-Mas há aí um pormenor naquilo que disse que, mais uma vez me vai perdoar, mas lá está, não me parece que faça muito sentido. Da maneira que falou, então poderemos dizer que uma pessoa é educada na Fé. É isso, não é?
-É.
-Pois, mas é isso que não parece que faça muito sentido. Então uma pessoa é educada na Fé?
-Claro.
-Mas a Fé ensina-se? É que atendendo ao que vocês disseram, não me parece mesmo nada que isso algum sentido. Há aí qualquer coisa que não bate certo. Vocês dizem que a Fé não se explica, mas pode ser ensinada? Como assim?
-Não, repare que há aí algo que ficou por dizer. A Fé, propriamente dita, essa, enquanto revelação e reconhecimento de um apelo interior, naturalmente, essa não se ensina.
-É claro que é assim. Ninguém poderia pretender que se ensinasse alguém a sentir esse apelo interior de pretender viver pelo caminho de O procurar, de ir ao seu encontro e a verdade é que na realidade, não é isso que se passa.
-Então…
-Então o que se passa é que muito simplesmente é mais fácil que um tal reconhecimento venha a suceder dentro de um contexto de uma determinada educação do que sem ela. Isto parece-me óbvio. Ora acontece que um indivíduo é educado dentro dos princípios, dentro do conhecimento da história religiosa do seu povo e nessas circunstâncias, espera-se que a Fé se lhe revele ou, se quiser, que ele encontre ou se encontre com essa mesma Fé.
-Pois, é mais isso que se passa. Assim está melhor explicado esse aspecto.
-E também pode muito bem acontecer que, apesar disso tudo, mesmo admitindo que uma determinada pessoa teve a melhor educação a esse nível, apesar disso, pode muito bem acontecer que essa pessoa venha a permanecer céptica e nunca venha a ser tocada pela Fé, nunca a venha a sentir e muito menos a reconhecer.
-E o que acontece a essas pessoas? Não vão para o paraíso, como dizem os católicos?
-Os católicos e não só. Mas não, também não é isso que necessariamente tem que acontecer. Não me parece que um gentio deixe de alcançar a Eternidade se tiver vivido como um justo que é isso que, para o caso, realmente conta. Aliás, até um qualquer sujeito pode ser um materialista convicto e conseguir viver como um justo. Para termos carácter não temos que necessariamente ser pessoas de Fé.
-Concordo plenamente com isso. Até o mais convicto dos ateus pode muito bem chegar ao Paraíso desde que tenha vivido como um homem bom. Nem poderia ser de outra maneira, não é?
-Ora bem, somos todos filhos Dele.
-Tal e qual, mas justamente por isso é que a salvação está ao alcance de qualquer um. Isso dependerá da maneira como tivermos vivido aqui na Terra.
-Mas não acha que então, dessa forma, de nada vale ter Fé? Você, pelo que diz, tanto seria salva por ter Fé ou não. Aliás, da maneira como colocou o problema, a menos que eu tenha percebido mal, nem mesmo se pode dizer que seja a Fé a coisa mais importante. O que realmente conta é a vida que se leva, é aquilo que fazemos nesta nossa passagem pelo mundo dos vivos. Estou em crer que é isto que se pode extrair das vossas palavras. Terei entendido mal?
-Entendeu muitíssimo bem. É tal e qual como afirma. Não poderia ser de outro modo, pois se assim não fosse não teríamos como justificar e muito menos incorporar o livre arbítrio. A salvação só poderia mesmo depender de cada um de nós e, nessa medida, em termos práticos, só poderá estar pendente de conseguirmos levar ou não uma vida mais ou menos virtuosa.
-A relação que estabeleces com o livre arbítrio é fundamental. Mas há ainda uma outra nuance que, de certa maneira, está articulada com isso que acabaste de dizer. É que a não ser assim, então teríamos que impor a Fé e isso é que não faria o menor sentido, isto mesmo apesar de não deixar de ser algo recorrente na história da humanidade. Mas repara que do ponto de vista da construção do pensamento, isso seria um verdadeiro absurdo, pois significaria que estaríamos a querer impor algo que diz respeito à vida interior de cada ser humano. Mas essa tem sido justamente a interpretação mais até do que das ortodoxias das hierarquias religiosas e políticas que precisamente usam a religião para expandirem os seus interesses e, como acontece tantas e tanas vezes, sobretudo as suas ganâncias. Essa ideia tremendamente perniciosa de querer impor a Fé é o que tem estado na base das mais sanguinárias guerras religiosas ao longo do tempo e lá está, aqui está mais uma boa razão para não acreditarmos no proselitismo, se bem que não seja de modo algum a mais importante.
-É isso que dizes, voltando a salvaguardar o problema do proselitismo, perante o qual continuo a colocar algumas reservas. Mas a verdade é que muitas vezes se atribui, ou é possível atribuir às religiões, elas próprias, as causas das guerras religiosas.
-E não será mesmo assim? Se olharmos o problema em profundidade, não será precisamente nos fundamentos doutrinários das religiões que se encontram as motivações ideológicas, salvo seja a expressão, pelas quais os fiéis se mostram tantas vezes capazes de quererem até matar os outros e nem mesmo é raro que esses outros sejam correligionários e, com isso, a fazerem a guerra?
-Pessoalmente, como deve compreender, não me parece que seja assim. Eu diria que aquilo que nós vemos são as hierarquias ou partes dessas hierarquias que estabelecem essas interpretações, são esses estratos que sublimam os aspectos mais exclusivistas, se quiser até podemos afirmar, os mais xenófobos –isto se o termo aqui tiver alguma validade- são essas hierarquias que determinam essas interpretações que abrem e conduzem a essa vontade de fazer a guerra.
(…)
-Mas que os princípios, os preceitos religiosos, se virmos bem, não consentem. Afinal, por exemplo, todos os princípios do cristianismo são ideias de paz, princípios que propõem a fraternidade e não a guerra entre os homens. O respeita o teu próximo como a ti mesmo só pode ser à paz que conduz, de modo algum à guerra.
Mas há uma pequena coisa que o senhor disse que me deixou um tanto intrigada.
-O quê?
(continua)
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