OS TEUS OLHOS AZUIS
Para a
Paula Canena
A minha tia Gertrudes foi a outra das minhas tias que se deixou ficar solteira, no seu caso pelo ramo paterno e até que a sua alma se juntou ao Criador. Ao contrário da tia Engrácia que bateu o pé ao meu avô para estudar e, em algumas outras ocasiões de choque, da minha tia Raquel que, após a segunda grande guerra, impôs um divórcio litigioso ao marido que tinha uma amante e depois criou um filho com os rendimentos do seu trabalho, aquela terceira filha sempre foi mais dada ao seu mundinho de bordados e leituras a que o talento acrescentou as telas de rostos e paisagens ou de simples instantes do quotidiano que ela pintava, sem outra intenção além do amassar das horas. Para lá disso escrevia poemas, assim passando os dias entre o seu quarto e a solidão de passeatas pelos campos e quintas circunvizinhas à vila. Dela guardo um volume, feito à mão, de algumas dezenas dos seus poemas de amor e na minha sala a curva de um regato num bosque, em aguarela. De todos os irmãos, a tia Estrudinhas, como lhe chamavam os sobrinhos, era a que mais se condoía com os pobres de haver e de espírito que usualmente se cruzavam, por baterem na porta e na rua, pela sucessão das semanas de um mundo em que nem todos tinham a possibilidade de ganharem o pão. Era a única que se dispunha a prestar ajuda nas festas de caridade da Santa Casa da Misericórdia e, no lar, tomou a seu encargo as canseiras de ter sempre um prato de sopa para os gaiatos de duas ou três famílias que os azares dos pais tinham atirado para a miséria. E censurava os irmãos quando se esqueciam de lhe entregar as roupas que abandonavam, para que ela pudesse aliviar as carências de algum corpo com frio. Desde menininha que ela dera mostras de vir a ter aquele temperamento, quer pelo carinho que dispensava até aos bonecos e animais, quer pela argumentação espontânea e permanente que, nas histórias que lia, usava para tomar partido pelos mais fracos. Dizem os mais velhos que mesmo os seus bonecos viviam em aposentos confortáveis que ela preparava com o desvelo de ter miniaturas de cobertores para o arrefecimento das madrugadas.
Segundo o ponto de vista da irmandade, a minha tia Gertrudes faleceu devido a uma doença do fórum nervoso, mas o Dr. Neves, amigo de meu pai e que de há muito conhecia aquela casa, sustenta que antes foi um ela deixar-se morrer. Nas duas últimas anuidades da sua vida, já eu aparava o bigode, aquela minha tia tornou-se uma pessoa propensa a barafustar por tudo e por nada e a todos virar as costas abafada de ufas e invectivas e descrenças. Chegou a passar dois meses sem sair do quarto e por fim acamou-se, a côdeas e a água, acompanhada por lágrimas e silêncios e ainda ordens para que se não visse a luz, até que uma noite o coração deixou de pulsar e alguém a encontrou lívida na manhã do dia seguinte.
Conta a minha mãe que aquela minha tia vivia encantada com as melodias dos passarinhos e as múltiplas nuances das tonalidades da luz. Quem ela verdadeiramente admirava eram os homens do saber e das artes, de quem sabia narrar, embevecida, as biografias e comentar as obras, pois, apesar de apenas ter estudado, com professora em casa, aquilo que seria o equivalente a um curricula liceal, a tia Estrudinhas era mulher de sólida cultura literária e histórica e filosófica, capaz de recitar de cor muitas passagens de “Os Lusíadas” e de citar obras de clássicos com fartura e elegância. Só o seu recato a que se remetia pelo entendimento de uma posição de última linha num mundo organizado para os homens, tão só a baixa voz que raramente se expressava a impediu de ir além do anonimato. Mesmo com o corpo, ela em nada se manifestava a fim de abandonar o exemplo que vira na sua mãe e já eu era bem crescidinho quando ela se decidiu a vestir fato de banho pela primeira vez, ainda que passasse todos os santos verões sob as aragens da beira-mar. E nem assim se pode falar de ousadia, uma vez que a obrigação teve como motivo a resposta às dores do reumático. Tanto foi que durante toda aquela primeira época ela se refugiou nas rochas do fundo da praia, ou em uma pequena enseada menos frequentada da baía. Justificava-se à minha mãe com a vergonha que sentia por saber que os homens poderiam distrair-se nas suas carnes.
Pensava eu que a tia Gertrudes nunca casara por jamais ter encontrado a chavinha que alhures existe para nos abrir o coração. No dia do seu funeral vim a saber a verdade.
Foi minha tia a enterrar numa campa que ela própria há muito adquirira e que se situava paredes meias com uma outra, muito anosa, da qual, veio então a saber-se, afinal sempre ela cuidara. Era a última morada de alguém que morrera novo, ceifado na aventura de querer conquistar mais e mais velocidade na estrada.
Do teu azul olhar
me fiz eu cativa,
onde quer que eu viva,
não há outro encantar.
Era o João, a cuja memória dedicara esta quadra.
Portel, 13 de Maio de 1998