sábado, 10 de julho de 2010

A INFÂNCIA PERDIDA DA URBE...QUE QUALIDADE DE VIDA?

“Os homens e as mulheres de uma urbe precisam de encontrar os pontos de referência fundamentais à sua segurança e prazer: espaço limitado e isolado para a sua própria intimidade; ruas onde possam passear e encontrar o que precisam para a sua existência: locais pitorescos que quebram a monotonia das ruas; recintos para a contemplação e manifestações artísticas; locais para actividades colectivas ; natureza modificada pelo Homem em forma de jardins e contacto fácil com a própria natureza.
Na cidade devem procurar criar-se as condições que possibilitem ao homem o contacto com a sua própria infância.”

João Santos, «Algumas reflexões sobre urbanismo e cultura»,O tempo e o Modo, 1966.

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O excerto acima transcrito, serve-nos de ponto de partida para a pequena redacção que abaixo se segue, tendo como propósito elaborar uma introdução e contextualização do pensamento para outras reflexões que ai virão, centrando-se em temáticas como: núcleos urbanos; Património urbano; espaços verdes e identidade urbana.

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Cada indivíduo faz a sua própria leitura visual da paisagem que o envolve, levando consigo as memórias espaciais, construindo novas paisagens com essas mesmas memórias, apoderando-se do poder das analogias. Legitimando assim, a sua envolvência com o espaço vivido, dando sentido e vida ao espaço habitado, situando-se nesse lugar através de uma escolha existencial,- estando de acordo com as nossas funções psicológicas da orientação e identificação com esse lugar - criando através do lirismo simbólico a ideia de espaço.

Nas Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino, através não só das descrições geométricas que Marco Pólo faz das cidades do império Mongol de Kublai Khan mas, da descrição existencial que faz delas, leva-nos a uma maior compreensão da apropriação do homem pela ideia de espaço, entendendo as trocas sociais e culturais. Num romance sobre Gaudí, Mário Lacruz , narrando a vida do arquitecto catalão dá-nos essa mesma visualização de ideia de espaço e a sua maior e melhor compreensão da Cidade social e cultural dessa época. Para se construir o devaneio onírico da Cidade temos que recorrer às nossas memórias sensitivas e sociais vividas diariamente na vida da urbe.

A casa é o nosso abrigo primordial, ela é o espaço onde nos sentimos resguardados, onde as nossas lembranças e vivências estão guardadas, pensá-la não se trata apenas de descreve-las , mas sim de poetizar o espaço, de sacralizar o nosso “cantinho” para que deste modo cheguemos à “função original de habitar” através da Casa natal, que é a primeira referência que o Ser tem de uma casa, levando-a consigo na memória e tentando reproduzi-la das mais diversas maneiras. A função de habitar e de sentir a casa é tão intrínseca em nós que criamos uma dependência de pertença a algum lugar sem nos passar pela cabeça a sua (des)sacralização, vêmo-la como um local sagrado que mesmo na morte a tentamos levar, materializando-a na nossa ultima morada.

Segundo Heidegger o habitat/casa não deve ser só pensado como algo estandardizado mas, uma interacção do lugar com a casa e com quem a habita formando desse modo uma comunidade, passando da identidade individual para a identidade social, ou seja, como uma correlação entre o sagrado e o profano. Poderemos entender melhor essa correlação através de um diálogo que o discípulo tem para o seu mestre Zen “Qual é a verdadeira natureza do Buda?
"-O cipreste no pátio.”, responde o mestre, sugerindo a união entre o visível e invisível “o quotidiano humilde e a realidade final, o relativo e o absoluto. O “cipreste no pátio”, a flor à nossa frente, a pedra sob os nossos passos são os caminhos que levam para além do além do mais além.”. O acto de colocar o cipreste no pátio redimensiona-o do profano para uma sacralização do espaço, adquire uma dimensão através de um acto Humano revelador da transcendência do Ser.

Ressoa em nós, como um eco na escuridão da noite, a frase:
“ (...)Na cidade devem procurar criar-se as condições que possibilitem ao homem o contacto com a sua própria infância.”
Porque, com o advento do turismo e das chamadas cidades criativas, a identidade individual de cada localidade perdeu-se para ganhar uma identidade homogénea com as localidades congéneres, já não há grandes distinção... Como sacralizar o espaço colectivo com o advento das cidades criativas e o furor turístico e patrimonial?
A Cidade, a Vila, o Lugar, essa casa que alberga a casa foi esquecida pelos seus usufruidores, demitiram-se dos seus deveres cívicos passando-o para o poder político. A apatia para sentir e perceber a cidade é notória nos comportamentos que temos com ela, atitudes automáticas e mecanizadas que não nos levam a perceber e questionar que a cidade, essa casa que alberga a casa, nos pertence de igual modo que ao poder autárquico.

Citando o artista Leonel Moura “ a cidade desaparece do centro do debate crítico. (...) ela tornou-se um problema exclusivo do planeamento e das políticas municipais, com resultado à vista: desaparecimento do espaço público através de uma privatização extensiva; uniformização das centralidades, que agora só têm a valência comercial; degradação dos serviços públicos, em particular os de transporte; aumento da miséria e exclusão.” . É necessário uma nova consciência, uma (re)educação, um voltar à origem, onde o lugar era sentido e apreendido como propriedade colectiva, onde cada indivíduo “trabalha” para a concretização da sacralização da Cidade, do lugar que habita.

Como recuperar a infância perdida da urbe, que no jogo das escondidas se desiludiu com a qualidade de vida da sua própria casa?
Porque os cidadãos se destituíram dos seus deveres centrando-se mais nos seus direitos de usufruto do solo?

Maribel Sobreira

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Notas:
(1)Calvino, Itálo, As Cidades Invisíveis, Editorial Teorema;
(2)Lacruz, Mário, Gaudí um romance, Publicações Dom Quixote, 2006;
(3)Bachelard, Gaston, A Poética do Espaço, Martins Fontes Editora, São Paulo 2005, p.62 “Nessa comunhão dinâmica entre o homem e a casa, nessa rivalidade dinâmica entre a casa e o universo, estamos longe de qualquer referência às simples formas geométricas. A casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico.”.
(4)Op. cit., p.37.
(5)Op. cit., p.33.
(6)Heidegger, Martin, Construir, Habitar, Pensar, Conferencias y Artículos, Serbal, Barcelona 1994;
(7)Vários autores, Os melhores contos Zen, Editorial Teorema, 2002, p.83.
(8)Ibidem.
(9)Moura, Leonel, Formigas Vagabundo e Anarquia, LxXL edições, 2009;

3 comentários:

luis santos disse...

O que chamar à Revistinha depois das palavras transbordarem... Gostei muito. O jogo entre infância, casa, espaço social/espaço sagrado está muito bem conseguido. A relação entre poder autárquico, direitos e deveres cívicos, está digna e merecedora de que se abra o tema ao debate.

Temáticas Jurídicas disse...

Meus cumprimentos a Mirabel Sobreira, pela sensibilidade com que alinhavou sua reflexão!

Muitos de nós que vivemos em capitais brasileirais, sentimos saudade de um tempo em que se podia andar a pé pelo centro da cidade sem se preocupar com assaltos, em que vivíamos em nossas casas sem o receio da violência urbana tão exacerbada.

Infelizmente, por vezes, a casa, nos meios urbanos da atualidade, em países como o Brasil, mais do que um recanto para o exercício da intimidade, da vida privada, do direito de estar só ou somente com os afetos de nossas almas, torna-se espécie de casamata, de bunker, em que nos encastelamos, tomando um bater de palmas na calçada, à frente da residência, como sinal alerta, ante a possível tentativa de sequestro, de assalto, de um eco, em nossa intimidade familiar, da agressividade das ruas.

Parece-me importante políticas públicas não apenas de prevenção
ao crime, de reinserção social de excluídos, como também programas governamentais de revitalização de centros comerciais e históricos, bem de urbanização de áreas de risco, além do investimento em transportes coletivos de boa qualidade, mais seguros, e do incentivo à humanização dos habitantes das grandes cidades, que acabam se desensibilizando e se tornando rudes em meio às patologias sociais do cotidiano de uma urbe exposta a desigualdades sociais, ao excesso de utilitarismo, hedonismo e esgarçamento de valores humanos e da consciência cívica.

Forte abraço a todos!


Hidemberg

Jayme Ferrer de Carvalho disse...

Parabéns Mari!
Concordo com o ínicio do teu texto, em que falas da necessidade de trabalhar o espaç público, mas dicordo quanto à necessidade de ser implementado pelos poderes públicos. antes pelo contrário. Devem ser todos e quaisquer poderes privados a dar carácter e identidades particulares e privadas ao espaço que é de todos e para todos e para ser vivido por todos.Depois as questões da prática. As operacionalidades. Temos de trabalhar imagens para que se vejam a stuas ideias boas e neste caso em particular um exemplo e menis texto, filosofia , mesmo com o bom apontamento do grande "H", Obrigado!