa é, dizia, uma mistura de referências filosóficas e esotéricas e até de informação científica avulsa de que ele seguramente ia tomando conhecimento. Não conheço a biblioteca que ele teve e que não sei se deixou ou não…
-Parece-me que também existe esse espólio e que há quem se esteja a debruçar sobre ele.
-Mas o que eu ia a dizer é que embora não conheça a biblioteca que ela possa ter possuído, não me admiraria muito se na mesma, a existir, claro, exista o rasto disto que acabei de dizer a respeito das suas referências. Mas é precisamente nesse contexto que pessoalmente subscrevo essa sua interpretação a respeito da potencialidade dos deuses dentro do Ser segundo o Pessoa. Creio mesmo que é sobretudo isso que nos transmite a ideia da infinitude do ser, a infinitude e a multiplicidade do Ser que ele defendeu e que teria que ser reconhecida e posta em prática, salvo seja, para que cada um se cumprisse no que de mais elevado temos na nossa existência.


-Também estou de acordo com isso, mas vocês não me deixaram acabar e eu tenho que voltar um pouco atrás. É que apesar disso que o senhor acabou de dizer, continua a intrigar-me o facto de você pôr em dúvida a realidade de Deus, prefiro dizer assim do que usar a palavra existência, mas continua a intrigar-me o facto de você duvidar da realidade de Deus e devo dizer que até o fez de uma maneira bastante veemente e no entanto, depois, fala de deuses e depois ainda diz-se agnóstico. Como é que o senhor conjuga tudo isso? Tenho que confessar que isso me deixa um tanto intrigada.
-Bem, vamos lá ver isso. Eu falo no sentido pessoano que acabei de expor. É precisamente por isso que aceito e repito que estou absolutamente convencido a respeito da pertinência e digo mesmo necessidade do super-homem. É neste sentido que eu me coloco. Quando me digo agnóstico, eu estou sobretudo a referir-me e ao mesmo tempo a recusar essa ideia do Deus judaico-cristão, esse Deus criador do mundo e castigador dos homens. Ora o que eu recuso, aquilo em que eu não acredito é nessa concepção que nos diz que temos que viver de uma determinada maneira para ganharmos o Céu. Esse Deus que nos castiga se formos maus e nos recompensa se formos bons. Nisso, eu não me revejo. Depois há perguntas que ficam no ar, não será assim? Afinal o que é isso do bem e do mal? Quem é que define o que é o bem e o que é o mal? Pois é tudo isso que de modo algum me convence. Contudo não deixo de pensar que possa haver algo por detrás disto tudo, alguma entidade que provavelmente terá que ser uma energia qualquer que ponha tudo isto em movimento. Não sei, embora seja capaz de admitir que isso seja possível. Olhando a Terra, por exemplo, é uma coisa tão perfeita, não é? Por vezes dou comigo a pensar que até leva a crer que de alguma maneira possa haver uma mãozinha por trás disto tudo. É por isso que me disse agnóstico mais do que ateu; acho que posso dizer que o termo agnóstico se me aplica melhor, me designa melhor que a palavra ateu.
-Estou a entender, embora ache tudo isso que acabou de dizer uma enorme confusão. Espero que o senhor não me leve a mal por falar desta maneira.
-De todo, minha cara amiga. Nunca é de mais repetir que estamos a ter uma conversa bastante civilizada e, arrisco-me a dizer, cheia de interesse, não lhes parece?
-Sim, bastante.

(continua)

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Lendo esta pergunta,

"Olhando a Terra, por exemplo, é uma coisa tão perfeita, não é?"

a minha resposta é afirmativa.

Algumas pessoas é que fazem todos os esforços para a estragar...
E, parece-me que a epidemia está a transformar-se numa pandemia...

Se realmente houver "uma mãozinha por trás disto tudo", agnóstico que sou, estamos safos: Deus (?)tarda, mas não falha!

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

"A vida é bela, os homens é que a estragam", dizia alguém que foi figura desta aldeia em que nasci e que infelizmente não saberei homenagiar com o devido respeito que uma tão elevada profundidade necessariamente requereria.
as a verdade é que estamos perante um resumo de sabedoria que nos diz tudo ao recordar-nos que a escolha do mal é eminentemente humana; são os homens que se decidem pelo vale tudo para satisfazerem os seus interesses particulares - eu, sem eufemismos, diria ganância, mas enfim, temos de ser polidos, não é? E Seja como for, vai daí e zás, trata de pisar o próximo com o mesmo à vontade que se atiram ácidos para os rios e gases tóxicos para a atmosfera.

Quanto à tal mãozinha que pode empurrar, eu que tenho alma de andarilho e para mim não reconheço outro território para além dos meus sapatos, pelo que gosto de ver e ouvir, acima de tudo ver e ouvir e ler, é claro, pois todos podemos ver, ouvir e ler e dificilmente poderemos ignorar, resrevo para as personagens o que possam ter para dizer a esse respeito. Sem qualquer dúvida, serão capazes de uma eloquência a que eu jamais me poderia habilitar.

Contudo, posso apenas dizer que Ele não falha, nem tarda, nós é que somos muito distraídos ou ensimesmados o que acaba por dar o mesmo.

Aquele abraço, companheiro

Luís