terça-feira, 7 de agosto de 2012

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



O Janeiro está frio, mais de samarra que chapéu-de-chuva, mas os campos esverdearam e dos amarelos e brancos com que as margaridas estenderam o manto que o Natal trouxe para a planície, brotam agora os primeiros sinais vermelhos e de outras cores que preparam o anúncio das múltiplas telas que a Primavera pintará nos terrenos. Lá fora a pele gela e se não estivermos devidamente agasalhados, os dentes fazem de castanholas a que falta a harmonia e o ritmo, mas aqui dentro está tão quentinho, sobe, até ao tecto, uma sensação tão agradável de conforto. Os murmúrios do escuro que mal se escutam do lado de cá das grossas paredes, sejam pelo assobio da coruja em busca de ceia ou do ramo que se parte pelo encontro da velhice e do vento que faz as ramadas atirarem-se aos nossos ouvidos como o mar o faz com as ondas sobre a areia, no recato desta evasão doce e sossegada, mais parecem o acompanhamento musical que falta para a cena de um momento perfeito. A distribuição do escritório por esta divisão da casa foi mais ou menos um acto casual pois, apesar de ainda não termos filhos e não precisarmos de usar as divisões no que haveremos chamar de piso superior e que poderíamos desde já ter incorporado na residência, nada nos teria impedido de eleger ali o espaço apropriado para este cantinho, precisamente numa daquelas divisórias com o janelame apontado na direcção oposta àquela que tenho pela frente. Até a disposição desta secretária dependeu mais de critérios relacionados com a luz e nada com qualquer preocupação estética em relação à vista que apanha o arvoredo do declive e o vale em que se debalda a partir das margens da albufeira que, em dias solarengos, por vezes reflecte o trajecto das nuvens e, normalmente, o encarapinhado da outra colina que o encaixa. Não imaginava assim que viesse a ter o adicional de gozar o espectáculo do fogo de uma Lua inchada e saída da terra para se elevar no horizonte que destes vidros se contempla. É como se a noite e o frio fossem as coisas mais embevecedoras de se viver e se a nós fossem dadas as artes e os poderes de Cronos, seria um daqueles instantes em que, para melhor o saborearmos, nos daríamos ao trabalho de suspender a inexorável passagem do tempo.
Já nasceu o primeiro bebé desde que aqui estamos. Felizmente correu tudo bem e a Catarina que o teve, pelas cores que apresenta e, por um lado, o à vontade com que dá conta do recado e, por outro lado, o encanto em que vive e que, para surpresa minha, se transmite aos que a rodeiam como se fosse uma fonte de calor, mais se poderia dizer estar preparada para outra, muito embora, tal como acontece, mal esteja saída de uma. Nasceu em casa, com a ajuda das mais arrojadas para estas coisas, entre as quais, tenho que o dizer, eu não estive e, como não poderia deixar de ser, sob a orientação da Viviana. É claro que eu também dei a minha ajuda, mas não tive coragem para testemunhar a aflição e o padecimento do acto e só por isso fiquei no posto do aquecimento das águas e na lavagem das toalhas e esterilizações de instrumentos. Quando se ouviram os primeiros soluços entrei e então passei à acção para que tudo voltasse rapidamente ao normal e pela confusão de sangue e porcaria que vi sobre a cama, percebi que a opção pela retaguarda tinha sido a decisão mais acertada. A Viviana lá fez questão de nos explicar tudo aquilo, indo mesmo aos pormenores dos nomes e funções que distinguia e identificava naquela amálgama que me fez sentir nauseabunda, mas em mim não teve aquele esclarecimento qualquer efeito e se quiser ser realista e franca comigo, não sei se não me terá deixado muito assustada perante a ideia de um dia vir a ser mãe como é natural que o queira vir a ser. Mas isto do começo da vida, não deixa de ser um mistério que vale a pena presenciar. Nunca tinha visto uma coisinha tão pequenina, tão indefesa, mas ao mesmo tempo logo tão cheia de um pulsar que é a prova de estar vivo e prontinho para crescer. E os braços e as pernas, tão pequeninos e tão mexidos, as rugas minúsculas das falanges e dos nós dos dedos, os lábios e o narizinho tão bem desenhados e os olhos que parecem estar a abrir para ver melhor o que, de acordo com a nossa amiga médica, ainda não acontece. É um belo de um rapagão, no dizer de todos que, pelo apurado na balança de cozinha da casa em que foi criado, veio ao mundo com três quilos e duzentas e na fita métrica que o mediu, atingiu os cinquenta centímetros. Será que todos os recém-nascidos são assim tão bonitos quanto este me parece? Enquanto tudo se consumou, o Alberto andou com os outros a marcarem os campos e a cravarem as estacas com que vamos delimitar certas áreas de cultivo na fronteira de propriedades vizinhas. Até que a filha do senhor Abel correu para os chamar e todos vieram para se juntarem à festa de parabéns e partilharem a alegria de um pai babado que não se cansava de vir à sala dizer que estava tudo calmo, ou que o menino parecia estar a olhar para ele como se já o conhecesse, para de imediato regressar à cabeceira dos beijos e carícias com que apaparicava a mãe que não escondia a felicidade por o ter ali e de o ver em todo aquele estado de euforia. É verdade, é um acontecimento, como disse o Francisco Palma que é amigo de um dos presentes e que sem pensar trocou o lugar que tinha numa tesouraria pública qualquer pela oportunidade de estar aqui e logo ele que até agora nunca interveio em qualquer conversa e nunca antes abrira a boca além das solicitações do quotidiano, foi quem se lembrou de acrescentar que isto nos força a encontrarmos um nome para o local para que a criança possa vir a identificar de onde é natural. Ninguém tinha reparado nisso e todos concordaram com ele, mas não foi essa a discussão que se seguiu, antes foi a do nome para o rebento que, justamente por ser o primeiro natural deste sítio e o primeiro a nascer no contexto desta nossa aventura, os pais pediram aos convivas para proporem. Pois mais uma vez o Francisco resolveu o problema e sem necessidade de uma segunda tentativa e só por isso posso escrever que o Adão nasceu. Seja então muito bem-vindo a este mundo e que no mesmo venha a ser uma pessoa de bem e aí encontre a felicidade que a todos assiste almejar. Mas não é tudo em termos de nascimentos ou, para ser mais precisa, previsíveis nascimentos. Confirmadas pelas próprias, temos mais duas grávidas entre nós e na expressão alegre da Mariana, ao que tudo indica, há uma outra que igualmente estará de esperanças. O futuro está assim a fazer-se.
É bom termos engenhocas entre nós que não só sabem pensar como também são capazes de imaginar as soluções práticas para os problemas que pretendem resolver. Só por isso solucionámos as necessidades de aquecimento das habitações. A invenção que o Alberto apresentou de uma rede, sob o soalho que levasse o calor às outras divisões a partir da areia aquecida sob o chão da lareira, foi muito bem transformada numa teia de calha feita por telhas assentes pela convexidade que, de acordo com a geometria de cada quarto, se estende por todos os espaços assoalhados da casa de que ficaram de fora a cozinha e a casa de banho que só pelo entre abrir das portas se deixam contaminar por via do aquecimento do ar. O certo é que a madeira do soalho aquece e permite que o calor se liberte e nos forneça este ambiente de conforto que deixa a invernia a falar sozinha do lado de lá das vidraças e que me fez descobrir o gosto de andar descalça dentro de casa.
Entretanto a Lua foi amarelecendo no seu percurso pelo céu. Agora, há uma moeda de prata manchada que nos deixa distinguir claramente os vultos da noite. Chegou o momento de subir para a cama.

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